Arcas de Babel: Valeska Brinkmann traduz Lioba Happel
Valeska Brinkmann: 'Fui fisgada por essa escrita imprevisível, instável, ao mesmo tempo dilacerante e cética, ambígua e séria'
A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras.
Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.
A série Arcas de Babel acolhe traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.
Hoje, a poeta e jornalista Valeska Brinkmann traduz e apresenta poemas inéditos da poeta contemporânea alemã Lioba Happel, cuja escrita “imprevisível, instável, ao mesmo tempo dilacerante e cética” mereceria ser mais conhecida entre nós.
Valeska Brinkmann estudou Comunicação Social – Rádio e TV em São Paulo (Faap). Trabalha na emissora pública da cidade de Berlim (rbb), onde vive há 18 anos. Tem poemas e contos publicados em revistas literárias no Brasil e na Alemanha, e em antologias. Traduziu poesia alemã moderna e contemporânea para o blog escamandro e a revista intempestiva. Em 2016 publicou um livro infantil bilíngue pela editora berlinense Bübül Verlag. No momento escreve um livro de poemas.
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Lioba Happel nasceu em 1957, em Aschaffenburg, norte da Baviera. Estudou Serviço Social em Bamberg, e Estudos Alemães e Hispânicos na Freie Universität de Berlim. Teve longas estadias na Inglaterra, Irlanda, Itália e Espanha. Ganhou diversos prêmios e bolsas, entre os quais o Friedrich-Hölderlin-Förderpreis em 1989 e a residência artística da Villa Maximo (Roma) em 1994. Recentemente obteve o prêmio Poetik da Faculdade Alice Salomon, em Berlim (2020). Trabalha como escritora freelance em Berlim, tradutora autônoma de inglês e francês, revisora e professora de alemão. Paralelamente trabalha com pacientes de demência.
Li pela primeira vez Lioba Happel na Poetin, uma revista literária de Leipzig, onde logo me atraíram os primeiros versos do poema Puls (Pulso):
Quando você está cansada não lhe ocorre
como se chama o veneno que você bebeu ao invés da própria vida
Assim, fui fisgada por essa escrita imprevisível, instável, ao mesmo tempo dilacerante e cética, ambígua e séria.
Do seu trabalho também pedagógico junto a pacientes com demência, Happel faz suas reflexões sobre essa doença se transmutarem em imagens de linguagem.
Segundo declara numa entrevista: “A demência, para mim, se tornou uma espécie de poesia que se apresenta na dureza, na dificuldade: deslocando lugar e palavra. Diversas áreas do subconsciente que não pertencem ao mesmo nível são colocadas juntas; – para mim, isso acaba seguindo uma lógica própria.”
A linguagem poética de Happel expressa diferentes idiossincrasias.
É frequente aparecerem palavras/imagens do mundo náutico (rios, barcos, cordas) ou referências à natureza como floresta, plantas, raposa. Também se encontram alusões a poetas se sua admiração, como Majakowski, Cesar Vallejo, Rilke (com quem ela inclusive dialoga no poema aqui apresentado “L’art pour l’art mein lieber Herbst”).
A maioria de seus poemas tem estruturas amplamente abstratas, que se alienam de uma linguagem regular, comunicando-se de uma forma bem única e pessoal.
O idioma alemão é preciso até na imprecisão. Há palavras para a maioria das coisas. Como por exemplo Laub – essa palavrinha curta que quer dizer folhas secas do outono.
É também uma língua que agrega, onde palavras novas podem surgir a toda hora: a possibilidade de compor é praticamente infinita; e uma peculiaridade ainda é que essa combinação não precisa ter uma explicação morfológica clara, ou seja, os componentes não precisam revelar a ambiguidade.
Happel serve-se de sua língua e compõe em seus poemas palavras como: schaumumflorten (Schaum, espuma + umfloren, esconder como um véu) que traduzi como “velados pela espuma.” Ou Eufeumeneketel (Efeu, hera + Meneketel advertência) traduzida em “denúncia da hera”.
Traduzir poesia é um exercício de experimentação contínua e me propicia um prazer inusitado: primeiro, a imensa vontade de compartilhar aquilo que li em alemão com os leitores da minha língua. Em seguida, o bem-estar de uma atividade solitária e concentrada, pesquisando palavras, experimentando seus sons, explorando dicionários, enciclopédias. Exercício, que muitas vezes, acaba inspirando minha própria escrita.
Com esta pequena amostra que escolhi para Arcas de Babel, gostaria de apresentar o trabalho de uma excelente poeta alemã contemporânea.
Os poemas a seguir foram escritos em 2017 e pertencem ao livro Puls 100 Gedichte – Edition Pudelundpinscher, 2017, Suiça). Aproveito para agradecer imenso à própria Lioba Happel, sempre solícita e disposta a esclarecer minhas dúvidas. – Valeska Brinkmann
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uma raposa do deserto é você
tudo raiva e afugentamento
tudo tragédia e vazio
tudo tempo e gelo
você é alvoroço
no filme que meu corpo era
quando o fervor o tremor
o amar o pulsar
e o verão já tinham sido
ein wüstenfuchs bist du
voll zorn und verjagt
voll tragik und leer
voll zeit und eis
eine unruh’ bist du
im film der mein leib war
als das flirren das zittern
das lieben das ticken aus
und der sommer vorbei war
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L’art pour l’art meu querido outono
quem te atravessa
não atira mais pedras
ao ar no jardim do vizinho
O outono está em toda parte, mesmo em março
No verão hiberna
aqui! atrás de salgueiros escalam
séculos com catástrofes
cinzeladas nas denúncias da hera
os que rodeiam a fazenda
os da Síria da Eritreia
macerando castanhas nas mãos eles
que não tem mais casa rezam a Deus
que é grande nas veigas soltem os ventos
e ninguém estará só no outono
L’art pour l’art meu querido outono
quem te atravessa não atira pedra
L’art pour l’art mein lieber Herbst
wer durch dich geht
wirft keine Steine mehr
in Nachbars Garten in die Luft
Der Herbst ist überall sogar im März
Im Sommer überwintert er
hier! hinter Weiden klettern die
Jahrhunderte mit Katastrophen
ziselierten Efeumenetekeln und
die ums Gutshaus gehn
aus Syrien aus Eritrea
Kastanien in den Händen rüttelnd die
kein Haus mehr haben beten Gott
der groß ist auf den Fluren lässt die Winde
los und niemand ist im Herbst allein
L’art pour l’art mein lieber Herbst
wer durch dich geht wirft keinen Stein
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Quando saí de casa naquele segundo
eu tinha criado um criador
arrancado do meu sono crepitando
um relâmpago estilhaçado:
ah me dê o único verdadeiro
verso suspenso no ar
que me traz ao concreto dessa felicidade
para que eu não recrute os sons
da distância fasquiada que
me recortam dessa felicidade
e mais uma vez não crucifique meu criador
num poema por exemplo
na malha de arame
sobre as videiras
Als ich in dieser Sekunde aus dem Haus trat
hatte ich einen Schöpfer erschaffen
aus meinem Schlaf gerissen knisternd
ein splitternder Blitz:
ach gib mir die einzige wahre
Zeile die in der Luft steht
die mich ins Wirkliche dieses Glücks bringt
dass ich nicht die Laute der
zersägten Ferne anheuere mich
aus diesem Glück zu schneiden
und wieder einmal meinen Schöpfer
in einem Gedicht zum Beispiel
am Drahtverhau
über den Rebstöcken kreuzige
***
Pulso
Quando você está cansada não lhe ocorre
como se chama o veneno que você bebeu ao invés da própria vida
e se a palavra veneno devia aparecer mais uma vez em um poema
como é beber o Rio do
Esquecimento e se o sibilo no seu lábio
vem de querer escrever poesia ou do tremer
Quando está cansada você segue o caminho que quer
segue para dentro da mata espessa onde raposas estão sentadas prontas
para cuspir as iscas da raiva prontas
para se afastar majestosamente ou
com rostos velados pela espuma
acossar você esperar por você até
quando você se cansar
raquíticas e famintas com seus
olhos de raio-x à noite
Quando você está cansada não importa se lhe convidam
para comer no meio delas o frango ou se
atacam trituram seus ossos fazem a ceia
Quando você está cansada você para de lamber o sal dos
polegares e lágrimas estão tão distantes como
rios de verdade em um poema sobre rios que também não se molha
Quando você está cansada você não pergunta a sério
por que um poema sobre rosas não tem perfume
por que ele não entranha espinhos nos seus dedos
por que não uma manhã desbotada de dedos ou
nobreza inglesa amarelada ou cor de sangue tinto
de Kissinger não respingam do poema
Quando você está cansada você imagina
que a poesia poderia muito bem existir sem você
com ou sem um poema seu
ou ter perdido a razão
Quando você está cansada não sabe mais mesmo
se ela ou você ou o próprio mundo com ou
sem um poema seu existe
mesmo que você adormeça
mesmo quando você se for
Puls
Wenn du müde bist fällt dir nicht ein
wie das Gift heißt das du statt deines Lebens getrunken hast
und ob das Wort Gift noch einmal in einem Gedicht
genannt werden darf wie es ist den Fluss des
Vergessens zu trinken und ob das Zirpen an deiner Lippe
vom Wunsch zu dichten kommt oder vom Zittern
Wenn du müde bist gehst du den Weg den du gehen willst
hinein in das Dicklicht in dem Füchse sitzen bereit
die Köder der Tollwut auszuspeien bereit
auf und davon zu stolzieren oder
mit schaumumflorten Gesichtern
wenn du müde bist es auf dich
abgesehen zu haben auf dich zu warten
ausgemergelt und hungrig mit ihren
Röntgenaugen bei Nacht
Wenn du müde bist ist es gleich ob sie dich einladen
das Huhn in ihrer Mitte zu fressen oder ob sie dich
anfallen deine Knochen zerknacken das Mahl halten
Wenn du müde bist leckst du nicht mehr das Salz von deinen
Daumenballen und Tränen sind so weit fort wie wirkliche
Flüsse in einem Gedicht über Flüsse das auch nicht nass wird
Wenn du müde bist fragst du dich allen Ernstes
warum ein Gedicht über Rosen nicht duftet
warum es dir nicht Dornen in die Finger krallt
warum nicht falber fingriger Morgen oder
gelber englischer Adel oder dunkelblutige
Kissinger Farbe aus dem Gedicht tropfen
Wenn du müde bist bildest du dir ein
die Poesie könne getrost auch ohne dich
mit oder ohne ein Gedicht von dir
oder nicht ganz bei Trost sein
Wenn du müde bist weißt du überhaupt nicht mehr
ob sie oder du oder die Welt selbst mit oder
ohne ein Gedicht von dir ist
selbst wenn du einschläfst
selbst wenn du fort bist
***
Você tem ideia o que significa
quando dizemos “outono”?
Assim como o “outono” cai
a “lua” exaustivamente na folha desvairada.
Venha aqui, seu outono pouco iluminado.
assim na terra como no céu nascemos para
naufragar uma estrela dentro de você.
Ouve isso? “Estrela.”
Depressa no chão como folhas secas
caem todas essas palavras.
Hast du eine Ahnung, was es heißt
wenn wir “Herbst” sagen?
Genau wie der “Herbst” sinkt
der “Mond” erschöpft auf das irre Blatt.
Komm her, du wenig belichteter Herbst.
Am Himmel wie auf Erden sind wir dazu geboren
in dir einen Stern zu versenken.
Hörst du das? “Stern.”
Schnell auf den Boden wie Laub
fallen all diese Worte.