Winnicott, a rainha Elizabeth e a monarquia britânica
Em 1970, Winnicott recebeu um pedido para escrever sobre a monarquia. Ele aceitou e escreveu o artigo “O lugar da monarquia”, mas especificou que trataria apenas da monarquia na Grã-Bretanha. Ele tinha suas razões. Não era um conhecedor profissional de teorias políticas da monarquia e tampouco era especializado em história dessa forma da vida social.
Por que então aceitou? Ele aproveitou o ensejo para aplicar – como o fez, desde 1940, ao tratar da democracia – sua teoria do amadurecimento humano à sua experiência de conviver cotidianamente com a monarquia. Não sendo certamente frequentador do Buckingham Palace, morava bem perto e tomava diariamente conhecimento, pela bandeira hasteada ou recolhida no mastro do Palácio, se a rainha estava ou não em sua residência. Não raramente, saindo de táxi para algum compromisso, Winnicott ficava parado no trânsito provocado pelo carro dela que saía do palácio, indo exercer alguma função que fazia parte do seu papel, no qual é mantida pela maioria dos britânicos, ele inclusive, e cujo cumprimento é exigido por todos.
Mesmo praguejando contra a rainha que o atrasa, ele está ciente de que é preciso manter a formalidade, a deferência, a distância respeitosa e toda a parafernália da realeza que ela representa. É provável que essa mulher, que é a rainha, esteja igualmente odiando isso tudo, mas ninguém saberá, e não é de modo algum o caso de querer ter qualquer acesso aos detalhes da sua vida pessoal, pois só permanecendo remota essa mulher poderá manter seu valor enquanto sonho e ocupar um lugar na área dos mitos, sendo, portanto, um suporte para uma vida sadia, que inclui a capacidade de sonhar. Sem esse valor, ela não passaria de uma vizinha.
Ao escrever sobre a democracia, em 1950, Winnicott usa a mesma abordagem pessoal. Não trata da democracia como um sistema político, nem como um processo histórico, mas como um modo de vida social relacionado a fatores emocionais e a ideias latentes, que emergem ao longo do processo de amadurecimento.
Haveria um sentido latente, inconsciente, da democracia, que faz dela uma aliada da maturidade individual de seus membros sadios. Essa é a razão pela qual uma sociedade democrática precisa do mecanismo objetivo, protegido, seguro da máquina democrática, pelo qual o povo pode tanto eleger como se livrar de seus líderes – e daí a ideia de voto secreto –, assegurando, assim, a liberdade a cada indivíduo de expressar seus sentimentos profundos de aceitação ou rejeição. Ao mesmo tempo, o exercício do voto secreto impõe-lhe, se ele for sadio o suficiente para tanto, a responsabilidade total pela escolha feita e suas consequências. O exercício do voto secreto ativa, assim, o processo de identificação cruzada com a sociedade, que consiste em apresentar como seus, estritamente pessoais, os problemas de realidade social e, inversamente, projetar sobre a sociedade os resultados da sua luta interna.
Ao se falar da Grã-Bretanha, é sempre preciso repetir, diz Winnicott, que o funcionamento do sistema democrático parlamentar nesse país, em oposição à ditadura tipo Cromwell, depende, para sua estabilidade e aceitação popular, da sobrevivência da monarquia. Inversamente, a sobrevivência da monarquia, a manutenção do homem ou da mulher que ocupa o trono real e do princípio de hereditariedade, depende da existência da máquina democrática que permita ao povo sentir-se em condições de remover líderes do poder ou derrubar governos por meio de uma eleição direta ou parlamentar. Presume-se, aqui, que a derrubada de um líder ou de um governo precisa ser feita em votação secreta, a única que consegue dar expressão à motivação inconsciente ou ao sentimento profundo, ou ainda, às tendências paradoxais de destruir o que se quer impulsivamente.
A troca de uma figura política ou de um partido envolve um processo essencialmente conflituoso, pessoal e socialmente. A monarquia pode diminuir o nível de tensão e dar origem a um sentimento de confiança nas instituições, o que é muito bem-vindo num país como a Grã-Bretanha, em que o cenário político é periodicamente tumultuado, como aliás não pode deixar de ser. Essa é uma das razões por que a monarquia é mantida, ilógica e emocionalmente, de modo permanente, como garantia de segurança.
Também o governo é derrubado ilogicamente e, pelo menos em parte, pela motivação emocional inconsciente, de dar vida nova a tudo que é antigo, velho e arcaico, depois de tê-lo destruído – veja-se a derrota eleitoral inesperada de Churchill, vencedor da Segunda Guerra Mundial, logo em julho de 1945. A essência da democracia britânica é a divisão do Soberano em rei e primeiro-ministro. Na variação americana do Estado democrático, o presidente é o chefe de governo, mas por um período limitado, o que está se revelando, nos dias de hoje, uma fonte de instabilidade institucional e emocional desse país.
Como surgiu a monarquia britânica? Aplicando sua teoria de amadurecimento, Winnicott diz tratar-se de uma aquisição maturacional coletiva, alcançada gradativamente, de uma maneira específica e criativa, pelos indivíduos que compõem os povos da Coroa britânica. Geograficamente, a monarquia se originou numa Ilha; humanamente falando, na área intermediária de transição do sono para a vigília, da vigília para o sono; e do sonho ou realidade psíquica para a realidade externa; transição esta que ocorre no espaço/tempo de todas as possibilidades de realização, lugar de experiências criativas, lúdicas e culturais, infinitamente variadas. Se olharmos para as coisas como sugere Winnicott, percebemos que a maior parte da vida dos adultos, adolescentes, crianças e bebês é vivida nessa área intermediária. A própria civilização poderia ser descrita nesses termos.
Nesse lugar, na vida do bebê, um pedaço de pano, ou um ursinho, junta os dois lados da situação de transição: é uma criação subjetiva, uma posse pessoal, e, ao mesmo tempo, é símbolo de uma mãe ou de um elemento materno (ou paterno) externo, efetivamente encontrado, continuamente disponível, estável, e, por isso, essencial para sua segurança e alegria, para a sua saúde maturacional.
Na vida adulta, em termos da monarquia, o homem ou a mulher que estão no trono, com as caraterísticas de todos os seres humanos, atualizam, encarnam, ainda que de forma paradoxal e ambivalente, esse mesmo sonho de estabilidade. No centro disso tudo existe, diz Winnicott, uma mulher (ou um homem) que tem, ou não tem, a capacidade de existir sem reagir à provocação, até que, na hora da sua morte, um sucessor hereditário assuma a responsabilidade.
Carga terrível, acrescenta Winnicott, não só de sobreviver aos ataques sem retaliar, mas de viver longamente – de se manter vivo como objeto confiável de amor e veneração – e de sobreviver como dinastia, na série potencialmente infinita de seus herdeiros como garantia da continuidade da vida da nação. Carga aumentada pelo fato de que, a todo momento, em meio a todos os tipos de solicitação, de ataques e de sinais de veneração, existe, na vida de um monarca e da família real, um grau, sem paralelo, de exposição à solidão, individual e grupal.
Com a monarquia estabelecida, abre-se, e se mantém aberto, o mundo social como espaço/tempo que existe por si, não como lugar de medo, de complacência ou de derrotas, mas como lugar para se viver por conta própria e cada qual fazer suas coisas. Quando isso não se dá, o mundo social pode ainda ser sustentado pelo devaneio ou pelo fantasiar. Ou pela mera ideologia. Traço essencial da mãe que sobrevive é o fato de ela não reagir, revidando, à voracidade do bebê. A voracidade é destrutiva apenas se a mãe se deixa provocar e retalia. Analogamente, o monarca constitucional pode não reagir aos ataques de caráter pessoal ou mesmo político; isto porque sua personalidade não está implicada em suas funções constitucionais. E suas opiniões políticas podem não ser divulgadas ou legitimamente tratadas como acima das lutas políticas.
Num país que não é muito grande, que é uma ilha, que tem uma história milenar quase ininterrupta de monarquia, sem nenhuma fronteira exceto o mar, sem vizinhos (exceto os irlandeses!), é possível manter um sistema político com o governo podendo ser periodicamente destruído, enquanto a monarquia permanece indestrutível. Outro ganho decisivo para a democracia britânica – que é, num aspecto essencial, reflexo dos assuntos de família sobre o quadro social – consiste em ela permitir aos súditos verem uma rainha como mãe ou um rei como pai, que cuida de todos.
Os sonhos referentes à realeza não são sempre protetores, longe disso. Para todo britânico existe uma pergunta permanente e vital: será que Deus salvou a rainha/o rei? O perigo de morte, antevista nessa dúvida, é encoberto logo por uma exclamação também tradicional: “A rainha/rei está morta/o, longa vida à rainha/ao rei!”. Os sonhos dos britânicos com as rainhas e os reis não se referem apenas à sua sobrevivência individual como provedores confiáveis de cuidados e serviços, mas dizem respeito também à vida propriamente dita de cada um deles ou delas e à continuidade da dinastia.
Onde há vida, há morte. Winnicott entende que a exclamação não conjura, no mais profundo, a morte morrida, mas a morte na intenção inconsciente dos seus súditos. Como todos os outros seres humanos, eles não podem deixar em paz o que é bom. Têm que ter o que é bom (no caso, a monarquia confiável) e, ao mesmo tempo, poder destruí-lo (no limite, executar o rei ou a rainha). Como entender esse paradoxo?
Não por qualquer pulsão de morte. Winnicott usa como modelo de análise a parte inicial da sua teoria do amadurecimento, que trata da destrutividade inerente ao impulso amoroso primitivo, do fogo da vida que anima e ilumina, mas que também, dependendo das condições ambientais, queima e destrói. O que é bom no início da vida, é a mãe que sobrevive ao uso excitado e voraz do bebê acordado, acompanhado de ideais e fantasias inconscientes ou, do bebê dormindo, de sonhos de sua destruição. Se ela não reage, como em geral acontece, ela sobrevive e é amada e valorizada. Ela passou pelo teste do uso incompadecido e sem proteção pelos impulsos primitivos e ideias que os elaboram e acompanham.
Mais adiante no processo de amadurecimento, toda a família passa pelo mesmo tipo de teste. Surge a figura conflituosa, paranoide: “Eu sou o Rei do castelo, você é o patife sujo”. Mais adiante ainda, entre adultos, a monarquia é exposta à mesma prova. Se o rei ou a rainha permanece no trono, na posição e na postura que é a da realeza, apesar dos sonhos e das fantasias inconscientes dos seus súditos, e a despeito dos aspectos pessoais do monarca e da dinâmica da vida da família real (nascimentos, mortes, casamentos, divórcios, negócios, escândalos), então é porque existe de direito próprio e tem atributos que são reais e não sonhados nem fantasiados, nem impostos pelo domínio público. E porque é estável e, se interrompida, tende a se restabelecer.
O Rei Charles I foi processado, condenado e executado por alta traição em 1649, a monarquia foi abolida e a Inglaterra estabelecida como república. Cromwell forçou a exceção, dissolveu o Parlamento e se tornou Lord Protector da Inglaterra. Depois de sua morte, em 1660, a monarquia foi restaurada e o filho mais velho de Charles I foi coroado rei Charles II. Isso faz pensar, diz Winnicott, que Cromwell ajudou os ingleses a ver que um ditador bom pode ser pior que um rei ruim.
É justamente aqui que o princípio de hereditariedade entra em jogo. Este homem (ou esta mulher) encontra-se no trono real, em funções definidas institucionalmente, não por sua própria escolha ou nossa, ou por voto político, ou por mérito, ou por direito divino medieval, mas por simples hereditariedade, pela série ininterrupta de gerações da sua família, da dinastia real. Esse é o seu destino, composto de aspectos públicos e estritamente particulares, reconhecidos e valorizados pela maioria dos britânicos.
A história de mil anos da monarquia da Ilha pode ser rapidamente destruída, de várias maneiras – por teorias erradas do amadurecimento humano individual e social, pelo jornalismo invasivo ou por aqueles que só enxergam na monarquia um conto de fadas, ou uma encenação teatral da corte real. Entretanto, a sobrevivência da monarquia constitucional britânica não depende da psicologia, das teorias políticas ou da propaganda política. Depende da preservação das condições, abstratas e factuais, que possibilitaram o seu surgimento e sua preservação como objeto cultural:
- as suas próprias qualidades internas como forma de estruturação da vida social – de seu lugar na arena política ao lado do parlamento;
- os sonhos e o potencial inconsciente dos povos britânicos, isto é, a capacidade desses povos de manter aberto o espaço potencial entre os indivíduos e a sociedade nacional, no qual a monarquia é criada e recriada como objeto cultural, e os sonhos de cada um se sobrepõem à realidade externa;
- lutas pela monarquia que marcaram a história da Inglaterra;
- esse homem ou essa mulher que ocupa a posição de realeza e a natureza da família real;
- a sorte;
- a saúde psiquiátrica geral da comunidade, sem grande proporção de pessoas ressentidas pela privação ou doentes devido à privação em relacionamentos iniciais;
- o fato de a Grã-Bretanha ser uma ilha (mais precisamente, um conjunto de ilhas); e assim por diante.
Algumas das lutas que cercaram a monarquia, que tiveram lugar no espaço potencial dos povos britânicos, que marcaram a história do seu desenvolvimento e continuam até hoje nas condições atuais, são retratadas de modo incomparável nas Histories de Shakespeare, poeta, não das encenações teatrais da corte, mas do teatro universal do mundo, do mundo-cena, no qual todos os homens e mulheres são meros atores, que têm suas entradas e saídas em cena e desempenham os mais variados papéis de acordo com os estágios de amadurecimento – os de bebês, estudantes, amantes, soldados, juízes e velhos; e, em meio a tudo, os papéis de reis ingleses, o de Henry V, por exemplo, herói da unificação nacional (We few, we happy few, we band of brothers) ou o de Richard III, antissocial usurpador da coroa, destituído por força (A horse, a horse, my kingdom for a horse!).
Winnicott não é sentimental sobre a realeza e a família real, mas leva a monarquia a sério. Ela é resultado do processo de amadurecimento de indivíduos e de povos da Grã-Bretanha ao longo de uma história que é só deles. Sem a monarquia, Winnicott assevera, a Grã-Bretanha seria um lugar muito diferente para se viver. E deixa de lado uma outra pergunta: será que a alternativa à monarquia seria melhor ou pior? Não a propõe como uma receita, ela não pode ser exportada, assim como também não o pode a democracia. Ambas são criações culturais de histórias coletivas essencialmente locais, que, não obstante, podem ser entendidas em termos da teoria geral do amadurecimento humano.
O artigo termina numa nota de agradecimento à Rainha Elizabeth. No momento, era 1970, temos sorte, diz Winnicott. Todos os britânicos podem se beneficiar amplamente dos esforços que a Rainha vem realizando e que são inseparáveis da grande honra e do privilégio de ela estar no trono desta terra, uma terra que não é muito grande, que é cercada pelo mar, e que já inspirou uma música: A Nice Little Tight Little Island.
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Zeljko Loparic é filósofo, professor titular aposentado da Unicamp, fundador, com Elsa Oliveira Dias, do Instituto Winnicott e da International Winnicott Association. Publicou numerosos trabalhos sobre Kant, Heidegger e Winnicott. A totalidade da sua produção intelectual encontra-se disponível online em Acervo Loparic.