Tom & Valesca no Zoológico de Uberlândia

Tom & Valesca no Zoológico de Uberlândia

 

Nenhuma decisão que tomamos pode ser mais relevante do que a lei da gravidade. O livre-arbítrio, por exemplo. Base de religiões e combustível de muitas pegadinhas filosóficas. O livre-arbítrio é fruto da mente doentia e insegura dos homens que sempre tiveram a necessidade de se afirmar como protagonistas de uma história que corre solta e que, muito raramente, coincide com as escolhas, idiossincrasias e vontades deles mesmos, os tais homens donos de seus próprios… destinos?

Não é o caso de dizer que não tomamos decisões, e que não somos responsáveis por nossos atos e que esses atos não produzam consequências. Seria mais correto afirmar que tanto as decisões como as consequências são resultado do acaso e de golpes baixos dos quais muitas vezes não temos o mínimo controle. Daí que a sorte e o azar fazem parte das leis da física, assim como o Magnésio e o Antimônio constam da tabela periódica. Quanto mais a humanidade cria arcabouços éticos, estéticos, jurídicos, artísticos, culturais, etc, etc, ou seja, quanto mais ignora a lei – a única que existe – a lei da gravidade, quanto mais o homem disfarça sua condição de insignificância real, mais se desqualifica perante os bichos.

A selvageria dispensa dramas e contorcionismos retóricos. Não sei se existe um zoológico em Uberlândia, mas o fato de não se ter notícia de um Beethoven residente no zôo daquela cidade é a prova incontestável da superioridade dos chimpanzés com relação a nosotros.

E ainda tem gente que fica chocada com a lei da gravidade. Tudo é possível desde que fuja do controle. Sob esse ponto de vista, Valesca Popozuda pode perfeitamente ser encarada como um avanço tecnológico de Tom Jobim. Não é nada fácil dizer isso e, muito embora eu, homem culto e civilizado, tenha todo o direito de discordar das leis da física e achar que o funk da Valesca é uma bosta, não dá para ignorar a força que varre todos os meus frágeis parâmetros (educação, “bom gosto”, etc) diretamente para a lata do lixo.

Um exemplo. Em dezembro do ano passado, minha peça punk “Sobre os Ombros dourados da Felicidade” fez três apresentações na Arena Dicró, que se localiza no Complexo da Penha. A meu ver, a designação “Arena”, por si só, já é uma excrescência, e não bastasse a homenagem despropositada ao saudoso Dicró (ele odiaria ter virado uma “arena”), o monstrengo está encravado dentro do coração da Vila Cruzeiro – que rumina nervosa e desconexamente no entorno.

Entendi que levar a famigerada cultura da zona sul pro subúrbio é um escárnio tão grande quanto “ocupar” e “pacificar” aquela região. Enfiar Ramones goela abaixo de quem curte Valesca é evangelizar na marra, algo somente comparável à paz conquistada pelos fuzis do Cabralzinho. Em resumo: Evangelização é sinônimo de mutilação. E aí voltamos às escolhas que tomamos pelos outros, às decisões que contemplam apenas nossos objetivos, enfim, ao livre-arbítrio para uso exclusivo do manipulador.

Querem saber? Livre-arbítrio no traseiro dos outros é refresco. E quando a intenção é boa, a coisa só faz piorar: Aprendi lá na Vila Cruzeiro que sou tão artista, truculento e invasor como qualquer sargento do Bope.

Proponho um teste. Baixem os fuzis pra ver qual o destino da almejada pacificação, experimentem trocar Tati quebra-barraco por Rachmaninoff sem fazer uso da coerção. As políticas de inclusão e a arte da zona sul – e todos os seus barquinhos a deslizar sobre o macio azul do mar – não existem sem o suporte da força e da intimidação. A realidade é mais embaixo. A cultura, nesse caso, nada mais é do que um instrumento de guerra a serviço – pasmem – da civilização e da paz. A mesma coisa vale pro outro lado, pra qualquer um que imagina que produz beleza e transcendência.

Pois bem, na condição de invasor, isto é, portador da razão coroada por bons argumentos e mais um discurso afinado com os objetivos frutificados nas melhores teses – ah, que inveja dos macacos… – agora falo como invadido, morador da zona sul do Rio de Janeiro. Antes de prosseguir, na falta de anteparo ou grunhido melhor, queria repetir e deixar bem claro que a lógica do invasor e do invadido é a mesma.

Entenda o seguinte, meu caro homem cultivado e civilizado. Tão grotesco e violento quanto tocar o terror no distinto público consumidor dos Shoppings da zona sul é recomendar bibliotecas, museus e “liberdades sóbrias” à garotada dos rolezinhos. Daí que a civilização – essa mesma que desafia a lei da gravidade com todos os seus suportes frouxos e subprodutos – tende cada vez a ser mais abrangente, truculenta e impositiva.

O problema todo consiste no fato de que o homem civilizado jamais vai se reconhecer no reflexo do chimpanzé do zoológico de Uberlândia. Pior para o homem.

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