A voz que vibra de perto: “Azagaia”, de André Capilé

A voz que vibra de perto: “Azagaia”, de André Capilé

 

 

Em setembro de 2021, na sala da casa do editor Otávio Campos, André Capilé está sentado em silêncio em frente ao computador, aguardando o início do evento de pré-lançamento de Azagaia, quando leu o livro na íntegra via zoom. Além dele e do editor, outras seis pessoas espalhadas pelo cômodo esperam, sob uma luz quase azul e entre cigarros que se acendem e se apagam sucessivamente, o momento em que iriam começar a ouvir a história do livro ser contada em seus próprios versos. Não demora muito para que o ambiente seja tomado pela voz, pela presença e pelos poemas de André que, logo de saída, avisam justamente que: “há maneira diversa de contar a história./ contam-se os fatos, mostram-se as fotos e os feitos”. Já nos primeiros passos para dentro do universo de Azagaia, vem a constatação de que até “podia ser mais simples dar aos vencedores/ mais que o poder de venda: a vida”, mas não, não é isso que irá se repetir aqui.

A questão, entretanto, não é apenas (e nem exatamente) a alternativa de contar aquela que poderia ser uma versão dos “vencidos”, ou algo similar, e sim traçar a descoberta de uma subjetividade que brota em oposição ao que vem de fora e que é carregado da mais objetiva crueldade. Antes de se perceber como um indivíduo nas engrenagens da História, há o momento anterior ao entendimento, aquele de quando “a vida ainda não tinha esse tamanho/ do horror batendo à porta nos chamando”. Porém, quando a existência se expande e o chamado é atendido, o que ocorre justamente é “o averso em descobrir-nos pelo não”, imagem essa que é retomada algumas páginas à frente: “descobrir-nos pelo não, não nos diz,/ quando muito, em cada caco de pele/ que sobrevive à faca”.

Ao longo deste percurso, vamos nos deparar com uma voz que se constrói de forma muito própria, se desdobrando na linguagem possível e sendo atravessada todo o tempo por duas forças muito opostas: a violência do mundo e o afeto da casa. A primeira em momentos como

quando saí, pernas no mundo, ouvi:

volta logo pra casa — a escuderia le cocq,
a polícia mineira, o opala preto —

era voz de ameaça, palavra de ordem
moral e cívica que levou meus amigos

de infância

e a segunda, quando da figuração de um universo interior, íntimo, protetor, como quando lemos que

minha mãe me dizia da invenção
dos dias em que a fome não chegava,
e estava tudo bem — enquanto houvesse
coberta que montasse arca e ninho.

E até mesmo devido a essa oposição, é especialmente comovente e certeiramente elaborado quando esses dois espaços se entrecruzam, e, mesmo diante da aproximação da “máquina da morte”, os afetos se reconhecem, se aproximam, se sustentam: “nos vimos horizonte olhos nos olhos, / e o abraço que nos demos fortaleza / foi grão de resistir mas não por medo”.

É interessante observar, ainda, que em Azagaia esses espaços trazem uma representação possível de mundo exterior e histórico, mas vão além de uma construção simplesmente figurativa e realista, uma vez que o reflexo traz consigo os complicadores que fazem com que aqueles ali refletidos nem sempre tenham conseguido se ver retratados de pronto. Mais que uma nostalgia (verdadeira, porém talvez ingênua, se despida de um olhar mais demorado) que poderia, à primeira vista, tomar o leitor que se depara, por exemplo, com as imagens do subúrbio dos anos 1980-1990, como retratado na primeira parte do livro, é necessário enxergar que por trás do infraordinário que circunda o chiado das panelas de pressão nos quintais, o jogo de futebol que é metonímia da luta de classes ou os garotos de cabelo descolorido nadando na caixa d’água, há um mundo organizado de modo a engendrar o caos do sistema que espreita, oprime, assombra aquelas vidas que se desenrolam apesar de.

Em 2014, num ônibus que passava pela Gávea, de onde saímos, e por Botafogo, para onde estávamos indo, eu e André Capilé falávamos sobre Homeless, livro de Edimilson de Almeida Pereira; dali o assunto foi para o ritmo na poesia em geral e eu digo: “às vezes é o que vem antes pra mim”, ao que André ri e responde “pra mim é o que vem o tempo todo, é o que não para de vir, é o que está aqui, sempre”.

Desde as primeiras publicações, essa é mesmo uma questão central na obra dele. Algumas das características de seus livros anteriores – e que deságuam de modo especialmente sofisticado neste Azagaia – têm sido justamente o estranhamento da linguagem, que se apresenta a contrapelo, a sonoridade muitíssimo bem calculada tanto em suas coincidências como vazios, a desestabilização de lugares comuns e um ritmo que, ao mesmo tempo em que aciona o clássico, é atravessado pela oralidade, num trabalho com a rigidez métrica que, por muitas vezes, opera justamente no desvio.

Não se trata aqui, porém, de uma exibição técnica, na qual a essência do que se diz é deixada de lado para privilegiar apenas uma performance vazia da forma de se dizer.  É forma a serviço do conteúdo e conteúdo que perturba a forma, num domínio admirável dos mecanismos estruturais dos poemas, efeito este que se apresenta também em outros níveis além da leitura (o que pode ser facilmente recordado por quem já ouviu André entoando seus próprios textos).

Em 2007, na cantina do antigo Instituto de Ciências Humanas e Letras da UFJF, André Capilé, que até aquele momento eu não conhecia, me entrega um exemplar do jornal de poesia que tinha acabado de editar e diz: “então você também escreve? anota aí meu e-mail, me manda, vou te mandar umas coisas minhas também pra você ver qual é”. Lá se vão quase 15 anos e tenho, desde então, visto e ouvido qual é, quais são as vozes que vibram ali.

A primeira versão desse texto, inclusive, era atravessada por outras modulações. Gertrude Stein e a exaltação dos contemporâneos. Edi Rock e o espelho derradeiro da realidade. Josep Maria Esquirol e as estratégias de resistência íntima. Maria Homem e a psicanálise dos afetos. Entretanto, todos se retiraram para que apenas eu e André nos encontrássemos aqui, uma vez que isso não é exatamente uma resenha, é mais uma história, outra: a nossa.  É sobre a vivência de ler um poeta de muito perto e se sentir sempre muito perto dele, do que e de como ele fala, do que ele enfrenta e ilumina, mesmo antes de 2007, quando ainda existíamos, apesar de semelhantes, distantes.

E talvez seja também (mas não só) por essa proximidade de experiência de linguagens e de formas de estar no mundo que cada leitura deste livro me afete mais e mais, e faça com que eu me emocione quando, no evento de lançamento, André sintetiza: “Azagaia é um livro pra guerra: essa é a parada. Quem não entender, nem entra”. Não só entrei, como nele tenho morado. Azagaia é arma de guerra e também, talvez por isso, possa ser para muitos – e pra mim tem sido – “arca e ninho”.

Ler Azagaia é uma experiência bonita, autêntica e, até por isso, muitíssimo dura. Estar no mesmo tempo que um poeta como André Capilé, entretanto, é uma alegria: a sorte de ouvir essa voz e deixar que ela nos contamine a cada verso com a potência, a firmeza, a certeza de nos redescobrirmos cada vez “mais sólidos, também velozes,/ como a floresta, o enxame, a matilha e as escamas”.

 

Laura Assis é poeta, tradutora, editora e professora, com doutorado em Literatura pela PUC-Rio. É autora do livro Depois de rasgar os mapas (2014) e de textos literários e críticos publicados em veículos diversos no Brasil, Portugal, México, Dinamarca e EUA. Integra o coletivo editorial Capiranhas do Parahybuna, edita a revista ADobra e dá aulas de Língua Portuguesa e Literatura no CAp. João XXIII/UFJF.


por Redação

Em celebração ao centenário de Clarice Lispector,  o livro reúne 23 ensaios e depoimentos sobre a autora de A hora da estrela. Com especialistas de diversas áreas, a obra apresenta as diferentes leituras e perspectivas suscitadas pela literatura de Clarice, ressaltando sua contemporaneidade e as múltiplas veredas apresentadas em seus contos e romances. “Não se pretendia falar de Clarice como um monumento literário, aprisionado a um passado glorioso, nem tratar a sua obra como um arquivo já constituído. Queríamos celebrar a voz viva, presente e potente desta nordestina-ucraniana-judia-carioca-passageira-do-mundo”, como declara Júlio Diniz, organizador de Quanto ao futuro, Clarice.

Em edição bilíngue, a obra traz os 41 cantos do poeta italiano Giacomo Leopardi que, nas palavras de Otto Maria Carpeaux, são “a resposta moderna à Divina Comédia” de Dante. Escritos e reescritos entre 1816 e 1846, os poemas abordam as diferentes e significativas facetas da experiência humana: da felicidade agônica do amor à aspereza diante de uma natureza madrasta. Para o crítico norte-americano Harold Bloom, “somente Leopardi captou a nota precisa de exuberância ferozmente sombria de Lucrécio numa língua moderna. Certamente o maior dos poetas italianos desde Dante e Petrarca, Leopardi, como Wordsworth, inaugura a poesia moderna”.

Reunião de 45 ensaios que homenageiam e celebram o crítico literário Davi Arrigucci Jr. Em seis eixos temáticos, os textos desdobram as diversas faces da vida e da carreira do crítico: “o leitor arguto; o professor sem igual; o estudioso que revelou tantos veios profundos da literatura brasileira e das letras hispano-americanas; o escritor notável; o amigo precioso”, nas palavras de Samuel Titan Jr. em seu texto de apresentação. Como salienta Samuel Titan, no estilo de escrita muito pessoal de David Arrigucci “o ensaio crítico assume uma forma que afinal o vai aparentando menos ao discurso teórico e mais à própria trama simbólica do poema ou da narrativa”.

Em 40 ensaios de artistas, pesquisadores, críticos e curadores de arte contemporâneos, a obra traça um extensivo panorama das artes plásticas produzidas no Brasil desde o início do século 21. Dividido em seis seções — Panorama, Artevismo, Crítica/Curadoria, Pertencimento, Brasis e Territórios em disputa —, o livro não pretende cobrir a vastidão das artes produzidas nos últimos 20 anos, mas explorar suas linhas de força, rupturas e, principalmente, a magnetização da política na arte e como, através desta, o meio artístico funcionou à descoberta e exploração dos diversos Brasis que habitam e coexistem. Nas palavras do organizador Renato Rezende, “no momento de ruptura democrática e civilizacional que pelo qual o país atravessa, a arte mostra-se atenta e ativa em sua função de desbravar o impensado”.


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