Negacionismo histórico: entre a governamentalidade e a violação dos direitos fundamentais

Negacionismo histórico: entre a governamentalidade e a violação dos direitos fundamentais
Historiadores denunciaram as implicações negacionistas para a memória do passado nazista (Foto: Andrea Nardi/Unsplash)

 

 

Em seu conhecido A Era dos extremos, Eric Hobsbawm chamou atenção para a velocidade com a qual o mundo presenciou, ao longo do século 20, as experiências mais radicais de ódio na política, materializadas em crimes de massa perpetrados por Estados autoritários que negavam a humanidade de certos grupos sociais. Esse “breve” século 20 foi também capaz de produzir, segundo o historiador francês Henry Rousso, formas inéditas de negação desses crimes que, tomadas em conjunto, fazem parte do horror e não de fenômenos distintos a ele.

Popularizado por Rousso, o termo negacionismo invadiu a cena pública do mundo ocidental do pós-guerra quando alguns indivíduos alcançaram popularidade ao postularem que o extermínio dos judeus havia sido uma gigantesca farsa histórica patrocinada por poderosos interesses políticos e econômicos ligados ao Estado de Israel e ao movimento sionista internacional. Negacionistas como Robert Faurisson, David Irving, Ernst Zundel e Roger Garaudy, entre outros, procuraram legitimar seus lugares no campo intelectual ao afirmarem que suas teses falaciosas eram “revisionismos históricos”, elaborados por meio dos procedimentos metodológicos obrigatórios do trabalho do historiador: levantamento e exame crítico das fontes, construção de hipóteses explicativas e formulação de conclusões objetivas.

Ao estabelecerem indevidas relações de equivalência entre as teses negacionistas e o legítimo exercício de revisão historiográfica, alguns setores da imprensa, da política e da comunidade acadêmica da França naturalizaram formas de falsificação do passado que, como demonstrou a historiadora Deborah Lipstadt, não passavam de um “revisionismo ideológico”. No campo da política institucional, o negacionismo fincou raízes no mais importante grupo partidário da extrema-direita francesa, o Front National. Jean-Marie Le Pen, um dos seus fundadores e notório negacionista do Holocausto – processado e condenado em última instância por isso – chegou ao segundo turno das eleições presidenciais de 2002, o que também ocorreu com sua filha, Marine Le Pen, na disputa eleitoral de 2017. Durante a campanha, Marine afirmou que a “nação francesa” não era responsável pela deportação de 13 mil judeus para os campos de concentração, mesmo que a colaboração com o nazismo seja reconhecida pelo estado francês desde 1995. Apesar de derrotada, a candidata do Front National teve quase 35% dos votos, mesmo depois de ser acusada pelo presidente israelense Reuven Rivlin de praticar um “negacionismo de tipo novo” ao negar a responsabilidade da França no Holocausto.

Por outro lado, a comunidade de historiadores prontamente denunciou as implicações éticas e epistemológicas do negacionismo para uma justa memória do passado nazista e para os direitos humanos de uma maneira geral, bem como para o campo histórico, em particular. Em seu já clássico Assassinos da memória, Pierre Vidal-Naquet inaugurou um significativo conjunto de obras historiográficas que desmontou as falácias antissemitas e ideológicas produzidas por indivíduos como Robert Faurisson, explicitando que os negacionistas são: revisionistas ideológicos e inescrupulosos falsificadores do passado.

Por isso, não tardou para o combate à negação dos horrores do Holocausto atingisse a esfera jurídica. Um dos casos mais notórios foi o do britânico David Irving. No ano 2000, ele não apenas foi derrotado em um processo que moveu contra a historiadora americana Deborah Lipsdat, que o havia chamado de “o mais perigoso falsificador da história”, como foi sentenciado pelo juiz Charles Gray como “antissemita, racista, polemista de direita e pró-nazista”. Lipstadt havia demonstrado, em seu Denying the Holocaust, publicado em 1993, que Irving manipulou fontes históricas para negar o papel de Adolf Hitler na morte de milhões de judeus, para diminuir o número dos mortos nos campos de concentração e para afirmar que nenhum judeu perdeu a vida nas câmaras de gás.

Os exemplos citados sugerem pistas importantes para o argumento central deste artigo. A primeira delas é que não se deve simplificar o entendimento do negacionismo histórico, reduzindo a complexidade do problema ao baixo repertório cultural e intelectual dos falsificadores da história. Mesmo que os negacionistas sejam pessoas moralmente condenáveis, não estamos diante de um problema cognitivo.

 

Parece-nos adequado pensar o negacionismo
histórico como o elemento estruturante de uma
certa governamentalidade contemporânea,
compreendida, em termos foucaultianos, como um
conjunto de instituições, procedimentos, análises e
táticas que adquirem sentido e forma quando
articuladas pelo negacionismo histórico.

 

 

Essa “governamentalidade negacionista” implica o exercício de uma forma específica de poder que tem por alvo um setor – ou setores – da população, cuja eliminação real ou simbólica legitimará as ações violentas de outro setor social organizado em uma “máquina de guerra” – também uma “máquina negacionista” – comandada por um líder que, não raro, se apresenta como antissistema e toma para si a missão de ocupar o Estado, negar sua relevância e centralidade para, ao fim e ao cabo, destruí-lo. Essa forma política parece estar transitando da necropolítica, de acordo com o conceito desenvolvido por Achille Mbembe – na qual o Estado define quem deve viver e quem deve morrer – para o Estado Suicidário, nos termos de Paul Virilio e Vladimir Safatle, um experimento novo em que o Estado é o ator de sua própria destruição na fase terminal do ultraliberalismo.

Chegamos, assim, ao nosso argumento central:  considerando o nível de produção material e simbólica das sociedades contemporâneas, de acesso a produtos e serviços, de direitos sociais conquistados por movimentos sociais organizados, de produção científica e de acúmulo político para a redução das desigualdades estruturais, a extrema-direita que viabiliza a necropolítica e o Estado suicidário só consegue ser eleita e se conservar no poder por meio da governamentalidade negacionista, na qual o negacionismo histórico atua como variável determinante.

Não há discordância entre os especialistas sobre o fato de que o momento inaugural do negacionismo se dá no próprio ato de exterminar os indesejáveis de uma determinada sociedade, mas não se encerra nele. A máquina genocidiária também precisa perpetuar o horror para continuar subjugando determinado grupo social, e a maneira mais eficaz é deixar o trauma das vítimas de um genocídio em suspensão, destruindo as condições de possibilidade para que um fato seja pensado como tal. Como aponta o crítico franco-armênio Marc Nichanian, esta negação original é a aniquilação da factualidade do fato, e a negação do direito à memória e da crença de que a escrita da história é o caminho possível para a restituição da experiência pura. Nichanian também chama a atenção para os infindáveis testemunhos e depoimentos dos sobreviventes das diversas formas de terror obedecerem aos perpetradores genocidiários que, a todo o momento, demandam provas dos crimes por eles praticados e negados.

Na lógica genocidiária, não basta o aniquilamento de milhões de pessoas nos campos de concentração, pois a morte seriada, como destacou o sociólogo argentino Daniel Feierstein, deve se completar no espaço das representações simbólicas por meio de determinados modos de narrar e de representar a experiência do aniquilamento. Essas formas de elaboração devem gerar outros modos de articulação social entre as pessoas, redefinindo identidades e reconfigurando imaginários históricos, os quais, não raro, se traduzem em reações nostálgicas e mitificadas de passados que, mais ou menos distantes, são destituídos de todas as tensões e conflitos sociais.

 

A hipótese que aqui ensaiamos é a de pensar o
negacionismo como um destes procedimentos
simbólicos responsáveis pela “realização”
completa do horror, ao mesmo tempo que se abre
para novos horizontes de expectativa.

 

 

Um negacionista nunca é apenas um negacionista; é também um ideólogo que diz como deve ser o futuro por meio da falsificação histórica do passado. O negacionismo, segundo Bruno Latour, pode assim ser visto como uma forma de escapismo, de reencantamento do mundo, e uma reação à impossibilidade de fugir de nossa tragédia original na Terra.

A simples negação ou o esquecimento absoluto não permitiria a formulação simbólica plena da experiência genocidiária e tampouco constituiria algum tipo de utopia autoritária, objetivo final da governamentalidade negacionista. Para que haja ampla identificação entre os indivíduos e o desejo de um futuro autoritário e violento, os falsificadores históricos precisam estabelecer relações de equivalência ético-epistemológica entre suas falsificações históricas destituídas de compromisso moral e os depoimentos das vítimas e as produções históricas que denunciam esses genocídios.

Para tanto, os falsificadores do passado precisam mobilizar mecanismos mais subterrâneos de subjetivação negacionista e fortalecer modos implícitos de negação, de acordo com o psicólogo Israel Charny. Ainda que os negacionistas históricos elejam preferencialmente grandes eventos traumáticos, como genocídios e outras formas de horror estatal e violações dos direitos humanos, a forma mais difundida de negação é a chamada “negação inocente”, que pode se manifestar de várias formas.

A primeira delas é por meio de um processo psicológico de defesa contra experiências traumáticas, caso do cantor Geraldo Vandré, violentamente torturado, mas que até hoje nega publicamente a existência de tortura nos porões da ditadura civil-militar no Brasil. A “negação inocente” também ocorre no espaço das opiniões em uma sociedade democrática e plural quando, por exemplo, um programa de televisão quer “ouvir os dois lados” sobre assunto médico e convida um cientista e um negacionista científico, estabelecendo relação de equivalência entre quem tem compromisso com a vida e quem tem compromisso ideológico com uma extrema-direita cujo negacionismo pode acarretar na morte real e simbólica de milhares de pessoas.

Não à toa, entre os teóricos do Direito Penal há relativo consenso em torno da ideia de que a sua não penalização dos negacionistas estimulam falas da nossa trivialidade cotidiana que transformam experiências individuais em negacionismo histórico: “eu estive lá e não era assim como você está dizendo”. Quando amplamente divulgado nas redes sociais e na esfera pública, esse tipo de negacionismo histórico desenvolve e dá forma a um sentimento de pertencimento a um grupo ou comunidade liderada por alguém que mobiliza o ativismo do negacionismo histórico para dar base de sustentação social para governos autoritários dispostos a desautorizar (eliminar) pessoas e falsificar narrativas.

Diante da possibilidade de surgimento de outros regimes autoritários com práticas genocidiárias e do dever ético de evitá-los, os dispositivos jurídicos existentes nos diversos estados europeus foram acionados na formulação das chamadas Lois Mémorielles que penalizam criminalmente os negacionistas históricos dos crimes de lesa-humanidade. Isso foi possível porque um conjunto articulado de especialistas de diversas áreas, incluindo os do Direito Penal, forneceu contribuições significativas sobre o tema, chamando atenção para o fato de que o “negacionismo histórico” não é um ato a parte do genocídio ou de outra forma de violação dos direitos que se queira negar. Ao contrário, ele é a última etapa do genocídio, o que irá perpetuá-lo indefinidamente e, portanto, não pode ser qualificado como uma questão de liberdade de expressão, mas como um problema grave de violação da dignidade humana, a essência dos Direitos Fundamentais.

As leis que criminalizam a negação do Holocausto – e também de outros genocídios – sempre geraram controvérsias entre os historiadores a respeito dos usos da história pelos sistemas judiciais. Para os historiadores franceses contrários à penalização dos negacionistas históricos e signatários do manifesto Liberté pour l´histoire, de 2005, as leis memoriais são “indignas” porque: 1) o conhecimento histórico não pode ser instrumentalizado por nenhum poder que lhe seja externo; 2) a judicialização do passado representa uma grave ameaça à liberdade de expressão e ao trabalho de pesquisa; 3) leis contra o racismo e o ódio racial são instrumentos jurídicos já utilizados na condenação de negacionistas, como demonstramos no início deste artigo.

 

A vivacidade do debate sobre a penalização dos
negacionistas históricos reatualizou as discussões
sobre os limites e as possibilidades das relações
entre história e direito.

 

 

Se considerarmos a vigência da única lei que possui uma norma penal aplicada por juízes na repressão ao negacionismo do Holocausto na França, a Lei Gayssot, de 1990, não parece ter havido qualquer restrição ou ameaça ao trabalho dos historiadores franceses e nada parecido a uma “história oficial” foi instituído. Ao contrário, pois a Lei Gayssot, não faz mais do que assumir, em seu texto, fatos históricos já estabelecidos, há muito tempo, pelos historiadores.

Assim, para Israel Charny e Daniel Feierstein, a compreensão das diferentes formas de negação é o ponto de partida fundamental para a formulação de campanhas mais eficazes de enfrentamentos em várias esferas dos falsificadores do passado e revisionistas ideológicos – grupos que mobilizam as estruturas fundamentais de sociedades democráticas, como a liberdade de expressão e os princípios do respeito à diversidade e à tolerância, para atacá-la. A penalização jurídica do negacionismo histórico como violação dos Direitos Fundamentais e a urgente necessidade de proibir a divulgação desses conteúdos na esfera pública, portanto, só ocorrerá por meio de políticas públicas elaboradas em parceria por um judiciário comprometido com os princípios republicanos e democráticos e um conjunto de historiadores e sua associação representativa comprometidos eticamente com a dignidade humana.

Patrícia Valim é professora de História do Brasil Colonial no Departamento de História e no Programa de Pós-Graduação em História da UFBA.

Alexandre de Sá Avelar é professor adjunto II do Departamento de História da UFU.


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