A invasão do Capitólio e a bolsonarização de Trump
Incitados por Trump, supremacistas invadiram o legislativo norte-americano (Foto: Shannon Stapleton/ Reuters)
Quando a América resolveu ser grande novamente, nos idos de 2016, ninguém poderia prever que a grandeza escolheria a invasão ao Congresso, em janeiro de 2021, como apogeu de sua exibição. No luso hemisfério sul americano, 2016 havia sido marcado pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff, culminância de um processo de instabilidades políticas desencadeado após Aécio Neves – o mais imoral dos esquecidos – não ter aceitado a derrota nas urnas um ano antes. Coincidentemente, a grandeza a que se permitiu a América veio pelas mãos de um mau perdedor, que não aceitou a vitória de seu contendor. Em política, atitudes meramente performáticas, conquanto institucionalmente desprezíveis, têm impacto significativo sobre um imaginário popular insatisfeito e humilhado pela inépcia dos governantes ou pela antipatia aos representantes disponíveis. Foi o que deu azo a uma série de sabotagens parlamentares, no Brasil de 2016; foi o que galvanizou uma massa de trumpistas ao Capitólio, ontem.
Algumas peças da história política recente ajudam a montar o cenário com outras coincidências. Em 2016, o impeachment de Dilma Rousseff anunciava o nascimento da candidatura do mais trumpista dos tupiniquins, Jair Bolsonaro, aquele que homenageou, na queda de sua adversária política – portanto, uma colega –, o homem que a torturou física e psicologicamente – portanto, o pior de seus algozes. O então deputado acumulava um vasto currículo de afrontes à democracia e às instituições e acintes contra indivíduos e grupos, mas, em 2016, no Brasil e nos Estados Unidos, fervilhava um clima de rejeição ao politicamente correto e aos grupos progressistas que repercutiam essa mensagem e fechavam um ciclo de atuação no poder.
O Trump tropical era a consequência de movimentos no jogo político e da conjunção de fatores que constituíram uma unificável corrente de opinião contra o moralismo dos esquerdistas, a inércia institucional, os costumes políticos e uma série de carências sociais, entre as quais destacavam-se a violência urbana e a falta de segurança. Ao fim do ano, o anti-tudo Trump elegia-se prometendo fazer a América grande novamente; dois anos depois, o anti-tudo Bolsonaro seria eleito prometendo pôr o Brasil acima de tudo e Deus acima de todos.
Com bons resultados na economia, Trump marchava para a sua reeleição até vir o surto da Covid-19 e tudo mudar. Disposto a contrariar 2016, 2020 levantou suspeitas sobre o conceito trumpista de grandeza. A grandeza de um homem de Estado não está em alcançar bons desempenhos econômicos, mas na administração dos tormentos, das crises, das dificuldades nacionais que chegam com as contingências. A grandeza de um estadista é um combo de visão, responsabilidade, tenacidade e magnanimidade. Trump, disposto a contrariar esse combo, atravessou os meses do ano eleitoral sendo o mesmo anti-tudo de sempre: cego, moleque, intransigente e mesquinho. Fazendo das redes sociais palco para a difusão de acintes e afrontes, além de negacionismo e fake news – com o que dirigiu a libido de seus apoiadores – ele foi reincidente em cantar a vitória antes do tempo e em não reconhecer a derrota depois de consumada.
O 2020 brasileiro, segundo
ano de mandato do Trump
brasileiro, foi marcado pela
bolsonarização absoluta da
vida nacional.
Além das tragédias, assistimos a uma série de ataques às instituições no estilo mais trumpista de Bolsonaro, mas com muito mais contundência nos ataques do que o próprio Trump conseguiria, estando ele limitado por uma institucionalidade histórica bem mais robusta como a americana.
Bolsonaro convocou marchas e rebeliões contra os outros poderes, anunciou que ele era a Constituição, menosprezou o coronavírus, e, com mais regularidade e rapidez do que se poderia imaginar, desdisse ou relativizou tudo o que disse e fez. As pessoas, excitadas pelos posts e pelas atitudes do mito, estiveram dispostas a agredir fisicamente os outros em manifestações, a planejar ataques a pessoas públicas e até a simular bombardeamento a prédios institucionais. Sem a pretensão de dar grandeza ao Brasil, mas com a presunção de nos presentear com a verdade sem dizer qual, Bolsonaro seguiu repetindo os versículos de João 8:32 como as portas da liberdade nacional e segue contando com a cumplicidade de alguns influenciadores digitais, jornalistas e congressistas.
E então 2021 acorda com o fim da contagem dos votos das eleições presidenciais chancelando a vitória a um Joe Biden diplomado pela insatisfação do povo com a administração fanfarrona de Trump no momento sanitariamente mais dramático da história americana. Mas Trump, amuado e orgulhoso, através do Twitter de um assessor – pois que sua conta está bloqueada – convoca uma marcha de apoiadores contra o Congresso, contra a confirmação do rito institucional histórico da democracia americana – no estilo mais Bolsonaro que um presidente americano poderia reproduzir. Uma horda de supremacistas terminam por cercar e invadir o centenário edifício e entrar em conflito com a guarda parlamentar. Ao fim, foram confirmadas quatro trágicas mortes de manifestantes. Nesse cenário de conflito e pesar, 2021 nos concede, não sem alguma ironia, a mensagem de um representante da Venezuela sobre a circunstância: “Venezuela expresa su preocupación por los hechos de violencia que se están llevando a cabo en la ciudad de Washington, EEUU.”
Adotando ainda a vestimenta de Bolsonaro, Trump insinua, agora, desdizer o que disse, relativiza o conflito que estimulou e ainda revela estar disposto a fazer uma transição republicana com o seu sucessor. O conflito como retórica, o tumulto como moeda, a instabilidade institucional como instrumento político, eis as condutas em sintonia de Trump e Bolsonaro que esses quase cinco anos deram aos dois imensos e parecidos países.
2016 e 2021 são unidos por assimetrias e coincidências no sítio político muito mais variadas do que as que destaquei. Mas o emblema da grandeza trumpista no episódio de depredação e vandalismo contra o Congresso norte-americano sugere que Trump teve, em 2021, um desfecho mais bolsonarizado do que Bolsonaro tivera um nascimento trumpizado, em 2016. Não é que Trump tenha sofrido influência indireta e muito menos que tenha sido aconselhado pelo amigo Jair, mas é que esse é o resultado compatível e coerente com a personalidade moral veementemente trombeteada por essas figuras, a da grandeza meramente verbal. A bolsonarização de Trump é, a rigor, o apequenamento da América, como o fora, aliás, a trumpização da presidência da República do Brasil.
Tiago Medeiros é doutor em Filosofia pela UFBA. Professor do Instituto Federal da Bahia. Membro do Laboratório de Estudos Brasil Profundo (IFBA) e do GT Poética Pragmática (UFBA).