Sob o autoritarismo brasileiro, sobre o lugar da História
A historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, autora de 'Sobre o autoritarismo brasileiro' (Foto: Divulgação)
Para quem hoje, dentro e fora do Brasil, ainda contempla com consternação a eleição de Bolsonaro – e com verdadeiro horror a maneira como seu governo, mais semelhante a uma quadrilha de malfeitores, vem lidando com a pandemia e a vida política -, são mais que desejáveis livros que se proponham a entender criticamente a formação do país. É o caso de Sobre o autoritarismo brasileiro: uma breve história de cinco séculos, de Lilia Moritz Schwarcz. Nele, a História, conhecida por nos retirar de nossos lugares confortáveis, desfazer mitos e recolocar novas perspectivas e possibilidades de interpretação e análise, é valorizada em sua vocação de ir além do presente para entendê-lo. Segundo a autora, em entrevista para o jornal português Público, “o livro é sobre Jair Bolsonaro, mas também não é, porque parto de duas grande hipóteses, a primeira é que o Brasil e os brasileiros sempre foram autoritários e a segunda é o que nosso presente está totalmente lotado de passado”.
Endereçá-lo a um público mais amplo, não apenas os especialistas nas matérias em questão, é igualmente meritório. Nas circunstâncias excepcionais referidas, faz sentido historiadores e cientistas sociais – entre outros – marcarem posição no debate político. E nisso estamos.
No entanto, falar do Brasil, do “enigma Brasil”, em função das infindáveis contradições que poderíamos marcar em sua história, passada e presente, não poderia deixar de abrir espaço para discussão. É desejável e positivo que o livro cumpra esse papel. Dessa forma, cabe ao leitor atento perguntar: o autoritarismo brasileiro é “uma história de cinco séculos”? Essencialmente, é este o argumento do livro. A sugestão de que os cenários recentes são a última encarnação de um autoritarismo, patrimonialismo, corrupção, desigualdade, violência e racismo multi-seculares e essencialmente configurados desde o século 16, pode parecer um tópico explicativo consistente; afinal, o passado sempre informa o presente e as simplificações a que tal raciocínio convida poderiam justificar-se pela pedagogia cívica exigida pelo momento atual. Acontece que a esse exercício insistente, múltiplas objeções podem ser levantadas.
Em primeiro lugar, sem nunca minimizar a irredutível dimensão do extermínio indígena e da escravidão africana, a caracterização desses passados distantes é assentada em retratos frequentemente caricaturais e sem sustentação empírica, nos quais as continuidades imputadas são muitas vezes infundamentadas e os saltos temporais chegam a desafiar os parâmetros da probidade intelectual. Pode argumentar-se, com todo o fundamento, que o livro ignora as mudanças do século 20 e do último meio século (a urbanização brasileira, em particular), ou seja, as mutações sociais e comunicacionais mais recentes, que produziram mudanças substantivas na sociedade brasileira. Nesse sentido, ao atribuir os males presentes a um passado colonial remoto, ao mundo agrário e às práticas das suas elites, a obra gera um efeito de ocultação, certamente involuntário. Também sobre os novos agentes e suas práticas mais recentes de dominação que, certamente, devem ser pensadas em bases políticas diversas e alinhadas com outros países. Sobre essas matérias caberia perguntar: onde se concentram a maior riqueza, as principais elites sociais e econômicas, os modelos de vida que mais reproduzem a desigualdade no Brasil de hoje? Qual é a sua genealogia cultural, social e, até, familiar? Qual a gênese das velhas e novas classes médias urbanas? Quase nada se diz sobre isso.
A narrativa de Lilia Schwarcz omite de forma surpreendente as imigrações brasileiras pós-coloniais, ou seja, as que tiveram lugar entre meados do século 19 e 20 – embora tenham tido papel decisivo na estruturação das elites e classes médias do Brasil no século 20, em particular, mas não só, no Sul e Centro Sul. Vale notar que quase todos os autores referidos como fonte de inspiração (Sérgio Buarque, Caio Prado Jr. ou Raimundo Faoro) tinham essa proveniência geográfica e escreveram seus textos fundamentais entre os anos 1930 e os 1950, ou seja, quando a população do Brasil era esmagadoramente rural e agrícola. Em 1950, de acordo com números oficiais, o Brasil teria 64% de população rural e em 2010 apenas 16%. Sobre a colossal urbanização produzida nesse período, a autora sustenta que “a despeito de o Brasil ser, cada vez mais, um país urbano, aqui persiste teimosamente uma mentalidade e um lógica dos latifúndios, cujos senhores se tornam coronéis da Primeira República, parte dos quais ainda se encastelam nos seus estados, como caciques políticos e eleitorais”. O mal atual, assim como o inequívoco caciquismo da Primeira República, deduziu-se sobretudo a partir de estruturas coloniais montadas não apenas em um passado (presume-se que remoto), mas sobretudo na região em que se desenvolveram (Nordeste). O que parece ser positivo por desqualificar os terrores políticos e sociais do presente como algo velho e sem novidade, mas que pode reiterar o mesmo efeito de ocultação, citado acima, agora pela desculpabilização de agentes mais recentes, e mesmo de algumas regiões em relação a outras.
Um dos pontos centrais do livro é que a escravidão e a discriminação racial são heranças incontornáveis do Brasil colonial, e que é necessário falar em racismo hoje em dia com todas as letras. Do que não temos dúvidas. São mesmo os temas com os quais o livro se inicia e que possuem fundamental relevância para demonstrar a sua tese. Até porque seria errôneo imaginar que o mito da “democracia racial” – por mais que tenha sido desconstruído e colocado por terra pela crítica do movimento negro – tenha sido apagado da cabeça de grande parte da população. Mas importa perceber o que o tornou plausível. Vale dizer que essa imagem de uma peculiar composição e relacionamento racial do Brasil colonial já circulava na cultura europeia antes do Iluminismo, foi consolidada por este e retomada pelo discurso da independência. A ideia de um país “composto por raças diferentes” não foi um “mito criado pelo naturalista Von Martius” em 1845. Já em 1812, José Bonifácio considerava muito difícil, mas necessária, a “amalgamação de tanto metal heterogêneo, como brancos, mulatos, pretos livres e escravos, índios etc.”. Essa foi, portanto, uma das bases da formação do Brasil enquanto Estado nacional. A positividade desse discurso seria atacada por teorias racistas do final do século 19 que chegaram a falar em “degeneração” exatamente quando se deu a ebulição provocada pelo movimento abolicionista e a entrada definitiva dos escravizados no universo dos livres. Aqui, o livro de Lilia Schwarcz dá um salto para as cifras atuais, apesar das muitas histórias que se poderiam contar dos embates contra as estruturas de mando, igualmente protagonizadas pela própria população negra.
É nesse sentido que medir o peso dos legados não constitui operação fácil, mas as genealogias não deveriam se estabelecer sem escrutínio. É comprovado que a violência dos potentados locais, em territórios cuja extensão se alargou e nos quais a população decuplicou no século 18, à conta de uma intensificação da imigração forçada de africanos e voluntária de europeus, foi, sem discussão, uma marca peculiar do Brasil colonial. Mas será que o colossal e contínuo crescimento da violência homicida das últimas quatro décadas, com a crescente utilização das armas de fogo que o governo atual criminosamente incentiva, é uma simples continuação desse padrão rural? Ou estará diretamente associado a uma urbanização descontrolada que criou cidades gigantescas radicalmente duais, onde os ricos e a classe média vivem invariavelmente acantonados em “bunkers” com dezenas de servidores recrutados em periferias, onde vive em condições degradante grande parte da população, vinculada a ocupações precárias e tendo que utilizar transportes calamitosos? Em termos globais, as muitas dezenas de cidades com milhões de habitantes que se espalham pelos muitos cantos do Brasil são hoje os principais focos de violência de uma Federação em que os homicídios violentos já passaram dos 60 mil por ano. Dessa forma, seria igualmente importante perceber como a desigualdade foi reinventada, e mesmo reconstruída, no Brasil das últimas décadas.
A corrupção é um tema tratado com detalhe e desenvoltura. Ao contrário de outros, não há no capítulo quatro grandes saltos cronológicos. Os diagnósticos são também matizados. Assim, sustenta-se que “os estratagemas usados pelas elites coloniais lembram, de forma direta ou mais distante, as várias práticas ilícitas perpetradas por alguns dos nossos governantes actuais”, mas destaca-se, por outro, que “é equivocado (…) atribuir apenas à colonização portuguesa o pacto com a corrupção (…) as sociedade colonizadas por outras potências – como a Holanda, a Inglaterra e a França – adotavam políticas equivalentes quando interessada exclusivamente na “exploração” dos seus domínios”. Lilia Schwarcz reconhece igualmente a mutabilidade das fronteiras do público e do privado. Mesmo assim, pode perguntar-se, retomando dois dos muitos casos invocados, cuja ilicitude não cabe questionar, o que há finalmente de comum e de contínuo entre as práticas do governador de Minas, D. Lourenço de Almeida (1721-1732), e as do PT de Lula, em matéria de corrupção?
As questões que envolvem as formas de intolerância, de violência e de desrespeito a questões de gênero também merecem destaque na caracterização do autoritarismo que frutificaria nestas terras brasílicas. Longe estamos de dizer que não são fundamentais preocupações do presente. No entanto, da mesma forma, poder-se-ia questionar a vinculação entre a imagem do “homem cordial” brasileiro, tão lapidarmente tecida por Sérgio Buarque de Holanda, aos discursos de ódio, à homofobia, às ameaças aos inimigos políticos, e a outras formas muito atuais de intolerância que chegam às raias da vociferação contra instituições políticas que se constituíram em nome da democracia. Ou mesmo a conexão direta entre as referências à nudez na carta de Pero Vaz de Caminha e “as bases da banalização da violação no Brasil” cujo início estaria “vinculado ao projeto colonial”.
Por tocar em temas tão sensíveis aos brasileiros e a todas e todos que se dedicam à difícil tarefa de entender o Brasil, Sobre o autoritarismo brasileiro parece nos remeter a um ingrato papel. Mas ousamos dizer necessário, como a própria autora invoca no seu epílogo, destacando a vocação da história, para “lembrar” o que por vezes se quer esquecer, para sair de nossas comodidades, inclusive daquelas presentes nas formas consolidadas de interpretação do passado. Sobretudo esta interpretação que estabelece grandes linhas de continuidade com o passado que tendem a explicar o Brasil como um fenônemo único e singular, sem a percepção das sinergias continentais e mundiais dos autoritarismos e dos embates que se constituíram na sua história para além da relação entre dominantes e dominados. Por considerarmos o livro mais que um bom incentivo à reflexão, é que convocamos suas teses para o debate.
Andrea Slemian é professora da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
Nuno Gonçalo Monteiro é coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa