Preamar

Preamar

 

para Ronald Polito

O nome dele é Carlinhos, mas me pediu para chamá-lo de CEASA*. Tem oito anos.

– Por que Ceasa, Carlinhos?

Serviu-me suco de manga com ovo de Páscoa, e explicou: Carlos E Aline Se Amam.

Aline é um ano mais velha, tem nove. O namoro dos dois – garantiu – “é aberto”.

– O que é namoro aberto, Ceasa?

“A gente divide o lanche”. Ah, claro, o lanche.

Em 1972, eu tinha a idade dele. Naquela época, pescava “peixes bananas” sinceros e não cogitava suicídio, tampouco o amor dos adultos, nem sabia que Salinger havia chegado tão longe. Da praia, acompanhava o movimento manso das espumas trazidas pelo mar de São Vicente.

Eu era um garoto acuado.

Vejo Ceasa, volto para São Vicente da minha infância. As espumas misturam sangue e memória, passado e futuro. Vaivém. Um mar calmo e oleoso. Hoje, quando Ceasa me pegou pela mão, lembrei perfeitamente da primeira vez que associei as palavras “acidente” e “preamar”. Lembro das canelas nuas do meu pai.

Ceasa é portador de uma leveza claustrofóbica, a mesma que eu tinha em 1972. Também é um garoto acuado.

– Vamos pescar Peixes Banana?

Ele adorou a ideia, e lembrou de Aline que, com certeza, adoraria pescá-los. Infelizmente ela havia ficado de recuperação, e a mãe de Aline era uma chata. O pai dele e a mãe da Aline não tinham nada a ver comigo. Ceasa explicitava isso toda vez que me puxava pela mão, e dizia: “vem, vem, vamos brincar, peixe-banana”.

Ora o pescador, ora o pescado do garoto. E vice-versa.

Rubens, pai de Ceasa, desde o primeiro dia, reprovou nossa amizade. Eu tinha idade para ser irmão mais velho do pai do meu amigo. Se não fosse tão previsível e afetado, eu diria que o engenheiro Rubens poderia vir a ter uma alma pragmática. Ameaçou-me com times de futebol, containers, guindastes, gruas, e com um repertório adulto e masculino que, afinal, não combinava nem com ele mesmo, pai.

A indiferença do filho, agora reforçada pelo desinteresse seminal que eu demonstrava ter por suas gruas e módulos de produção, apartava Rubens cada vez mais do exercício da paternidade. Ele não teve opção diferente de tentar recuperar o território perdido. Rubens vendia a ideia falsa de que era um homem prático.

Previsível, isto sim. Mirava na leveza, e às vezes acertava em cheio naquilo que o filho tinha de mais precioso, a claustrofobia iluminada a que me referi acima.

Sempre que podia, nos intervalos das aulas  –  quase esqueço de falar: sou professor de psicomotricidade para crianças com necessidades especiais –, Rubens roubava atenção e me subtraía para seus assuntos enfadonhos: gruas, guinchos, guindastes. Qualquer pretexto servia para desviar-me de Ceasa. Teve um dia que acabamos concordando com a gravidade da crise na Argentina, ou algo que o valha. Tive algumas certezas. A começar pela palavra “intimidade”. Sem dúvida a mais obscena do léxico, repugnante no plural “nossas intimidades” e inverossímil em qualquer situação; sobretudo se levarmos em conta a carga erótica que, inopinadamente – talvez por conta das investidas de Rubens – passamos a dividir nós três, eu, ele e o filho. Não digo “insuportável intimidade” porque não acredito que essa condição exista além das palavras em si. Todavia Rubens chegava perto disso, e eu – na falta de opção, até mesmo para me defender – redobrava cada vez mais os cuidados e o interesse pelo menino.

Ceasa retribuía.

Será que o engenheiro Rubens acreditou que, em algum momento, nos enganaria, a mim, ao filho e a ele mesmo?

Passei a sentir um certa solidariedade que se aproximava demais do desprezo e quase chegava aos limites da compaixão, quase amor pelo pai, um amor anterior ao amor que sentia pelo filho, algo meio óbvio: afinal um era consequência do outro. Ceasa era um Rubens melhorado, sem as ressalvas e o repertório masculino, contava somente com a claustrofobia e os olhos azuis mareados de paixão –  um azul ardósia-apinéia que, bom dizer, me reaproximava da preamar de tempos idos. Eu só precisaria arrancar Rubens de Rubens para chegar a Ceasa. Ou seja, para ter os dois teria que apresentar o pai ao filho. Mas como, uma vez que havia tomado partido do filho de antemão?

Rubens vestia mocassins sem meias. A penugem negra das canelas começava quase no calcanhar. Joguei a isca. Um flerte pela diagonal, flerte que instintivamente foi absorvido por Ceasa. O garoto sorriu para mim, e chamou o pai para a brincadeira.

Várias cartolinas espalhadas pelo chão. Pierrôs e colombinas esperando a vez de serem coloridos. O garoto concentrava-se apenas na boca dos palhacinhos, com precisão de engenheiro, com o batom da mãe. Rubens nos observava a partir do sofá. Visivelmente tenso e constrangido pelo flerte que atingiu em cheio os guindastes e gruas de seu discurso, suava nas canelas. Talvez até tivesse esquecido da crise na Argentina. Às vezes, Rubens conseguia ser mais frágil que o próprio filho. Eu, pierrô, me esparramava pelo chão, lascivo. Ceasa pulava de um lado para o outro, ignorava olimpicamente as colombinas e contornava a boca dos pierrôs – apenas as bocas e somente os pierrôs – com batom vermelho. Era contagiante. Ceasa imprimia mais força e veemência a cada nova boca conquistada. Olhava para o pai e olhava para mim, e sabia que – independentemente de anuências, livres do tempo e do espaço – a preamar nos marcaria para o resto de nossas vidas.

Duas ou três vezes, Rubens tentou afastar as cartolinas com os pés. Na primeira tentativa, com repúdio. Na segunda, com um certo desdém e um pouco, só um pouco de indulgência. Na última tentativa, o garoto desenhou um círculo vermelho no calcanhar nu do pai. Rubens não reagiu. Eu acompanhava a evolução de pai e filho de muito perto – cúmplice dos dois antevi a preamar e as espumas de sangue, as mesmas que se desfaziam/ que se desfizeram mansas na praia de São Vicente. Corria o ano de 1972.

* Resgatei Ceasa de um conto antigo, publicado em 2002. Ele precisava viver outra história.

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