Fake news se resolve com leis?

Fake news se resolve com leis?
(Foto: Immo Wegmann/Unsplash)

 

No domingo (2) foi ao ar uma grande matéria no Fantástico sobre o banimento, realizado pelo Facebook, de um conjunto enorme de contas inautênticas cuja função básica era servir para o escoamento da produção de fake news e teorias da conspiração do bolsonarismo, além de servir de recursos para as ações coordenadas de satanização dos adversários do governo e para as campanhas de difamação e detratação do Congresso e do STF. 

No mesmo dia, o youtuber e influenciador digital Felipe Neto, que passou a enfrentar diariamente as matilhas digitais do bolsonarismo, deu uma entrevista ao vivo na Globo News, com imensa repercussão. Felipe Neto não apenas critica os novos obscurantistas digitais, anticiência e anti-intelectuais do campo da direita – que emergiram para a esfera pública para fazer campanhas de manipulação e de enganos a serviço da politização bolsonarista da pandemia de coronavírus -, como também critica o comportamento de certo jornalismo brasileiro que abre suas bancadas e câmeras para negacionistas do vírus, militantes antivacina e promotores de medicamentos improváveis sob o pretexto de dar espaço para os dois lados. Quando um dos lados, certamente, deveria ser devolvido para as sombras de onde veio. 

Felipe Neto, aliás, só chegou à bancada da Globo News porque se tornou uma voz constante e um símbolo do que significam as ações coordenadas para assassinato de reputação. Pela simples e evidente razão de se ter tornado o influenciador digital que mais direta e explicitamente colide com o bolsonarismo, as milícias digitais têm devotado considerável esforço para difundir fake news em que ele e o irmão são apresentados como pedófilos. 

Isso tudo para dizer que as fake news e a família de comportamentos digitais antidemocráticos associados a elas chegaram, definitivamente, ao centro do debate público. E naquela fase em que as instituições estão febrilmente tentando produzir respostas. Tem a CPMI da Câmara e do Senado e tem a CPI das Fake News da Assembleia Legislativa de São Paulo. Tem o inquérito do STF e tem o legislativo nacional tentando produzir leis. E tantas e a tal ponto que, segundo o site da Câmara, chegamos a ter 50 projetos de leis concomitantes para coibir as falsas notícias de internet. Agora queremos leis e punições, razão pela qual o PL 2630/20 avançou tão precipitadamente, aproveitando a onda de indignação pública, de modo que já foi aprovado no Senado e está neste momento em discussão na Câmara dos Deputados. 

Ao contrário de alguns colegas, eu adoto uma posição intermediária entre os que acham que todo problema social (inclusive as fake news) se resolve com novas leis, e os que acham que é um sacrilégio legislar sobre matérias que envolvam liberdade de expressão e opinião. A primeira mentalidade é típica de parlamentares brasileiros e estimula um comportamento que pode ser chamado de fúria legiferante, que leva os corpos legislativos brasileiros a uma exaltada produção de leis, como se por meio de normas estivessem resolvendo efetivamente todos os nossos imensos e complexos problemas sociais. A segunda é uma mentalidade ultradefensiva liberal que tem medo de que novas normas em matérias que envolvam publicação de opiniões impliquem em novas brechas para que o Estado limite a esfera pública, a pluralidade de vozes nela presentes, enquanto aumenta o risco da criminalização da divergência e da opinião. 

Não acho que a questão das fake news em particular, nem que o problema da orquestração de comportamentos antidemocráticos online (como assédio, linchamento, ataques coordenados, exposição de vida privada, teorias da conspiração, ameaças, assassinatos de reputação, incitação à violência política), em geral, possam ser resolvidos simplesmente com novas normas. Acredito, entretanto, que, eventualmente, faltem tipos penais para enquadrar novos ilícitos. Ou que, eventualmente, é preciso deixar claro na lei que os comportamentos antidemocráticos digitais por meio dos quais se assassinam reputações, engana-se a população e se assediam pessoas não podem mais ser tolerados, como o foram por quatro anos e meio, que é o tempo em que os ambientes digitais viraram terra sem lei, com arruaceiros, pregadores e fanáticos políticos da extrema-direita se impondo à base de mentira, manipulações, enganos, constrangimentos e/ou ameaças. 

O problema deste PL 2630/20 em particular consiste em prometer uma lei sobre liberdade, transparência e responsabilidade na internet, mas o que pode entregar é basicamente um marco legal sobre a responsabilização das empresas de plataforma. Ele não cuida dos outros atores envolvidos na cadeia produtiva de fake news, como os políticos, os falsários de informação, os financiadores e os beneficiários do sistema. Só se ocupa dos meios de transmissão e basicamente passando às empresas de plataformas e de mídias digitais a responsabilidade para controlar a disseminação de notícias falsas. 

Assim, de todo o processo de fabricação, financiamento e distribuição de falsas informações, a lei toma providências com relação ao tráfico e, mais especificamente, à logística. É como se fossemos combater as drogas controlando apenas o modo como elas trafegam, sem imaginar que o tráfico sempre pode encontrar outra forma de chegar ao consumidor se continuar existindo quem fabrique e quem consuma e, sobretudo, se permanecer dando lucro. No caso das fake news eu acrescentaria, se continuar sendo uma atividade relativamente segura e lucrativa para quem fabrica informações falsas. Segura, porque nada há na lei que lhes incomode, e lucrativa porque os custos da produção são amplamente compensados pelo que as fake news proporcionam em termos de manipulação da opinião pública.  

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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