Bianca Dias e Francisco Bosco debatem o livro ‘A vítima tem sempre razão?’

Bianca Dias e Francisco Bosco debatem o livro ‘A vítima tem sempre razão?’
Ilustração de capa (Divulgação)

 

A psicanalista Bianca Dias conversa com Francisco Bosco a respeito do livro A vítima tem sempre razão?. De autoria de Bosco, a obra tem alimentado debates sobre os limites e as contradições das militâncias por direitos humanos. Confira:

BIANCA DIAS – Você aborda em seu livro a importância de campanhas nascidas dentro do contexto das redes sociais, como #chegadefiufiu e #primeiroassédio. A partir da importância dos muitos relatos, é possível refletir sobre relações de poder e opressão naturalizadas e entranhadas nas relações. No entanto, pensando na campanha #chegadefiufiu, há de se interrogar sobre uma outra coisa, que é o desejo no espaço público, a paquera, a resposta nem sempre previsível, a medida sem medida do jogo sexual que acontece misteriosamente entre um homem e uma mulher.

Há algo que sedimenta esta discussão que é a dimensão do consentimento muito bem apontada pelo feminismo – e há situações que se mostram com clareza a partir daí -, mas há um outro aspecto que é a negociação nem sempre tão clara de uma possibilidade de aproximação no espaço público.
Se os homens sempre se impuseram pela lógica do poder, terão agora de repensar a maneira pela qual se enlaçam ao sexual?

FRANCISCO BOSCO – Sim, sem dúvida. Em primeiro lugar, quanto às campanhas a que você se referiu, foi impressionante assistir àquele desrecalque coletivo àquela imensa estrutura machista e violenta de repente se tornando visível por meio de relatos que pareciam inesgotáveis, e com isso dando a extensão infinita e incontornável do problema. Todas as mulheres, mil formas de assédio, no espaço público e privado, por homens os mais desconhecidos ou os mais íntimos.

Isso deve ser pensado junto à dimensão que você identifica: certo descompasso constitutivo da experiência erótica, que envolve um ir ao outro, que em alguma medida não se realiza dentro de uma lógica que, desde o início, é contratual.

Temos, então, de um lado uma estrutura de poder assimétrica, que se traduz na ameaça de violências contra a mulher – e de outro, certa natureza da experiência erótica e sua diferença quanto a outras relações sociais, plenamente contratuais desde o início.

Não penso que esse conflito seja, em geral, difícil de resolver. Até há casos mais sutis, onde a linha entre o aceitável e o abusivo é mais tênue, mas no geral os homens têm que dar um salto de consciência e reajustar suas práticas eróticas. Quaisquer abordagens passíveis de serem experimentadas como ameaçadoras, intimidadoras ou coercitivas devem ser abandonadas. A experiência erótica heterossexual deveria se reajustar no sentido de respeito absoluto ao desejo do outro, e leitura cuidadosa de suas manifestações.

Ainda na lógica do poder, surge uma palavra que se erige como resposta à lógica fálica: empoderamento. Uma palavra que guarda, em si, diversas nuances – inclusive a própria contradição de resvalar naquilo que visa confrontar -, pois me parece que a potência está mais do lado da possibilidade de estilhaçamento dos poderes constituídos do que na convocação imaginária ao poder. Esta me parece uma questão central em seu livro que, já de entrada, convoca o feminino como força que não se pode enclausurar.

É aguda a sua invocação que pode recolher de um cartaz contundente em uma rodovia uma entrada e, ao mesmo tempo uma saída (“bucetas ingovernáveis”), pois este me parece um acerto fundamental de uma certa parcela do feminismo, que é pensar a questão da materialidade dos corpos – que, se não é algo fixo e estanque, está longe de ser uma questão menor. No entanto, o que seu livro parece acentuar é que esta questão não se encerra aí, é isso?

Sim, sua observação é muito importante. A expressão com que abro meu livro, “bucetas ingovernáveis”, gravada numa faixa pendurada numa rodovia estadual, é uma declaração de insurgência contra o poder. O poder, como escreve Foucault, é o que governa a vida dos outros, define seu campo de possíveis, esvazia sua autonomia e liberdade.

Mas, como você comenta de forma aguda, a convocação ao empoderamento é equívoca, porta uma ambiguidade. Empoderamento pode tanto conduzir à força necessária para se libertar do governo alheio, quanto pode levar a uma reprodução do mesmo mecanismo de poder sobre os outros. Não tenho dúvidas de que existe essa confusão em certas práticas feministas no Brasil de hoje. Um dos objetivos do meu livro é precisamente tentar identificar isso e distinguir entre a necessidade imperiosa de se desconstruir o poder masculino e a reprodução de mecanismos de poder por mulheres. Como a estrutura social permanece em boa medida patriarcal, logo não governável, esse poder é exercido contra indivíduos.

As redes sociais abriram a possibilidade de circulação da fala e, como consequência, a de movimentos insurgentes, inscreverem sua marca e sua reivindicação. Seu livro é arriscado e poderia ter se tornado apenas uma exploração dos jogos de linguagem utilizando recursos de retórica, mas inverte justamente a lógica apressada do slogan e a maneira imediatista como questões tão sérias e urgentes vêm sendo abordadas e mostra que não podemos nunca dissimular a produção de restos.

Há pontos a serem tensionados e nenhum discurso, ainda que seja justo de partida, está garantido de antemão. Entretanto o título de seu livro convoca a questão de uma forma delicada: “A vítima tem sempre razão?”. Embora você tenha feito uma rigorosa introdução situando a questão, não acha que isto pode blindar ou dificultar o acesso a seu livro justamente a quem ele deveria dialogar?

Sim, isso tem acontecido e me surpreendeu. Pensei que uma questão não poderia ser tomada como um gesto agressivo. É claro que, formalmente falando, uma questão pode ser violenta, caso pretenda não tomar como cláusula pétrea aquilo sobre o que há um consenso de que assim deveria ser encarado (por exemplo:“assassinar inocentes é mesmo errado?”, ou“pessoas negras não são mesmo inferiores?). Mas a premissa questionada no título está longe de possuir esse estatuto.

Ao contrário, o que deveria causar estranheza é a sua enunciação, e não a sua problematização. Afinal, a máxima ou bem é uma petição de princípio, ou um pleonasmo. Ou se deve antes provar que a suposta vítima é mesmo vítima, ou, se isso já foi provado, é escusado observar que ela tem razão. E, entretanto, o que faço é mostrar que, apesar disso, a frase tem a sua razão de ser. Essa razão é verdadeira: ela parte do princípio evidente de que a palavra da mulher tende a ser sempre desqualificada.

Mas a solução que propõe a essa injustiça estrutural é inverter simetricamente o mecanismo: doravante, a mulher estará sempre certa. Isso tem se traduzido, na prática, em injustiças contra homens particulares. Denúncias de assédio sexual ou moral, relacionamentos abusivos ou até estupro são sumariamente acatadas, muitas vezes a contrapelo de suas evidentes inconsistência e inverossimilhança.

Ora, não há justiça sem o exame do particular. Justiça sempre se realiza por uma tensão entre o universal (dimensão do direito) e o concreto. A desqualificação prévia da palavra da mulher é, por isso, uma forma de não se fazer justiça. Mas a aceitação prévia da mesma palavra não o é menos.
Portanto, não: a vítima nem sempre tem razão. Isto é, sua razão estrutural não pode ser traduzida em razão prévia em quaisquer casos concretos.

Uma questão que se precipitou nas redes sociais foi a urgência de se delimitar aquilo que seria próprio de uma cultura. Falou-se em apropriação cultural, mas você retoma a questão lembrando de algo muito importante e que, de maneira alguma, coloca em detrimento os elementos singulares de uma cultura. Você nos lembra que a cultura não é algo estanque e fixo e que ela vive de um movimento de aproximações e incorporações num contágio que está longe de ser essencialista pois, se assim fosse, estaríamos encarcerados em códigos específicos que nunca atravessariam fronteiras. Junto desta questão uma outra que atravessa o livro é o “lugar de fala”.

Você aponta de maneira muito justa como aquilo que deveria ser o lugar de enunciação se tornou uma espécie de crivo que não leva em conta uma questão fundamental que é cara à psicanálise: o eu não coincide com o si mesmo. O eu, para a psicanálise, não é um auto- centramento, mas dispersão e encontro com a alteridade, pois se assim fosse não poderíamos ter um cineasta aristocrata como Luchino Visconti filmando em Rocco e seus irmãos a saga de uma humilde família de calabreses que emigrava para Milão.

Nesta mesma lógica, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro não poderia falar sobre índios, por não ser índio; a artista Claudia Andujar não poderia ter dedicado sua vida à proteção dos índios Yanomami; Freud não poderia ter escutado nenhuma mulher em sofrimento. Pierre Verger tampouco poderia ter sido um mensageiro entre dois mundos, que dedicou a maior parte da vida ao estudo da diáspora africana e documentou muitas culturas que logo desapareceriam sob o impacto da ocidentalização.

Há uma predominância de uma forma violenta de debate e a abordagem de questões de alta complexidade é feita, algumas vezes, via legitimação puramente identitária com o emudecimento do espírito crítico. E creio que dizer isto não é desqualificar aquilo que há de urgente e essencial em todas as lutas por igualdade, não é?

Sua questão toca num ponto decisivo no momento em que estamos. As estratégias de interdição dos discursos de ódio, chamadas de no platform, surgiram na esquerda identitária anglo-saxã com uma razão justa: impedir a difusão de ideias que pretendem revogar o encaminhamento moderno das sociedades. Por moderno designo o indeterminado, o não tradicional, a ausência de fundamento positivo do mundo. Moderno é o mundo que aceita todas as formas de vida, pois não crê em um fundamento metafísico (os monoteísmos, por excelência) a determinar a origem transcendental de um conjunto denormatividades (a heterossexualidade, a cisgeneridade, o que for).

Os chamados discursos de ódio (hate speechs) são discursos anti-modernos, reacionários, restauradores da tradição. Impedir que isso aconteça tem, paradoxalmente, um sentido libertário: garantir que qualquer possibilidade seja igualmente aceita. No fundo dessa prática há um problema complicado, mas que ela, ao menos da perspectiva teórica, me parece resolver corretamente: a liberdade e pleno reconhecimento do exercício social das formas de vida não tradicionais (lésbicas, gays, pessoas trans etc.) e dos indivíduos subalternizados por suas marcas identitárias (pessoas negras, mulheres, judeus, etc.) se sobrepõe à liberdade de expressão. Por isso seria legítimo proibir certos discursos.

O primeiro problema é que a direita se apropriou dessas práticas. O caso da passagem de Judith Butler no Brasil foi exemplar disso. É óbvio que a equivalência é apenas formal. O sentido é inverso: a direita pretende proibir a liberdade. Não há paradoxo, não há legitimidade, é puro arbítrio dogmático. E, entretanto, isso causa um problema estratégico, pois a direita pode defender a legitimidade de suas práticas como sendo práticas também da esquerda.

Mas há um outro nível ainda mais problemático. Não é assim tão óbvio determinar o que são discursos de ódio, quais são os discursos que devem ser evitados. Temos visto a esquerda tentar interditar discursos da própria esquerda, quando esses últimos não estão alinhados às diretrizes dos que, então, tentam proibi-lo. Aqui no Brasil já vimos casos como o do humorista Rafucko, que sofreu um protesto de ativistas do movimento negro por conta de obras artísticas suas tematizarem questões raciais. Nos EUA, feministas da universidade de Northwestern tentaram impedir a circulação de um artigo da também feminista Laura Kipnis, porque ela contestava as práticas feministas no seu campus. Tudo isso traz à tona uma vexata quaestio: quem pode determinar que discursos devem ser interditados?

Tudo somado, minha opinião é de que a esquerda deveria defender categoricamente a liberdade de expressão nesse momento. É melhor apostar no esclarecimento do que duplicar os mecanismos obscurantistas que estão tentando se apoderar da sociedade brasileira.

Há neste contexto um aplainamento de tudo aquilo que exige disposição legítima ao outro e uma ânsia por fazer parte da polêmica do momento, que acaba por invalidar toda e qualquer forma de pensar que cause uma fricção profunda entre campos, que crie ondas para além da tal “vivência”, do “lugar de fala”, do “protagonismo”, do “empoderamento”, da “empatia”. Estas palavras, já um tanto esvaziadas, não parecem conter em si o grão da dúvida, a possibilidade de tensionamento, visto que, repetidas à exaustão, foram inclusive incorporadas pelo capital e pelo discurso publicitário de maneira perversa. Precisamos reinventar a nossa escuta, a nossa fala, a nossa escrita?

Exato, esse campo discursivo tem uma tendência ao autoritarismo. Existe uma dificuldade nas lutas identitárias de aceitar o dissenso. As intervenções de sujeitos de fora do grupo são desqualificadas a priori por meio da carta, sempre à manga, do ad hominem. As tentativas de dissenso, de introdução de complexidade, de furo na convocação totalizante (por sororidade, por empatia etc.) sofrem intimidações imediatas. Minha impressão é de que há muita gente incomodada com esse estado de coisas, mas não tem coragem de se manifestar.

A despeito do meu profundo respeito e entusiasmo com todas as formas de luta, creio que o caminho não seja pedir desculpas eternas ao verdadeiro portador de uma voz soberana sobre qualquer assunto. No livro, você traz este ponto de maneira contundente. Pensa em alguma maneira de contornar a questão, de forma que as minorias perversamente invisibilizadas possam ocupar em pé de igualdade o direito de serem escutadas?

Esse ponto é interessante. Recebi críticas, aliás esperadas, de ativistas identitários dizendo que não leriam meu livro por se tratar dos argumentos de um homem branco, hétero, cis etc. Segundo essas críticas, o meu papel deveria ser me calar. E, se eu for mesmo um apoiador do sentido fundamental das lutas identitárias (promoção de igualdades), como me declaro, o papel que me cabe é tentar criar condições para que um melhor equilíbrio discursivo se estabeleça. É um ponto válido, não o descarto de saída.

Com efeito, como observou a escritora Juliana Cunha, ocorre uma autocontradição performativa quando se denuncia o desequilíbrio no acesso a espaços sociais de prestígio discursivo e, ao mesmo, tempo, se publica um livro, como faço, aproveitando-se de ter esse mesmo espaço franqueado a si. Verdade.

E, entretanto, a alternativa me parece bem pior. Calar-me significaria aceitar que determinados grupos sociais possam pleitear a exclusividade discursiva e política relativa a dimensões fundamentais da experiência social. Não penso que isso sejabom para qualquer democracia. Uma democracia saudável é formada pela pluralidade, pelas tensões, pelo equilíbrio.

Considero, assim, que meu papel como intelectual público é criticar o que me parece criticável e ao mesmo tempo contribuir, na medida em que posso, a equilibrar o espaço público. Em meu livro eu dialogo com diversas vozes que até outro dia estavam excluídas do debate público brasileiro. Dialogar com elas, estudar seus argumentos, aceitá-los e criticá-los, é um modo de relativizar aquela autocontradição performativa: ocupo o espaço, mas, ocupando-o, trago o outro comigo.

Ao final desta conversa quero assinalar a importância de seu livro e sua coragem de caminhar nesse território minado. Sinto que você acredita e persegue a possibilidade de diálogo, ainda que na discordância. É possível manter viva a crítica e ainda assim reconhecer a agudeza de cada voz, de cada pele, de cada lugar no mundo, de cada movimento que se estende na diferença radical do um a um. Podemos ter este reconhecimento cortante de nossos privilégios sem estarmos eternamente fadados ao cárcere reflexivo que inviabiliza qualquer forma de vínculo ético que nos coloque em contato com outras formas de viver, ocupar o espaço, amar e pensar.

Eu, como branco, nunca poderei lutar contra o racismo da mesma forma que um negro, que sente na pele, literalmente, a intensidade da violência social. Não tenho essa dor, e isso limita minha compreensão e meu engajamento. Minha diferença, portanto, é irredutível – mas há dimensões de encontro possíveis também. Esse encontro se situa precisamente na vida moral, no dever, na obediência aos imperativos éticos que trazem em si a perspectiva do outro. É preciso a um tempo operar com as diferenças irredutíveis (ignorá-las seria um gesto encobridor de tensões sociais) e com aquilo que, no sujeito, as ultrapassa.


BIANCA DIAS é ensaísta, psicanalista lacaniana e pesquisadora em arte e psicanálise.

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