Dança democrática
A economista Laura Carvalho, 34, autora de 'Valsa brasileira' (Foto: Felipe Felizardo)
Desde que publicou seu primeiro livro, Valsa brasileira (Todavia), Laura Carvalho, 34, tem cumprido uma agenda cheia. Só entre maio e junho, a economista fez nove viagens a seis estados em 14 eventos de lançamento em universidades, livrarias e espaços culturais pelo país. Com uma tiragem inicial de 10 mil exemplares, o livro chegou à terceira reimpressão no final de junho e, até o fechamento desta edição, permanecia na lista dos mais vendidos pela quinta semana consecutiva.
Ainda que tenha se surpreendido com a recepção calorosa à obra, que retoma o vai e vem da economia brasileira dos anos Lula ao pós-impeachment, Laura consegue enxergar com alguma nitidez os porquês de tamanha repercussão. “As pessoas estão começando a perceber que as soluções vendidas como permanentes para a crise econômica não estão dando certo. Há uma percepção de que a situação de vida delas não melhorou, e com isso abre-se espaço para visões alternativas”, afirma.
No livro, ela compara os movimentos da história econômica recente do país a uma valsa, que tem início em 2006 com o “milagrinho brasileiro” – o passo à frente na dança. O passo ao lado é representado pela desaceleração do processo de crescimento a partir de 2011, com Dilma, seguido por um grande passo atrás dado pelo governo Temer em seu desmonte do Estado de bem-estar social.
A imagem é didática e bastante representativa da maneira com a qual a economista escolhe conduzir a narrativa: por meio de metáforas, descomplicando a linguagem e retirando do texto os excessos de “economês”. É nesse ponto que muitos dos leitores parecem se sentir mais contemplados: “Nunca imaginei que um livro de economia pudesse ser tão deleitante quanto tem sido Valsa brasileira. A generosidade e o didatismo dessa mulher dobram qualquer leigo”, comentou no Twitter uma de suas leitoras.
O esforço de simplificação empreendido por Laura, doutora em economia pela New School for Social Research e professora da Faculdade de Economia e Administração da USP, começou a ser colocado em prática a partir de 2015, quando assumiu uma coluna semanal na Folha de S. Paulo. Naquele espaço, além de dialogar com outros economistas e influenciar o debate público em um momento de crise econômica, ela também desejava ser lida e compreendida por leitores de fora do espaço acadêmico e especializado.
“Muita gente acha que vocabulário técnico é sinal de conteúdo, quando muitas vezes, na prática, ele esconde a falta dele. E no caso da economia ainda pode servir como artifício para travar e limitar o debate democrático”, afirma a economista, que vê na clareza da linguagem outra razão para o sucesso do livro. “As pessoas podem usar o livro de diferentes maneiras. Algumas vão olhar mais para os números, para o conteúdo teórico empírico, e outras vão se concentrar na narrativa. Então tento fazer um pouco das duas coisas.”
Com Valsa brasileira, além de tornar o debate mais acessível, ela também tem por objetivo “oferecer um diagnóstico sólido para disputar uma interpretação desse período histórico”. Quando se encontrou com a reportagem da CULT, estava prestes a participar de um debate com André Singer sobre o novo livro do cientista político, O lulismo em crise, no qual ele defende que a política econômica de Dilma fracassou principalmente por motivos políticos; pela organização da oposição e a ascensão de um discurso anticorrupção que, no limite, desaguou no impeachment.
Laura discorda. “Eu acho que, na verdade, a política econômica de Dilma fracassa pelo seu próprio desenho. Não é uma agenda progressista, que teria gerado frutos para o conjunto da sociedade caso não tivesse havido o impeachment.” Isso porque, segundo a economista, Dilma implementou uma política econômica voltada às demandas dos setores industriais e empresariais, abandonando alguns dos pilares que contribuíram para o boom da economia brasileira com Lula, como a expansão do crédito e dos investimentos públicos.
Em vez disso, opta por uma agenda baseada na redução de juros, na desvalorização do real e em uma ampla política de desonerações fiscais que, na prática, funcionou mais como mecanismo de transferência de renda para os mais ricos. Os investimentos privados, que viriam como contrapartida ao pacote de incentivos do governo, não vieram, contribuindo para a deterioração das contas públicas e a desaceleração da economia.
“A crise que se aprofunda em 2015 já começava em 2011 na forma de uma desaceleração que espremeu a classe média, algo que contribuiu para a perda de apoio político do governo, fazendo com que a vitória [nas eleições] fosse muito mais estreita em 2014 e facilitando os processos que viriam depois”, analisa.
Uma das poucas mulheres a participar ativamente do debate econômico nacional, Laura Carvalho acredita que a sua atuação numa área predominantemente masculina, tanto na universidade quanto na imprensa, ajuda a quebrar o estereótipo do “homem branco do mercado” geralmente atrelado à figura do economista. “Esse anti-estereótipo, claro, me atrapalha para as pessoas que são cegamente fiéis ao discurso dominante, mas me ajuda para quem está começando a desconfiar dele.”
Entre essas desconfianças, está a percepção de que a adoção de uma política de austeridade, com redução do investimento público e corte de gastos em setores sociais, não proporcionou a prometida retomada do crescimento econômico. “Não parece que esse governo perceba que o aumento da desigualdade na verdade trava a própria retomada da economia, causando a mais lenta das recuperações da história das crises brasileiras. Do ponto de vista econômico, o governo Temer acabou.”
Para a economista, que esteve à frente da elaboração da plataforma econômica da candidatura de Guilherme Boulos – e por isso tem sido chamada de “economista do PSOL” – falta justamente uma agenda de crescimento que encare a redução das desigualdades como motor de desenvolvimento econômico, compreensão que apareceu nos governos Lula, mas de maneira insuficiente. “Não se fez a redistribuição do topo para o meio e para a base da pirâmide. O 1% mais rico manteve a sua parcela na renda nacional, e se apropriou da grande maioria do crescimento econômico do período.”
Laura defende uma agenda econômica que envolva um grande volume de investimentos em setores sociais e de infraestrutura aliada a um aumento na tributação dos mais ricos. “Ajustam-se muito mais rápido as contas públicas porque cobra-se mais imposto ao mesmo tempo em que investe-se mais, gerando crescimento”, afirma. “É uma plataforma que está inclusive aparecendo lá fora com Bernie Sanders, Jeremy Corbyn, para dar exemplos do centro do capitalismo financeiro mundial, e que eu não vejo por que não poderia ser implementada no Brasil.”
Os impedimentos, afirma, são muito mais de caráter político. “É muito ruim participar do debate fazendo propostas que você sabe que não terão a menor viabilidade política porque não há interesse de quem aí está para melhorar a vida da maioria da população.” Ela vê um lado “um pouco triste” em sua função de “sempre trazer pessimismo para o debate econômico”: “Brinco que isso tem me feito acertar muito mais do que errar, porque o país realmente não está rumando para alguma coisa melhor. Mas eu não vejo a hora de cumprir outro papel, e trazer mais otimismo e soluções viáveis.”
No Twitter, rede social em que é bastante ativa, Laura respondeu a um leitor que a parabenizava pelo seu bom momento dizendo a ele que preferia estar assistindo à ascensão do Brasil. À CULT ela explicou: “A procura por economistas é muito maior quando a economia vai mal. E isso gera uma sensação um pouco contraditória de estar se aproveitando, vamos dizer, de um momento ruim do país. É totalmente genuíno e sincero quando eu digo que eu prefiro, que eu troco mil vezes esse meu sucesso pelo sucesso do país.”
Ela conta que o sucesso de Valsa brasileira e a consequente compreensão do “tamanho da dificuldade que os economistas têm de se comunicar” – ela mesma incluída –, a fazem pensar na publicação de outro livro, este inteiramente dedicado ao desenvolvimento de conceitos básicos da economia, ainda que a partir de um debate de conjuntura. “Ainda estou a anos-luz do que eu gostaria. Há muito trabalho de simplificação a ser feito.”