Poesia lésbica escrita por mulheres: dupla marca de subjetividade contra o rochedo da inexistência

Poesia lésbica escrita por mulheres: dupla marca de subjetividade contra o rochedo da inexistência
O caráter de silenciamento que acompanha a voz feminina é duplicado pela marca da lesbiandade (Foto: Reprodução)

 

Silêncio, pedra grande sobre o assunto. Se alguém fala, cuidado, quer alimentar o binarismo, as classificações, a lógica das dicotomias que só impedem o ser humano de ser a potência da sua totalidade. “Cuidado, a humanidade é maior que todas estas caixinhas que dividem mulheres, negros, héteros, bissexuais, gays e lésbicas”, alguém diria. Como se a disposição da classificação geral e aparente(mente) neutra não expusesse o nervo das generalizações de linguagem que podem estar a serviço da manutenção apontada já por Simone de Beauvoir nos idos de 1949, em O segundo sexo, sobre a história documental e ontológica de submissão da mulher, na qual paira a sua insignificância, sua outridade, seu ser ocasional que, se bem ouvido, aponta para a sua ocasião e para o seu ocaso.

A questão que nos move neste texto: poesia de temática lésbica escrita por mulheres – dupla marca de subjetividade contra o rochedo da inexistência (da ineficiência, etc.). O ponto para o qual gostaríamos de encaminhar nossa reflexão gira em torno de uma demanda de representação, isto é, de como sempre fomos ensinadas a amar o cânone sem necessariamente participar dele em nenhum aspecto, senão através da nossa “humanidade”, o que sabemos ser belo, sim, mas generalizante e, muitas vezes, totalitário porque força de lei, como lembra Derrida.

O caráter de silenciamento que acompanha a voz feminina é duplicado pela marca da lesbiandade. E se é difícil vislumbrar uma longa, múltipla e distante história da lírica feminina, mais difícil ainda se torna encontrar vozes femininas que (se) autorizem e sejam autorizadas a dizer o desejo e/ ou o amor por outras mulheres, no feminino. Algo muito próximo a isso disse Hélène Cixous sobre a condição feminina: para a mulher a linguagem foi e ainda é a herança de muito silêncio, como se houvesse uma condenação a uma quarentena ou à uma casa de saúde pois para nós o que haveria seria uma terra plena de lugares de reclusão.

No traçado do dizer lésbico, parece haver, homologamente, uma dificuldade de dizer a lesbiandade ou o relacionamento afetivo entre mulheres. Vejamos o poema no. 05 do “Livro rosa do coração dos trouxas”, contido em Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas:

eu tive uma namorada
com super poderes
de invisibilidade
e quando andava com ela
também era invisível

mas quando ela usava
uma blusa transparente
virava a incrível
mulher-teta

eu continuava
sob o guarda-chuva
de superpoderes
superinvisível

invejável
ao lado das
cervejas e
superamendoins

Há no poema – como há na poesia de Angélica – uma estratégia de humor auxiliada pela economia dos versos e das imagens. Entretanto, o que chama a atenção no texto é exatamente a condição de um apagamento feminino, cuja subversão só parece ser possível no campo da erotização e do fetiche, que no caso pode ser lido nos versos que se referem à namorada da voz poética ter se transformado na “incrível/ mulher-teta”.

Ou seja, à mulher que não permite ou não deseja acesso público ao seu corpo, seja por não usar a “transparência” que facilita(ria) o olhar do outro, seja por não ter os superpoderes do corpo, acaba por recorrer a uma existência silente, “superinvisível/ invejável/ ao lado das/ cervejas e/ superamendoins”. Quer dizer que apesar da relação afetiva “eu tive uma namorada”, há uma espécie de resto de indizibilidade que acompanha o relacionamento lésbico. E mesmo quando o poema decide falar sobre isso, há uma solidão feminina intransponível, desmistificada pela ausência dos superpoderes.

Trata-se, portanto, de uma questão de poder do corpo feminino que, aparelhado pela lógica misógina e mercadológica, entende a sua subjetividade e admite apenas a partir da confirmação do desejo e da apropriação pelo masculino. Quanto a este sentido, a própria Angélica Freitas, em entrevista a Alice Sant´anna,  em O Globo de 09 de novembro de 2012, insiste na questão norteadora do inquérito: “-quem manda no corpo da mulher?”. A poeta responde de maneira muito clara sobre os incômodos e justificativas que mulheres cientes da sua autonomia e da sua liberdade precisam dar na cultura brasileira: diz que no Brasil as mulheres parecem ter vergonha de se defender.

É sob um véu de enigmatização do feminino que também se apresenta a sexualidade entre mulheres: como uma espécie de “elo perdido/ entre o que sou e o que flutua.” que comparece a discreta celebração entre os corpos de mulheres. Vejamos, efetivamente, o poema “Alegoria”, da poeta baiana Katia Borges, autora de Ticket Zen, (Escrituras, 2010):

Toco as costas da moça nua,
deitada a meu lado na penumbra,
e sinto a sua pele mansa,
como ovelhas na montanha
da nuca que se insinua.

Sob o lençol macio, um mundo pulsa,
e minha mão desliza, inteira
sobre ela, moça nua, elo perdido
entre o que sou e o que flutua.

Sem dizer nada, sinto que peço
que me devolva a paz da infância,
e que me mostre o mundo, a substância
do que é vida dentro de mim.

Sem dizer nada, sinto que impeço
que ela se abra  e me devore
e coma o fruto que ofereço,
em sumo, carne, língua, dedos,
fluido etéreo do amor que teço,
terço que rezo, prenhe de sim,
nu de razões ou de adereços.

Novamente, é evocado pelo poema um impedimento que se apresenta inicialmente velado “sob o lençol macio” para concordar com primeiro verso da última estrofe. Apesar deste entretanto, o desejo parece ter sobrevivido “prenhe de sim” na sua eloquencia e na força desta nudez tão radicalmente despida. Nesta alegoria de um amor que é muito pouco previsto – e quando previsto sempre ilustrado como fetiche -, o encontro entre duas mulheres possibilita desvelamentos, descobrimentos de metáforas e elos perdidos, numa outra linguagem que permite devires outros “entre o que sou e o que flutua.”.

Já na poesia de Simone Brantes o exercício da sexualidade entre mulheres comparece, inclusive de maneira frequente, assim como na poética da potiguar Marize Castro (autora de Marrons Crepons Marfins, 1984; Esperando Ouro, 2005, etc.) por exemplo e da paulistana Cecília Floresta (Cunilíngua, no prelo e Poemas Crus a sair em dezembro de 2016 pela Editora Patuá). Brantes, em seu belo livro Quase todas as noites (7 Letras, 2016), possui alguns poemas dedicados à questão com que ora trabalhamos, dos quais destacamos “As moças” e “A cor mais quente”. De Pastilhas Brancas (7 Letras, 1999), o poema “Gravura”, de Simone, também deve ser mencionado:

Ela cabe no meu mundo como um leve toque
de asa no meu rosto
(asa
de um pássaro ver-
melho batom. Um tom
um ceú ris-
cado em claro tom
Música de sino de
cidade pequena pequenos di-
minutos dedos velozes
(meu corpo dentro de
um carro luz-me-
tal atravessa
a cidade
quando os
dedos
dela
deslizam

Leveza que carrega intensidades, claridades próprias da iluminação: é o que há neste poema, onde o erotismo parece desistir de caber entre parênteses, esses pequenos túneis de uma passagem amorosa e gozosa, nesta máquina de atravessar velocidades que é o corpo “quando os/ dedos/ dela/ deslizam” e a aliteração persiste (resiste) no balbucio (d…d…d…) do orgasmo contra a maquinaria que produz a abjeção a certos corpos e a certas sexualidades, como lembra Judith Butler.

Leiamos, por fim, o poema “amazonas das sete lanças”, de Cecília Floresta:

naquela noite
Mariana atravessou a mesa
me beijou e disse:
vai, Cecília! serfancha na vida.

a sociedade coíbe mulheres
que amam outras mulheres.
aquela noite talvez fosse tarde,
não houvesse tantas cervejas.

minha cabeça vertiginosa cheia de imagens:
meninas verdes púrpuras vermelhas.

pra que tantas lesbianas, minha Deusa?
resmunga meu coração.
embora as minhas vontades
sejam bastantes & famintas.

a moça de cabelos curtos
do outro lado do vagão
não deixa dúvidas:
gesticula em demasia
teve muitas, muitas amantes
a mulher atrás do livro
No bosque da noite

Afrodite,
por que foi que dividiste?
se sabias que amava demais
se atinavas que não beberia
apenas uma rodada por vez

comprida rua Augusta,
se eu soltasse um “no me gusta”
seria uma rima, e não sapatão.
comprida rua Augusta
da Paulista até o centro
foste muitas vezes
minha única consolação.

eu não devia dizer nada
mas aquela mulher
mas esse tesão
botam a gente chuvosa
como Ângela Rô Rô nos ouvidos
em domingos
quando é tudo
quase tudo por um triz

O poema, em correspondência direta com o fundamental “Poema de sete faces”, de Drummonde com o “Com licença poética”, de Adélia Prado, traça uma espécie de “genealogia da espécie poética” de Cecília. Ao formular a gradação gauche – mulher –fancha, a poeta exibe sua herança simbólica (ouvinte de Rô Rô, leitora de DjunaBarnes – autora de No bosque da noite) para se dizer inscrita numa clave ética fora da lógica que rege e constitui a base da heterossexualidade compulsória: o conservadorismo das instituições patriarcais e de dominação masculina, na medida em que o sujeito poético se autentica como mulher lésbica inapropriada (assim entenderemos o gauche aqui.) permeada pelo “tesão” que “botam a gente chuvosa”. Ou seja, o desejo salva “quando é tudo/ quase tudo por um triz”. Ele, o desejo, talvez nos aplaque o não-saber do elo perdido encontrado no poema de Kátia Borges.

Noutras palavras, a poesia que coloca em pauta a lesbiandade, ou a homoafetividade entre mulheres, parece nos dar notícia de uma crítica cultural extremamente relevante para o nosso tempo (Drummond, novamente). Diante do arrefecimento conservador e das decisões sustentadas pelo friso do autoritarismo em nossa(s) cultura(s), as escritas lésbicas evocam outras maquinarias desejantes capazes de estremecer e/ou fomentar a fúria de todas as formas do falocentrismo e, consequentemente, do Poder.

imagino a bishop entre cajus
toda inchada e jururu
da janela o rio e a seu
lado a lota, com um conta-gotas.

“but you must stay.
forget that ship”, she said.
ao que bishop riu, olho esquerdo
sumiu, afundou na pálpebra.

a americana dormiu em alfa.
e no seu sono, tão geográfica
sonhou com a carioca rica
e com a vastidão da américa.

Angélica Freitas, RilkeShake.

As moças

Como duas moças se encontram
pelas moitas? Como entram duas vulvas
sob a colcha?
como sem mergulho
marulham no fundo os líquidos
de uma na outra?
Como, como –
por que poder de Deus
– as moças
se comem se comem se comem
com as coxas?

Simone Brantes, Quase todas as noites.

Mulher

“No teu cabelo negro brilham estrelas.”
Elizabeth Bishop

Há uma mulher chamada Nome,
cujo rosto eu desconheço.
Sempre que chego dizem: “Oh, ela
saiu daqui agora mesmo.”

Ah, essa jovem senhora
sabe a aurora, tece com finos dedos
fios de ouro envelhecido, em seus cabelos,
manto amarelo. E o Universo inteiro cede
a um encantamento que ninguém consegue nominar.

Há uma mulher chamada Espelho.

Kátia Borges, Ticket zen.

moça entendida não paga

encarnados morangos
laranjas suculentas cortadas ao meio
pêssegos elegantes
cupuaçus babaçus
a castanha do caju
o útero ovalado do abacate
a semente espinhosa do pequi
o lado de dentro do tomate italiano
quando retiradas todas as sementes
a pele delicada da tangerina
ou a imponência sisuda do figo
o oco do melão
a vermelhidão interna da romã
apecaminosidade bíblica
da popular maçã
& graviolas

e ela ainda me pergunta
em qual das pontas
fica o melhor pastel da feira

Cecília Floresta, Cunilíngua [no prelo].


TATIANA PEQUENO é professora do Instituto de Letras da UFF, onde coordena o grupo de pesquisas Corpo, Gênero e Sexualidade nas Literaturas de Língua Portuguesa. É ensaísta, cronista e poeta, tendo publicado dois livros de poesia: réplica das urtigas (Oficina Raquel, 2009) e Aceno (Oficina Raquel, 2014).

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