Unha velha, vida jogada fora

Unha velha, vida jogada fora

 

Simplicidade me causa perplexidade. Sempre tive inveja dos caras do sofá. Cerveja, futebol. Dinheiro, carro, churrasco. Casamento, amantes, filhos, um labrador.

Férias no Sauipe. Mas não é uma inveja no sentido de que não tenho um sofá em casa, e de que não possuo os demais itens, inclua-se aí a felicidade de eventualmente trair a patroa, discriminar um filho porque é gay e preferir o labrador à filha nutricionista.

Se eu tivesse tudo isso e tudo isso me possuísse, eu iria até o bar da esquina para comprar cigarros, e nunca mais voltaria. Sou enrolado. E tenho sim, sofá, um time que é bi-campeão da segundona, amigos churrasqueiros, e um affair co’uma socialaite acima de qualquer suspeita. O melhor boquete da Costa do Sauipe.

Minha inveja decorre do fato de que a vida vacila – e de que ninguém, nem o labrador mais sonolento, é inocente ou tem controle da situação. Como se eu trocasse os sinais, e o castigo viesse antes do crime.

Tenho as coisas, porém as coisas não me convencem. Em resumo, é isso. Nem sei bem se é inveja. Só sei que é desse lugar movediço que brota meu tesão. De cobiçar fervorosamente as coisas mais babacas do mundo, e de desprezá-las antes, durante e depois de tê-las.

Não relaxo nunca.

E assim vou tocando meu barquinho, digo, meu buffet. Sou sócio de um buffet infantil, também “oferecemos” suporte a casamentos e formaturas. Minha vida – em tese – vai de evento em popa*. Durante muitos anos consegui administrar a primeira pessoa do plural e essa inveja complicada das coisas simples sem maiores transtornos aparentes – na boa, quase alheio, como se fosse um peixe num aquário de churrascaria.

Os funcionários do buffet, minha família, o labrador e os amigos mais afetados do meu filho Drag Queen, todos me adoram.  Até eu, às vezes, me acho um cara legal.

O problema é que – dizem – toda alma contém um corpo, e vice-versa. Ou seja, chega o dia em que uma enche o saco do outro, e cada qual resolve ir pro seu lado. Às vezes, penso seriamente em investir numa franquia de pet –shop, outras vezes penso em dar um tiro nos miolos.  Enquanto não resolvo, procuro me distrair.

Por exemplo, dra. Solange. Que nada tem a ver com a boqueteira do Sauipe. Trata-se de outro picirico.

Nada é tão simples. Dra. Solange tinha um coelho em casa. Ela não cortava as unhas do coelho. O puto se deslocava no piso de tábuas corridas como se fosse um brinquedo de corda – aos tranquinhos. Em vez de fazer mil caretas maléficas e dar uns tapas na bunda de dra. ( ela adora olhar pra trás quando está sendo enrabada) no lugar de aproveitar a sacanagem, o idiota aqui encanava na porra do coelho. Não confiava nele.

Se reclamasse, com certeza, seria mal interpretado. Dra. Solange e o coelho viviam juntos há anos. Coelho não tem chifre, mas esse, juro!, esse era corno. O pior é que foi ela mesma quem me alertou, e confirmou meus piores temores: “Estou traindo Fritz contigo… na frente dele”.

Aquilo excitava dra. Solange. Fritz, vejam só. O coelho chamava Fritz, doctor Fritz. Tem gente que se excita correndo atrás de carro de bombeiro. Outros malucos salivam só de olhar pra cara da Vovó da Casa do Pão de Queijo. Eu respeito.

Mas não consigo usufruir, respeito, mas não usufruo. E parece que doctor Fritz incorporava, além do chifre, todos os sapos que eu, morrendo de tesão, tive de engolir no decorrer da vida. Daí que depois de enrabar doutora, no meio do sexo oral, pensei: como é que eu vou fazer pra matar esse coelho?

Há que ter coordenação motora nesses casos, e concentração. Língua e cérebro não podem agir separados, porque uma coisa vos digo: não é só a alma que brocha, língua também.

Se contar, ninguém acredita: deu torcicolo na minha língua. Não podia nem cogitar em usar o pau, sobretudo porque sabia que doctor Fritz estava lá, à espreita: pronto para invadir nosso leito de demência, luxúria e adultério – aos tranquinhos.

E eu permanecia brocha.

Fritz não me deu alternativa.

Avancei com o nariz na direção do baixo Tietê de dra. Solange. E lá, no meio dos aluviões mais extravagantes, tive uma iluminação: em vez de matar, pensei, vou me aliar a esse coelhofilhodeumaputa. Realpolitik.

Imediatamente meu corpo reagiu, e uma ereção violenta, vinda sabe-se lá de quais quintas do inferno, me pegou de surpresa. Eu esperava qualquer coisa, menos uma ereção: “mulher, me diz um treco”.

– Aiiiiiii Amooor, amooor, vida, viiiida, aiiiiiiiii

– Há quanto tempo esse coelho não dá uma trepada?

– Hãnn?

– O coelho!!

– amoor, vida, viiiidaaaa, viiiiidaaaaa

Era só o que me faltava. Aquele “amor, vida, viiidaa, viiiiiidaaaa” me lembrou do Daniel, o sertanejo insuportável que abria a novela das nove. Então o caldo entornou de vez.

– Que foi amor? Por que tirou?

De pau em riste, tentei explicar. Ela não quis entender: dra. avançou, às mordidas, contra o aparelho de ar-condicionado. Eu deixei. Depois de ela ter fraturado o nariz no espelho do banheiro, sugeri que ligássemos pro disk-pizza. Só conseguia pensar numa mezzo pepperoni, mezzo aliche. Dra. Solange, logo ela, me acusou de ser um cara frio, calculista e filhodaputa.

– Tem cerveja na geladeira?

Depois da pizza, aos poucos, consegui – cientificamente – convencê-la de que a vida não era tão ruim assim:

– Vem cá, minha nega.

Toda mulher gosta de ser amansada. Se for advogada, e metida a dominadora, melhor ainda. Basta chamar no bridão: trazer a responsabilidade para si na hora certa. Uma ciência. Foi o que fiz. Encurtada a rédea, sapequei-lhe um tapão nas ventas – acho até que o nariz quebrado voltou ao lugar. Em seguida, apesar do Daniel e de todos os pesares, retomei de onde havia parado. Ou seja. Destravei a língua e o resto do corpo.

Mais calma e devidamente saciada, dra. Solange me disse que o coelho era castrado, e que não cortava as unhas do bicho porque elas caíam sozinhas. Nesse momento, um amor profundo brotou daquela inveja antiga e transcendental. O que era repúdio das coisas simples e óbvias, virou afeto, desapego, compaixão quase ternura. Um sentimento que eu jamais havia experimentado. Graças, vejam só, a doctor Fritz.

Eu e aquele coelho tínhamos algo em comum. E não era somente o barro revirado do baixo Tietê, pinçado com amor das entranhas quentes e sombrias de dra. Solange, era algo que me fugia ao controle e que ao mesmo tempo ameaçava- num tranquinho mais descuidado – perder-se a qualquer momento, algo inofensivo de uma solidão atroz, unha velha, vida jogada fora.

* Reinaldão Moraes, meu sócio no buffet, foi quem saiu com essa. Eu cito, até sócio de buffet!

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