Gertrude Stein: uma escritora para o século 21

Gertrude Stein: uma escritora para o século 21
Retrato de Gertrude Stein feita pelo pintor, fotógrafo e anarquista Man Ray, em 1927 (Reprodução)

 

Ao longo de seus 89 anos, a escritora Alice B. Toklas conheceu muitas pessoas importantes, algumas realmente grandiosas, mas apenas em três ocasiões um sino tocou dentro dela de modo a denunciar a presença de um gênio: quando foi apresentada ao filósofo inglês Alfred Whitehead, ao pintor espanhol Pablo Picasso e à escritora norte-americana Gertrude Stein.

Toklas narra essa história em sua autobiografia, A autobiografia de Alice B. Toklas, escrita não por ela, como seria de se esperar, mas pela mulher que amou e acompanhou até a morte, quase quatro décadas depois do primeiro encontro em 1907: a nada convencional Gertrude Stein, cuja extensa obra – que transita entre poesia, dramaturgia e prosa de ficção e não ficção – entrou em domínio público no início de 2017.

Não foi sem mérito ou motivo que, assumindo o ponto de vista de sua companheira, Stein cravou a (auto)afirmação de sua genialidade. Como lembra Luci Collin, escritora e professora de Literaturas de Língua Inglesa na UFPR, o livro foi publicado em 1933, depois de três décadas de extrema dedicação da autora, então aos 59 anos, à literatura experimental.

“Decepcionada pelo descaso da crítica e dos leitores, deliberadamente, ela lança um livro para mostrar que sabia escrever literatura de entretenimento. É sua ‘bofetada no gosto público’”, explica Collin. “Mas a qualidade excepcional da autora prevalece: o que era para ser ‘um livro de fofocas’ tornou-se uma das obras mais desafiadoras do século 20, uma vez que desestabiliza o próprio conceito de ‘autobiografia’.”

Não por acaso, a “falsa autobiografia” de Toklas é um dos seis títulos de Stein já editados no Brasil – dos quais apenas quatro estão disponíveis. O conjunto, no entanto, deve crescer neste ano, quando dois inéditos chegam às livrarias brasileiras – Para fazer: um livro de alfabetos e aniversários, incursão da escritora na literatura infantil, traduzido por Collin e Dirce Waltrick Amarante, que sairá pela editora Iluminuras; e uma coletânea em dois volumes de ensaios e textos curtos, traduzidos por Inês Cardoso, que será publicada pela editora Luna Parque. Além disso, em 2018, o selo Penguin, da Companhia das Letras, relança Três vidas (traduzido por Vanessa Barbara) e A autobiografia de Alice B. Toklas (tradução de Júlio Castañon Guimarães), obras publicadas anteriormente pela extinta Cosac Naify e que serão reeditadas com material crítico inédito.

Publisher do selo Companhia das Letras, Otávio Marques da Costa conta que por enquanto a editora não tem planos de publicar a obra completa de Stein. “Vamos começar com esses dois livros e observar como se saem”, explica. “A figura dela sem dúvida desperta interesse pelo papel que desempenhou como agitadora cultural na Paris dos anos 1920, mas acho que a demanda por seus livros não é tão grande quanto deveria ser. Seria interessante mudar isso.” Outras duas grandes editoras, Record e Globo Livros, disseram não planejar nenhum lançamento relacionado à escritora para os próximos anos.

Ativista da evolução poética

Nascida em 1874, a caçula entre os cinco filhos de uma abastada família judia da Pensilvânia, Stein abandonou os estudos na Escola de Medicina Johns Hopkins aos 29 anos e se autoexilou em Paris, onde passaria o resto da vida escrevendo, colecionando arte e organizando saraus em seu apartamento, no número 27 da Rue Fleurus. As festas eram frequentadas por nomes como Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, James Joyce, Pablo Picasso e Henri Matisse.

Já na capital francesa, ela começa a escrever The making of Americans, romance de mais de mil páginas em que narra a história americana utilizando apenas o modo do presente contínuo. Publicada em 1925, a obra não foi editada no Brasil.

“Em Paris, Stein viu corroboradas suas pretendidas renovações estéticas. Sua linguagem é uma linguagem do exílio. Foi nele que pôde dedicar-se à contemplação do que a Europa oferecia ao mundo: uma completa evolução das linguagens artísticas”, relata Sônia Régis, professora do Departamento de Arte da PUC-SP que desde o início dos anos 1980 se debruça sobre a obra da escritora. “Stein admirou Cézanne, traduziu Flaubert, descobriu Picasso, discutiu com Matisse, percorreu os salões onde a arte se mostrava renovada e sentiu-se gratificada em sua própria ousadia. Lá poderia tornar-se uma ativista da evolução literária”.

O ativismo foi tão radical a ponto de Régis sustentar que a autora, em sua tarefa de “interrogar o signo verbal e elaborar variadas possibilidades da escrita poética”, foi mais pretensiosa do que toda inovação que o século 20 poderia absorver. “Stein tinha consciência disso. ‘Quem inova’, dizia, ‘sempre produz algo feio, porque o esforço para mudar é muito grande. A geração seguinte cria com mais suavidade e de modo mais atraente e por isso é mais bem aceita’”, afirma Régis. “Ela influenciou profundamente a literatura do século 20, é citada juntamente com Ezra Pound e James Joyce. Alguns críticos, inclusive, notam em Joyce alguma influência de Stein, principalmente no uso do fluxo de consciência [conceito cunhado pelo filósofo pragmatista americano William James, de quem a escritora foi aluna]”.

A seu ver, o legado deixado pela escritora foi o de ter chamado para a literatura o conhecimento sensível, tratado as palavras como um material bruto a que se pudesse dar forma, como se o texto fosse uma escultura. “Para ela, a leitura deveria ter a extensão da escrita, sem a possibilidade de ser sintetizada e recontada. O que Clarice Lispector fez em Água viva. Depois de lermos o livro somos incapazes de resumi-lo. Para entrar em contato com o conteúdo é preciso passar novamente pelo tempo da própria leitura”, explica Régis.

Impossível de encenar

A qualidade revolucionária na obra da escritora, conforme afirma a professora da UFPR Luci Collin, está presente nos três gêneros a que ela se dedicou: “Stein escreveu a poesia, a ficção e o drama mais desafiadores do seu tempo e antecipou-se a muitos dos escritores que iriam se tornar conhecidos como revolucionários”.

Foi no verão de 1913 que a escritora decidiu se aventurar na dramaturgia: escreveu primeiro a peça intitulada Aconteceu uma peça; depois, ao longo de sete anos, escreveria outras dezessete, reunidas no livro Geography and plays em 1922 e, hoje, disponíveis em português no livro O que você está olhando (Iluminuras, 2014), traduzido por Collin e Dirce Waltrick do Amarante. Ainda escreveria mais textos dramatúrgicos. Boa parte deles pode ser encontrada em mais dois volumes que não chegaram ao mercado brasileiro, Operas and plays e Last operas and plays. Há ainda peças avulsas, conforme aponta Inês Cardoso, professora do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da UniRio. “Há peças espalhadas em outras coletâneas e há, ainda, textos que são considerados peças por alguns críticos e não são por outros, o que dificulta a circunscrição de um corpus dramatúrgico fechado e definitivo”, afirma.

Durante muito tempo, as peças steinianas foram consideradas impossíveis de encenar. Isso ocorria, segundo o estudioso alemão Hans-Thies Lehmann, porque eram avaliadas de acordo com a perspectiva do teatro dramático, tradição cujo fim já era anunciado pelos próprios textos. Stein teria sido, segundo ele, precursora também do teatro “pós-dramático”, termo cunhado pelo próprio crítico.

“Nas peças steinianas, até há, muitas vezes, os elementos esperáveis: falas, atos, cenas, personagens, rubricas, até mesmo coro. Só que eles não cumprem as suas funções habituais”, explica Inês Cardoso. “Os atos nem sempre obedecem a uma ordem cronológica, por exemplo. Há peças nas quais o ato um se repete duas ou três vezes. Noutras são os atos que parecem emitir as falas já que não há qualquer indicação de personagens falantes. Há outra peça que é dividida por páginas e não por cenas. Às vezes, há rubricas no meio das falas, sem qualquer indicação gráfica, dando a entender que elas devem ser emitidas em voz alta pelo ator em cena – como de fato acontece na encenação do Wooster Group para o Dr. Faustus Liga a Luz, uma das melhores feitas até hoje.”

Segundo a professora, a dramaturgia de Stein foi fundamental para a encenação experimental das últimas décadas do século 20. Ela cita Bob Wilson como exemplo, encenador norte-americano responsável pela montagem de três peças da autora, que declarou ter “mudado para sempre seu jeito de pensar” após ler textos e ouvir gravações da voz de Stein no início dos anos 1960. “Ela foi fundamental também para refletir sobre o teatro. Partindo de suas reflexões sobre o gênero, principalmente as contidas no ensaio Plays, se forjou o conceito de ‘peça-paisagem’, trabalhado por críticos como Jean-Pierre Sarrazac e Hans-Thies Lehmann”, afirma a professora.

Mulher lésbica pronta para o século 21

Não foi sempre, no entanto, que Gertrude Stein foi bem-aceita pela crítica especializada. Entre 1934 e 1935, foi muito bem recebida em visita aos EUA, onde participou de diversas conferências em universidades. Mas, conforme aponta Sônia Régis, ainda havia na época muito preconceito em relação às mulheres escritoras. “Além do mais, causou perplexidade o livro póstumo de Hemingway, Paris é uma festa (1965), em que ele delata de modo maldoso sua homossexualidade”, relembra.

Em sua obra, Stein chegou a refletir a respeito das condições feminina e homossexual, mas o fez de maneira codificada, dada a grande rejeição aos temas em sua época. “Ela construiu todo um ‘idioma’ próprio em que consegue tematizar questões então polêmicas”, explica Luci Collin. “Por exemplo, ‘vacas’ (cows, em inglês) são orgasmos, o que potencializa uma frase aparentemente banal ou até sem nexo como ‘Ela teve uma vaca’. E uma marca steiniana universal que todos conhecem e repetem, mas apenas superficialmente, é a frase Rose is a rose is a rose is a rose que, além de dialogar com a tradição shakespeariana de sentido a partir da rosa-flor, forma a palavra arose que sugere o verbo to arouse, ‘excitar sexualmente’, e arousal, que são as preliminares no sexo.”

Segundo a professora da UFPR, durante muito tempo, a autora foi penalizada por representar diversas minorias – era judia, mulher, expatriada, lésbica e vanguardista –, algo que só foi superado com o passar dos anos. “Depois de absorvida sua condição primeira de figura marginal, sua obra se prova cada vez mais revolucionária e hoje, em comparação a outros nomes festejados anteriormente, ela conta com um prestígio muito maior”, afirma.

Se o século 20, conforme diz Régis, não estava pronto para Gertrude Stein, o século 21, acredita Collin, está “preparadíssimo”: “Cabe a todos nós – leitores, críticos literários, editores, tradutores, pesquisadores, artistas – assumirmos um papel colaborativo que concorra para a difusão da extraordinária literatura que ela nos oferece. Ganharemos todos, e muito”. 

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