Sendas do homoerotismo na literatura ocidental

Sendas do homoerotismo na literatura ocidental
O poeta Walt Whitman pregou o aproveitamento total das potencialidades humanas, físicas ou espirituais (Foto: Domínio Público)

 

Tão antigo quanto o próprio homem, o homoerotismo tem gerado, no contexto ocidental, implicações morais inconstantes, materializadas sob a forma de discursos que, em uma perspectiva diacrônica, são muitas vezes díspares, conforme a época ou o meio. A literatura, em suas manifestações ficcionais ou poéticas, tem tratado do tema da Antiguidade aos dias atuais. Mesmo em momentos de censura e restrição, o relacionamento sexual e amoroso entre pessoas do mesmo sexo sempre foi contemplado pela arte da palavra. Mas uma questão terminológica requer discussão: a legitimidade de se falar em literatura homoerótica, de definir o que seja e se, ao menos, existe algo que mereça esse título, visto que para isso seria necessário distinguir essa hipotética vertente de dentro do que se denomina por literatura, de um modo geral.

Para tanto, seria útil reunir um conjunto de obras literárias que tratam do tema e verificar como ele é tornado linguagem. Esse corpus seria inevitavelmente confrontado com a seguinte ideia: existe um consenso (tal palavra não resulta hiperbólica) de que a literatura consagra-se como forma artística pelo fato de, entre outras coisas, observar o que o ser humano tem de mais característico e, assim, não resvalar na mesquinhez do panfletarismo, na caricatura da mera propaganda ideológica. De tal modo, inúmeros livros, em que se optou por exaltar a condição homossexual ou aproveitar a potencialidade de um segmento consumidor significativo, podem ser qualquer outra coisa, menos literatura, se considerarmos o sentido estritamente estético dos livros em questão.

A partir do século 19, a ciência médica passou a se acercar da questão da homossexualidade. Propagou-se a tese de que, como narra Michel Foucault em sua História da sexualidade, o homoerotismo era menos um tipo de relação sexual que uma inversão entre masculino e feminino. O que deu margem, por exemplo, a expressões errôneas como “o terceiro sexo”. Homossexuais sempre foram e continuarão sendo homens e mulheres. E algumas sendas da literatura praticada no Ocidente atestam isso de modo primoroso, visceral. Impõe-se aqui a necessidade de seguir alguns caminhos, em vez de documentar o tema por um vasto panorama.

O percurso é longo. Nesse trajeto, variados romances, contos e poemas podem ser considerados canônicos, na tradição ocidental, quanto à abordagem do homoerotismo, quanto ao modo como este se processa pela dicção de cada autor ou época. A experiência homossexual concretizada por muitos autores, em relação ao que dela se aplicou a seus escritos literários, é um detalhe que, embora muitas vezes não possa passar despercebido, tendo em vista o tema de que se trata, não é parâmetro confiável de avaliação desse conteúdo literário homoerótico.

Nas duas principais referências culturais que se tem da Antiguidade, Grécia e Roma, a valoração atribuída ao homoerotismo era diversa da de séculos posteriores. A pederastia, como em geral se sabe, era aceita; a conduta que alguém incriminaria em Gide era, naqueles tempos, uma forma particular de exaltar beleza e juventude, o que se pode ler, e este exemplo talvez nem seja dos melhores, nos versos de uma das Odes de Anacreonte: “Dioniso! Filho almo de Zeus,/ Libertador das penas, Liaios!/ Possues-me, nos delírios teus/ e atrais-me, ó tu que, até os desmaios,/ Dás vinho!”

Pelo fato de não gerar conflitos, o homoerotismo da Antiguidade clássica nada tinha da carga simbólica de subversão que adquiriu posteriormente, como se observa na obra de autores como Ovídio, Píndaro, Luciano, Catulo, Safo (“A mais bela coisa deste mundo/ para alguns são soldados a marchar,/ para outros uma frota; para mim/ é a minha bem-querida” – em “Para Anactória”) e outros. Com a Idade Média, a institucionalização do pecado cristão conferiu ao homoerotismo um caráter demoníaco, o que tornou sua abordagem proibida. As obras literárias da época simplesmente baniram o tema. Ambientado em um mosteiro medieval, O nome da rosa (1980), de Umberto Eco, é obra datada e caracterizada pelo século 20. E esse livro apenas sugere o envolvimento erótico entre alguns monges, sem discutir o assunto.

Foi o Renascimento, quando o homem europeu volta a querer investigar a si próprio, e a cultura clássica é retomada, que devolveu à literatura o direito de tratar dos prazeres da sexualidade, algo observado na obra do italiano Giovanni Bocaccio (1313-1375).

 

Em todo caso, a literatura
mais elitizada, durante o
Renascimento, ignorou o
homoerotismo, que ficou
legado ao âmbito de obras
pornográficas, à época
possuidoras de um caráter
de contestação religiosa
e política que tal gênero há
muito não apresenta mais.

 

 

Em seu ensaio publicado no livro A invenção da pornografia [organizado por Lynn Hunt, publicado pela editora Hedra e tema do dossiê da CULT 31], a historiadora Paula Findlen afirma que, na literatura pornográfica italiana do humanismo, especialmente nos diálogos de Pietro Aretino (1492-1556), sodomitas e prostitutas eram descritos como observadores privilegiados e críticos da ordem estabelecida, pois eram considerados uma categoria à parte na sociedade. Os textos do gênero, escritos por e para homens, excluíam relações sexuais entre eles. Caso aparecesse, a sodomia era referida de modo velado. O estereótipo dos personagens, comumente, era calcado na transgressão do papel feminino tradicional, preferencialmente pela figura da prostituta, versada em orgias e lesbianismo, talvez uma versão ancestral e menos chic da cocotte proustiana Odette de Crécy.

O primeiro grande autor da literatura universal pós-clássica que abordou o homoerotismo foi, sem dúvida, Marquês de Sade (1740-1814). Com ele, a relação entre autor e leitor, quanto à prática homoerótica, alcançou um nível de tensão inédito até então. Em sua obra, a distinção entre a literatura meramente pornô e textos mais intelectualizados se dissolve. Sade tratou de todos os temas observados na pornografia nos tempos iluministas: estupro, incesto, parricídio, tortura, sodomia, lesbianismo, assassinato como modalidade erótica etc. Segundo Lynn Hunt, ainda em A invenção da pornografia, Sade é representativo de toda uma tradição erótica, desde o século 16, tendo ido além dos alcances desta.

Sade apropriou-se indevidamente do mecanicismo metafísico de La Mettrie (que explicava a natureza humana sem empregar conceitos como alma ou espírito) para dar respaldo a seu ateísmo sensualista. Na postura de “libertino”, exaltou o homoerotismo como forma de exprimir o que considerava os instintos mais recônditos e legítimos do homem. Em obras como Os 120 dias de Sodoma ou Filosofia na alcova, o sexo entre homens ou entre mulheres está associado à transgressão moral deliberada como forma de busca do prazer físico. Dentro do repertório sadeano, o homoerotismo figurava ao lado da tortura e do assassinato, em um patamar indistinto, o que resulta da própria visão moralista da época, à qual, em certo sentido, nem o próprio Sade escapou. Não deixa de ser um marco na abordagem literária da sexualidade humana, de seus abismos.

A partir do século 19, a literatura pornográfica perde o caráter político e contestador e opta pelo aproveitamento mercadológico das oportunidades que o desenvolvimento tecnológico dos meios de imprensa e a formação de um público leitor burguês proporcionaram. O homoerotismo encontra, primeiro sutilmente, em seguida de modo mais explícito, seu espaço nesse nicho. O ponto de vista relativamente humanístico que se empregava no tratamento do homoerotismo na literatura pornográfica será gradativamente redimensionado e aprofundado com os grandes escritores dos dois últimos séculos.

Foucault argumenta, na História da sexualidade, que as culturas orientais têm sido pródigas, no tratamento discursivo da prática sexual, em produzirem textos de caráter simultaneamente educativo e místico – tratar-se-ia de uma espécie de ars erotica, na expressão foucaultiana, como definição de que o prazer vivido é base da experiência a ser relatada e fonte privilegiada da verdade do sensualismo. Ou seja, um suporte teórico recomendado. No Ocidente, o autor francês vislumbra, em contrapartida, uma scientia sexualis fundamentada no discurso cristão confessional, como exemplo de uma verdade analítica, mas não pedagógica, em termos de proposta objetiva.

Em vários saberes discursivos, “a confissão passou a ser, no Ocidente, uma das técnicas mais altamente valorizadas para produzir a verdade”. Dessa maneira, prossegue Foucault, ocorreu uma metamorfose na literatura clássica, originando a produção literária moderna: de um prazer de contar e ouvir, antes centrado na narrativa heroica ou maravilhosa das “provas” de bravura ou de santidade, passou-se a uma literatura ordenada em função da tarefa infinita de buscar, “no fundo de si mesmo, entre as palavras, uma verdade que a própria forma da confissão acena como inacessível”.

Quanto ao homoerotismo, tais caminhos também foram trilhados. A compreensão da própria sexualidade, e sua legitimação como algo que paradoxalmente foge à ética cristã da reprodução da espécie está estreitamente ligada a experiências outras, paralelas, entremeadas, levando os personagens ao âmago de sua personalidade. Essa tendência, a partir da literatura praticada na Europa e na América desde o século 19, passa a se confirmar e a se propagar. Obstáculos como o preconceito e o senso comum, em vários casos, formam parte da matéria textual com que a tensão romanesca, ou poética, é construída.

Tal proposta, abraçada por diversos escritores, foi representada primeiramente por aquele que certamente foi um dos grandes precursores da poesia na era moderna: Walt Whitman (1818-1892). Ironicamente, nascido e criado em uma das culturas mais (falsamente) moralistas de que se tem notícia, a norte-americana. Publicou seu único volume de poemas, Leaves of grass (Folhas da relva), em 1855 e acrescentou-lhe novos versos até o final de sua vida. Herdeiro da revolução que levou seu país à independência política, em 1776, Whitman foi o primeiro poeta mundial a escrever regularmente poemas em verso livre, influenciou vários dos grandes poetas americanos do século 20 (de Ezra Pound aos beatniks) e pregou o aproveitamento total das potencialidades humanas, físicas ou espirituais – um construto ideológico bastante adequado a uma América em expansão acelerada, mas espontâneo, visionário, libertário e autêntico.

Homossexual, Whitman levou uma vida aventuresca, tendo desempenhado diversas profissões (chegou a ser enfermeiro quando da Guerra da Secessão) e viajado por várias regiões dos EUA. À fruição de uma natureza comungada fraternalmente, ao autoconhecimento pelo conhecimento do mundo, o poeta associou um erotismo vigoroso, que assume uma postura contemplativa (“Vinte e oito moços tomando banho na praia,/ vinte e oito moços e todos tão amigáveis”), no famoso “Canto a mim mesmo”, e que clama pelo contato físico (“e a gente bem que gostaria de sentar-se/ no barco ao lado dele/ de modo que ele e a gente/ pudesse bem sentir os toques um do outro”).

 

Whitman propunha, em seus
poemas mais eróticos, um
amor livre de inibições, de
modo que os sentidos
levassem os amantes a uma
ascese consumada em um
êxtase espiritual.

 

 

A poesia whitmaniana apresenta seu autor como um personagem poético que, para sua plena realização pessoal e como modo de completa integração com a natureza, chama para si homens ou mulheres: “Sem se envergonhar disso,/ o homem que eu amo conhece e proclama/ as delícias do sexo;/ sem se envergonhar disso,/ conhece e proclama a mulher que eu amo/ as delícias do dela” (“Uma mulher me espera”). O homoerotismo, o bissexualismo e o pansexualismo místico são a promessa de expansão de si e do universo: “O sexo contém tudo”.

Contemporâneo de Whitman foi aquele que talvez tenha sido o maior ícone gay da literatura mundial: Oscar Wilde (1854-1900). Dublinense, adepto da filosofia da “arte pela arte” (o que, no caso de um humanista nato como Wilde, gerou profundos equívocos), espalhafatoso, carismático, recriou com sua presença e sua literatura peculiares o dandismo baudelaireano. Casado e com dois filhos, não se furtava a frequentar bordéis gay, aventurar-se com marinheiros e desperdiçar em orgias o dinheiro que ganhou com sua gradual notoriedade no retrógrado Reino Unido da Era Vitoriana.

Nas obras de Wilde, as referências ao homoerotismo são veladas, recobertas de um relativo preciosismo estilístico. Em O retrato de Dorian Gray, seu único romance, o amor platônico do pintor Basil Hallward pelo belo e jovial Gray é pervertido pelo diabólico e persuasor lorde Henry Wotton, que influencia o ingênuo efebo a levar uma vida de prazeres desregrados, crimes e corrupção de “homens e mulheres”. Nunca, em uma obra literária, o apuro parnasianóide e o decadentismo fin-de-siècle estiveram tão amalgamados.

A derrocada de Wilde veio como resultado de seu envolvimento com lorde Alfred Douglas, o que lhe rende dois anos de cadeia e difamação de seu nome perante a opinião pública britânica. É com De profundis (1896), carta escrita na prisão a Douglas, mas nunca enviada, que Wilde exprime com robustez literária toda sua amargura para um destinatário indiferente, apesar de amado. O encarceramento gera uma ruptura na vida do escritor, o qual mudou seu escopo criativo, o princípio gerador de sua arte: do belo e seus prazeres sensoriais à dor e sua metafísica (particularmente cristã, ao menos em termos estéticos). Infelizmente, não lhe restou muito tempo para o exercício desse novo horizonte.

À maneira de Whitman, o homoerotismo, como parte de uma trajetória rumo à liberação do indivíduo, que no início do século 20 já se sufocava em meio de parafernálias industriais e formas literárias desatualizadas, é elemento da obra romanesca do francês André Gide (1869-1951). Produto de uma rígida educação protestante, casado com Madeleine Rondeaux, avatar de sua mãe, Gide ficou conhecido por satisfazer-se sexualmente com garotos que conhecia no continente africano, onde habitou parte de sua vida. Quase autobiográfico, seu romance O imoralista (1902) retrata as buscas homoeróticas e existenciais de um personagem que é, de certa forma, ninguém mais que o próprio Gide.

Michel, nome dado ao Gide textual de O imoralista, leva uma vida de jovem intelectual promissor, dedicado aos estudos e infenso a entretenimentos. Uma tuberculose e a vista saudável de um garoto árabe o excitam a buscar os prazeres que nunca aproveitara. Ao abrir as portas de seus cinco sentidos, o personagem formula inadvertidamente todo um código moral baseado na imoralidade, que o faz excitar-se ao ver seus bens furtados, sua fortuna desperdiçada e a negligenciar a doença que leva sua esposa à morte. Em um caminho inverso, as ideias a que o personagem se disponibiliza o dirigem à concretização de seus desejos físicos, ainda que isso resulte imoral: o crime da negligência é atenuado pela companhia de um garoto africano “em troca de alguns níqueis e carícias”. Destaca-se ainda, do mesmo autor, Corydon, de caráter mais ensaístico.

 

No início do século 20, alguns
escritores modernistas da
Península Ibérica também
inseriam em sua linguagem
indícios de uma personalidade
homoerótica.

 

 

Federico García Lorca (1898-1936), um dos grandes poetas espanhóis do século 20, cantou o amor heterossexual, mas não se privou de expressar um fascínio pelo corpo masculino e suas simbologias (“São Miguel, cheio de rendas/ na alcova de sua torre,/ mostra suas belas coxas/ cingidas pelos faróis” – do poema “São Miguel”, em Romanceiro Gitano, de 1927). Em seu livro Poeta em Nova York (1930), escrito durante uma temporada vivida na big apple americana, há uma “Ode a Walt Whitman”, na qual, como em outros poemas da mesma obra, Lorca reflete o cotidiano caótico concretizado em grandes centros urbanos de crescimento desordenado, onde a cidadania não alcança a particularidade de todos os indivíduos: “os maricas, Walt Whitman, os maricas/ turvos de lágrimas, carne para chicote,/ bota ou mordedura dos domadores”.

O português Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), junto com Fernando Pessoa e outros escritores, foi um dos que instauraram o momento moderno na literatura lusa, com a publicação da revista Orpheu. Suicidou-se aos vinte e cinco anos, após uma série de desilusões (inclusive amorosas). Sua poesia revela uma personalidade insatisfeita, em que a tensão do eu expressa-se por uma desarticulação da linguagem tradicional (como no famoso poema futurista “Manucure”). “Forçoso me era antes possuir/ Quem eu estimasse – ou homem ou mulher” (“Como eu não possuo”).

Na novela A confissão de Lúcio (1913), de Sá-Carneiro, um jovem artista narra em primeira pessoa um falso assassinato que o levou injustamente à cadeia. Apaixonado por seu amigo Ricardo, ele cria, sem se dar conta, um mecanismo de defesa psíquica de modo a se salvaguardar do tabu do homoerotismo: uma amante, Marta, que se percebe ser o próprio Ricardo. O delírio alucinatório toma fim com o suicídio de Ricardo e a condenação do personagem-título pelo “crime” que efetivamente cometeu: ser homossexual.

Fernando Pessoa, que em sua poesia ortônima (e em sua vida, dizem) foi quase indiferente ao sexo, revela, através do heterônimo Álvaro de Campos, uma avidez por ser subjugado como uma fêmea: “Eu podia morrer triturado por um motor/ Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída”. Na “Saudação a Walt Whitman”, em lugar do acento social que Lorca empregou ao louvar o bardo americano, Pessoa, ou melhor, Campos atesta uma semelhante entre si e o “grande pederasta” saudado, revelando uma “vontade (…)/ De ser a cadela de todos os cães e eles não me bastam”. O universo pulsante de Whitman é pervertido, requintadamente, pelos espasmos angustiados do heterônimo pessoano.

Tido como o escritor que talvez melhor tenha representado, em suas obras, a decadência europeia no entre-guerras, Thomas Mann (1875-1955) cria, em A morte em Veneza (1912), um intelectual solitário, Gustav Von Aschenbach, que, em meio da degradação de um lugar que já fora um dos mais esplendorosos da Europa, recupera a crença na beleza artística ao ver Tadzio, um jovem garoto polonês. A condenação moral desse fascínio engendra a tensão elevada da novela: “Cabeça e coração estavam embriagados e seus passos seguiam as instruções do demônio, que sente prazer em pisar com seu pé a inteligência e a dignidade humanas.” O erotismo se resume, mas também se alastra, na distância contemplativa que se mantém entre os dois personagens.

A literatura praticada por mulheres tem sido parcimoniosa quanto ao homoerotismo. Excluindo-se aqui as autoras que trataram do tema em uma perspectiva pornográfica ou militante, sobram parcos exemplos. Mesmo escritoras consumadamente lésbicas, como as americanas Gertrude Stein e Elizabeth Bishop, foram reticentes quanto a codificar suas experiências em texto. Pode-se citar o diário da escritora erótica Anaïs Nin (1986), que viveu tumultuado triângulo com o escritor Henry Miller e sua esposa, June.

A escritora que melhor entrelaçou a personalidade feminina com as questões da homossexualidade foi, no século 20, Virginia Woolf. O personagem Orlando, do romance homônimo (1928), é o índice desse feito. Orlando, imortal, passa longos tempos como mulher, para em seguida tornar-se homem, até voltar à condição feminina, em torno de um século depois, e assim indefinidamente. A sexualidade do personagem acompanha essas mudanças, assim como, na visão de Woolf, o decorrer da história ocidental justifica e suscita essa ambiguidade.

É provável que o grande marco na abordagem do homoerotismo e suas implicações na vida em sociedade deva-se ao francês Marcel Proust (1871-1922), ainda que sem o tom elogioso de escritores como Gide e Whitman. Em busca do tempo perdido (1913-1927), a obra máxima proustiana, é romance em sete volumes nos quais ficção e memória se entrelaçam para compor um grande tratado romanesco sobre a relatividade do tempo para a vida humana e a eternização desta pela arte. Álvaro Lins nos rememora, em A técnica do romance em Marcel Proust, que o nome da obra deveria ser Sodoma e Gomorra, título de um dos volumes da série. Em tempo: Sodoma, em Proust, designa os homossexuais masculinos e Gomorra, os femininos.

Retratando uma visão corrente à época em que Proust viveu, o narrador (que não é necessariamente Proust, ao menos quanto às experiências contadas no livro) descreve os homossexuais como seres dissimulados, infelizes por viverem a ocultar seu “mal”, e que podem ser encontrados em todos os lugares e grupos sociais. Embora Proust parta da antiquada noção dos “homens-mulher” e das “mulheres-homem”, mais forte que a argumentação ensaística do autor é a maneira como tece seus personagens. De um modo geral, o comportamento de todos varia conforme o momento da vida. A postura feminina do Barão de Charlus é mediada por momentos de intensa virilidade. Esta, no Marquês de Saint-Loup, exímio conquistador de mulheres, mais transparece à medida que ele se envolve com soldados durante a primeira Grande Guerra (1914-1918).

Da proposição inicial dos invertidos, da falsa ideia de que a opção sexual se irradia para a personalidade, Proust leva o leitor a concluir, pelo desenrolar de sua narrativa, que a sexualidade é relativizada pela vida social: há homens que são homens e gostam de homens; homens que são mulheres e gostam de homens (que, por sua vez, casam-se com mulheres que gostam de mulheres); homens que são mulheres, de certo modo, pela sensibilidade e submissão, mas se envolvem apenas com mulheres, como é o caso do narrador e de Charles Swann. O inverso, em relação às mulheres, também é válido. A própria noção biológica de sexo, macho e fêmea, perde-se pela sua relativização. Por sua vez, o caráter “anormal” do homoerotismo é atenuado por outras perversões cotidianas: ao deitar-se com a amante, a Srta. Vinteuil profana o retrato do falecido pai; sodomizado por rapazes em um bordel, Charlus purifica seu desejo “invertido” ao exigir ser espancado por eles.

Após todo esse percurso, da noção de personalidade homossexual como um desvio até a compreensão desmistificadora dessa sexualidade, Giovanni (1956), do americano James Baldwin (1924-1987), aprofunda de modo literário (e literal) os meandros não apenas do sexo, mas do amor entre dois homens, indivíduos saltados de culturas e valores divergentes e conflituosos (um italiano e um americano). Baldwin era negro e discutiu, em muitos de seus escritos ensaísticos e ficcionais, a questão racial nos EUA. Em Giovanni, o homoerotismo surge como uma identidade cogitada, mas não alcançada, em meio do chocar-se de outras identidades (cultural, nacional, pessoal) do cotidiano da modernidade.

O dramaturgo e romancista Jean Genet, autor de romances entre os quais Nossa Senhora das Flores (1848), pode ser considerado um marco na tendência de explorar, em uma linguagem crua (o que também sugere a ruptura desse tipo de obra em relação ao modernismo tradicional) o aspecto marginal da vida de gays, lésbicas e travestis. O que é peculiar, em um momento no qual a defesa internacional dos direitos de opção sexual mais se acirra. Um dos símbolos da obra de Genet – o homossexual bandido, sufocado existencialmente nos limites de uma cela estreita – é diretamente proporcional ao ímpeto experimental da geração beatAllen Ginsberg, William Burroughs, Jack Kerouac e outros tantos que, longe de estetizar o sonho americano, deram conta do homoerotismo, e da idéia de sua legitimidade, como sendo ainda conceitos flutuantes, apesar da experiência sedimentada, no caldo da cultura ocidental contemporânea. Os “expoentes” da “geração batida”, como diria Ginsberg, são os homossexuais, assim como são também outras minorias que descobriram ter voz, a partir dos anos 60.

E assim seguem escritores, num novo século tão multifacetado quanto estagnado, produzindo, em cada estilo pessoal, uma tal literatura homoerótica que, em certo sentido, inexiste, embora seja cheia de nomes: Gore Vidal, Truman Capote, Tenessee Williams, Edmund White, E.M. Forster, Manuel Puig, David Leavitt etc. A briga, hoje, talvez seja outra: não permitir que a homossexualidade seja (e ela o é, cada vez mais) só mais um nicho economicamente vendável dos dias de agora.

Saulo Lemos é jornalista e mestrando em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC)


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(1) Comentário

  1. Orlando começa como homem e um dia acorda mulher ( e fica assim até o final do romance).
    Ok, talvez nós lemos dois Orlandos diferentes de Virginia Woolf.

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