Mendiga

Mendiga

 

 

O Vila Rica é um bar-restaurante que se espraia folgada e clandestinamente pela calçada, como tantos no Rio de Janeiro. Optei por uma mesa na esquina da Cândido Mendes com a rua da Glória. Diz a lenda que Araci de Almeida frequentava o estabelecimento e que Escobar afogou-se do outro lado da murada, onde o mar foi aterrado há decadas.

Pois bem. Os termômetros marcavam 14 graus, não me lembro de ter passado tanto frio do Rio e jamais imaginei que vestiria meu casaco de pura lana uruguaia para ir até o Vila Rica, e, além disso, ventava. Ela irrompeu visivelmente maltratada, vestia um biquíni que aparecia e desaparecia sob uma canga de praia enquanto um xale puído cobria e quebrava aquilo que os místicos chamariam de “conjunto”. Mais abaixo, um par de tênis cor-de-rosa-esgarçado aniquilou qualquer tentativa de verossimilhança e, definitivamente, deu régua, compasso e camisa-de-força ao nosso encontro. Ou seja: por incrível que pareça, formávamos um belo casal. O único e improvável casal que desafiava aquela noite de frio inédita no Rio de Janeiro.

Exausta e maltratada, caminhava há horas, desde o Arpoador – segundo o que adiantou – até chegar esbaforida à minha mesa: “posso sentar?” Aliás, foi mais que isso: ela não precisou pedir, sentou-se. Aí sim, depois de um minuto, tempo para que uma intimidade maluca se impusesse à minha desconfiança, olhou-me faminta, com cara de spaghetti à bolonhesa. Os garçons riam da abordagem, notei que Sol era velha conhecida deles, habituée, doidinha do pedaço. Ela retribuía o escárnio dos garçons e se vingava telepaticamente, como se dissesse “ontem vocês me foderam, hoje vão me servir: menu, por favor”.

— Sol de Solange?

— Não, Sol de Sol, apenas Sol.

Oquei, achei aquilo original e brega e ao mesmo tempo simpático, algo que denotava uma autoridade… como é que eu posso dizer? Bem, uma autoridade circense. Tinha classe a danada, apesar de maltratada pelas ruas e pelo desespero que eu – ainda – não havia identificado. Vinte e poucos anos. Quicava aqui e ali desde os quinze quando saiu de casa, às vezes, a situação apertava, e ela era obrigada a encarar um albergue da prefeitura. Outras vezes, passava os dias lagarteando nas praias da zona sul, quase sempre descolava otários nos quiosques de Ipanema, os caras lhe pagavam caipirinhas, queijo coalho, camarões ao alho.

Às vezes dava sorte e seguia pros conjugados de eventuais admiradores: “Castorino vai me levar pra Paris”.

Quando eu ia lhe sugerir uma capirinha de caju e um camarão frito ao alho, começou a chover – e junto rimos das “coincidências”. Tivemos que correr para dentro do Vila Rica, onde a presença de Sol gritava mais ostensivamente: nem cairipirinha, nem camarão ao alho.

Vodca e suco de laranja, garçom.

A palavra mendiga se escondia atrás de sua desenvoltura à mesa, do papo aéreo e divertido, da maneira como, depois da vodca, pediu spaghetti al dente para caçoar do garçom; e assim, como num passe de mágica, Sol fazia a mendiga desaparecer e disfarçava todas as fomes, a mendiga, enfim, sabia usar os talheres e mantinha as piadas desconexas sob controle, como se brincasse com os limites do fio da meada. Daí a elegância. Como se a rua não a tivesse maltratado a ponto de – entre outras mesuras e delicadezas – ela ter o cuidado de dobrar o guardanapo sobre as coxas bronzeadas, a ponto de esquecer o frio e deixar escapar aspas surpreendentes e discorrer sobre bulevares e cemitérios parisienses. Nem reparei que os dentes estavam podres. Alguém de fora que a visse servindo-se calmamente do spaghetti, jamais imaginaria que Sol revirava latas de lixo e ase limentava de restos de comida fazia mais de três meses, desde que fora expulsa da casa do Fabiano.

Esse nome destoava; era a única coisa que escapava ao seu controle, um bafio soturno em meio aos seus gracejos e bom-humor, Fabiano que mentiu sobre a morte da enteada, Fabiano teólogo!, Fabiano filho da puta, Fabiano que tentou estuprá-la, Fabiano que tinha um Labrador dentro do apartamento, o mesmo cachorro que havia comido suas roupas, ela que não ia trabalhar de graça pro Fabiano, Fabiano que não tomava banho, Fabiano que havia sequestrado seus bens, até que Sol ameaçou chamar a polícia antes de pedir mais vodca pra misturar com o suco de laranja, eu disse calma Sol, vamos pedir outra dose, gosto das pérolas invisíveis que enlaçam seu colo modiglianesco, do jogo de cai-não-cai desse xale, além do mais, o nome do drinque é Hi-fi.

Sol conseguia juntar desprendimento com diversão e beleza rota-esfarrapada, então, resolvi que seria cúmplice dela e dei corda. Passeava com Sol pelos cemitérios e bulevares de Paris, concordava com tudo, traçamos um plano para aniquilar Fabiano e depositamos flores no túmulo de Jim Morrison, contrataríamos um advogado ou um assassino de aluguel, Fabiano entraria nos eixos tão logo eu pedisse um frango à milanesa pra Sol porque o spaghetti foi pouco, fazia mais frio lá fora e antes do frango chegar, quis dar uma espiada em seus segredos, ela mostrou a caveira tatuada no pescoço (que fedia) e, assim, retribuíamos as gentilezas um do outro – e mal e porcamente disfarçávamos a realidade ameaçadora que nos espreitava.

Para sobremesa quindim, café curto. Quando a chuva apertou, ela fez o garçom ir até a banca de jornais. Queria cigarros de menta. E eu, sinceramente, enxerguei beleza onde somente existia miséria, desamparo, loucura e solidão.

Levei-a para casa.

Sol teve o cuidado de descalçar o par de tênis na área-de-serviço. Nessa hora, enquanto eu procurava uma toalha pra ela, senti um cheiro de carniça que imediatamente entupiu meu nariz, como se fosse uma sinusite vinda do lado de fora. Nunca experimentei tanta delicadeza numa mulher, ela entrou na sala e disse: “preciso de uma chuveirada”. Meio que anestesiado pela fedentina, lhe entreguei a toalha felpuda. Toalha grande. Toalha limpa. Toalha branca.

Por instantes, Sol abraçou a toalha como se Jesus Cristo a tivesse recebido no céu. Olhei pra baixo e vi os pés inchados de andarilha, pés de dois mil anos, vindos das epístolas de Paulo até o Arpoador e de lá até minha mesa, pés de mendiga, crostas sobre crostas, pretos, rachados desde a base do calcanhar até o joanete em carne-viva. Todavia, não relacionei os pés à pessoa e disse: sinta-se em casa. Logo que ela entrou no banheiro, como que por instinto, fui correndo até a área-de-serviço: o par de tênis jazia ao lado da máquina de lavar roupas, feito um animal atropelado em fase avançada de decomposição. Pensei em jogá-lo no lixo, mas desisti. Voltei pra sala.

Virei um copo de uísque, e, de repente, a catinga passou. Imagino que meu cérebro ou alguma glândula sacana do meu hipotálamo(?) em consórcio com minha libido desajustada, agiram de modo a anular meu olfato, minha visão, minha audição e todos os sentidos que, em vez de dizer não, disseram o contrário: corta os pulsos, se atira debaixo do trem, aperta o gatilho, foda-se.

Sol deve ter passado mais de uma hora no chuveiro, meno male, pensei. A essa altura, eu havia abstraído a catinga do tênis, logo em seguida me dispus a ouvi-la. Agora Sol estava envolvida na toalha branca, linda, alisando os cabelos e aninhada no sofá, ela tentava esconder os pés debaixo das coxas grossas, abriu um sorriso que denunciou a falta de um canino, além de um dente (de leite?) visivelmente podre. Não dei bola pela segunda vez. Dente podre, faltava o canino, e daí?

Não foi só Fabiano que a sacaneou, tinha o teólogo que ora baixava em Fabiano, ora se transformava num ex-namorado que morava em Maria da Graça, também me falou de um traficante que havia forçado ela e a Juninha a irem prum motel na Barra… e assim Sol ia e vinha, trocava de assunto e misturava situações e fabianos enquanto percorria o cabelo molhado com um pente de madrepérola que sacou de sua bolsa de crocodilo-cover importada diretamente do Saara (quase esqueço de falar dessa bolsa). Trabalhou de caixa nas Lojas Americanas e foi pega roubando. Na delegacia, Fabiano outra vez a sacaneou, e eu lembro que quanto mais ela mudava de assunto e desconectava um assunto – mágica! – no outro, mais eu me encantava. Uma espécie de encantamento mamífero típico do animal que está de tocaia na iminência de dar o bote, tanto faz se a presa é uma Hannah Arendt a discorrer sobre a banalidade do mal ou uma mendiga maluca trazida da rua. Meu nome é Fabiano.

Então apaguei a luz e disse pra Sol deitar no meu colo. Fiz cafuné. Massageei suas têmporas. Percorri as sobrancelhas grossas na ponta dos dedos, e fiquei uns cinco minutos brincando com os lóbulos, lóbulos da Sol, você têm os lóbulos mais macios que já toquei. A gente se divertia com as palavras pronunciadas e imediatamente tocadas na ponta da língua, até que enfiei o pinto em sua boca e ela o sugou como se fosse um righatone à siciliana. Daí partimos pra sacanagem propriamente dita. O que mais me chamou atenção foram as tetas empinadas. Tetas que desafiavam a loucura e a miséria que ela trazia a reboque do corpo magro e machucado. Tetas Intactas. Buceta quente, peluda, e o grelo – ao contrário da desconexão completa de sua dona com o resto do mundo – fds o grelo encontrava-se surpreendentemente no lugarzinho dele, grelo de Cinderela. Sorvi.

Em seguida comi a mendiga.

Só que na hora não atinei. Apenas me dei conta depois de dois dias, quando Brecão nos flagrou na portaria do prédio – na manhã do Fluconazol – e atirou à queima-roupa –: “filhodeumaputa, voce tá comendo a mindinnnnnnga!”. O sacana do Brecão colocou um “i” no lugar do “e” e prolongou o “n” inexistente com o intuito de sacanear ou humanizar (sei lá, depende do ponto de vista…) a mercadoria e, assim, trazê-la para mais perto do consumidor: pensem na “mortadela” e na “mortannndela”; pensem nisso e vai ficar mais fácil de entender que o Fluconazol é uma bomba vendida numa caixinha que contém um único comprimido. Até então, eu tinha dormido com a Sol, e o fato de ela ser uma mendiga havia escapado à minha compreensão. Filho da puta de Brecão!

Bem, se o Fluconazol não acaba com a AIDS, ao menos destrói todos os fungos que você eventualmente carrega na alma e na cabeça do pau depois de comer uma “mindinnnnnga” portadora de candidíase – sejamos otimistas. Como eu estava apaixonado – antes de encontrar o Brecão – comprei um comprimidinho pra ela também, e a levei pra comer um bife à parmegiana no Lamas. Andamos de mãos dadas, ela falou algo a respeito de um enxoval e da viagem a Paris prometida por Castorino, das noites que passara no mosteiro de São Bento, e – entre outros desvarios e navios queimados – Sol ameaçou voltar no dia seguinte, ameaçou pegar suas roupas no apartamento do Fabiano e trazer pra lavar em casa.

No dia seguinte, a chapeleta do meu pau havia se transformado numa couve-flor virada do avesso, a coisa se espalhou pela virilha e atingiu o cu. Eu estava todo bichado. O Fluconazol só começaria a fazer efeito no outro dia, digo, efeito tímido no meu corpo, porque o apartamento empestou: achei carrapatos dançando lambada no ralo do banheiro. A catinga do tênis voltou com toda força. Sol estava muito zoada.

Ah, quase esqueço de dizer. Fiz questão de comê-la sem camisinha e gozei dentro. Se confio nas patricinhas que sequer possuem grelos de Cinderela, por que usaria preservativo com a Sol, só porque ela é mindinnnga? Mindinnga, mindinnga. Mortadela!

Dia seguinte, ela sumiu. No outro dia também. Aí apareceu em casa quase desmaiada. Não falava coisa com coisa (pela primeira vez notei que ela não falava coisa com coisa) e pediu pra tomar banho. Repetimos a sequência da primeira noite, só que, em virtude de não conseguir suspender a aste da minha couve-flor virada do avesso, eu brochei e dei graças a Deus, “toma, toma esse remedinho, mal não faz”. Se não ia curar a miséria, se a alma estava amarrotada junto com seus bens e promissórias imaginárias no cafofo do Fabiano, pelo menos o Fluconazol serviria pra dar uma acalmada nos fungos da buceta da Sol. Saiu do banho direto pra cama. Desmaiou. Sol rangia os dentes como se tivesse um elevador enferrujado dentro da boca. Movimento de sobe e desce infernal que decerto reproduzia a fuga, as ruas, os perrengues e a violência, os bêbados e os loucos da sarjeta, a tela escura que devia projetar seus pesadelos naquele momento. Dessa vez, apesar do banho, eu senti a catinga.

Fui dormir na sala. Sol cagou, vomitou e mijou no meu lençol branco, acordou e não sabia onde estava. Praguejou contra as internações, maldisse o SUS, elencou todas as mazelas e os dias internados no Pinel, chorou muito e arrancou os cabelos, protestou contra os médicos que a acusaram de ser esquizofrênica somente porque não tinha RG, disse que o Fabiano havia de lhe pagar todas as dívidas, eu pensei no jogo de facas Solingen que tinha na cozinha e sugeri tomarmos um caldinho de feijão no Vila Rica.

Tinha que me livrar da mindinnga.

Ela fingiu que acreditou no caldinho de feijão e na minha mulher que chegaria no dia seguinte – de fato chegaria. Sol precisava comprar uma mochila e pediu dinheiro pela primeira vez, fiquei aliviado. Pensei em pagar pelo amor verdadeiro. E saquei 100 reais do caixa eletrônico. Fizemos negócio, estávamos quites. Ou não.

Da primeira vez que o interfone tocou, eu disse pra ela voltar mais tarde. Depois de umas duas horas, desci e fui encontrá-la no térreo, dei vinte reais. E recomendei o sumiço. Quando ia começar a esculachar, ela me interrompeu e disse calmamente “já sei, estou invadindo sua privacidade”. O arroubo de lucidez me desconcentrou e rendeu uma fisgada de tesão que durou o tempo de eu tirar mais dez reais da carteira e falar: “me esquece”.

Nunca falei isso pra nenhuma ex-namorada “me esquece”. Nunca fui tão cruel e peremptório, nem com ex-namoradas, nem com ex-amigos e traidores, tampouco com os canalhas mais filhos-da-puta que cruzaram meu caminho ao longo dos meus quarenta e sete anos, jamais disse “me esquece” mas com a Sol – estranhamente – não somente falei como repeti, gritei e esculachei.

Eu tentava odiá-la. Mas no momento em que joguei o dinheiro nas fuças dela, “porra, meu pinto virou um estalagmite depois que te comi, vaza, some, me esquece”, nessa hora só conseguia sentir pena e arrependimento, falava da boca pra fora: a parte dos estalagmites é mentira. Ódio não é pra qualquer um. Digo, o ódio pleno, transcendente. Baudelaire sabia odiar, se eu pudesse escolher meus sentimentos, o ódio reinaria absoluto. Mas comigo não acontece. O ódio faz cu doce pro meu lado. No caso da Sol, seria mais cômodo e mais prático se eu a odiasse, simples assim. No entanto, sentia uma mistura de repulsa com comiseração, sobretudo depois do “me esquece”, tristeza e remorso. Ela, Sol, é que devia ter propriedade – lá no meio dos desfazimentos dela – para sentir além de ódio, pena, muita pena de mim. Uma vez que eu não consegui nada mais nada menos do que dar banho, abrigo, comida, sexo e dizer “desculpa, Cinderela, me esquece”.

Talvez, pensando bem, tenha sido a primeira vez na vida que consegui expressar meu amor com honestidade, amor genuíno. Custou 130 reais (sem contar a mochila, o Flucozanol, o caldinho de feijão…), até que não saiu tão caro. O que vale é que consegui me livrar dela. Não porque era mendiga, mas porque se tratava de mais um amor que, como tantos outros, acabava na indigência.

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