A segunda morte do autor

A segunda morte do autor
Foto Funarte / Divulgação

 

No final dos anos 1990, David Cope, musicólogo da Universidade da Califórnia, sacudiu o mundo da música e da teoria da arte ao inventar um programa de computador capaz de criar peças à maneira de grandes compositores do passado como Bach, Mozart, Beethoven, Brahms, Stravinsky etc. “À maneira de” deve ser aqui entendida em sentido forte: ouvintes acostumados às obras desses compositores não são capazes de discernir com segurança quais as criações do computador, quais as originais.

Com efeito, Cope foi desafiado por um compositor a um teste cego: três peças – de autoria de Bach, do computador e do próprio compositor – deveriam ser executadas por um pianista diante de uma plateia que desconhecesse suas respectivas autorias, para que ao final tentasse lhes adivinhar a origem. A plateia, formada por professores, músicos e simpatizantes da música erudita, majoritariamente atribuiu a Bach a música do computador, e ao computador, a música do compositor desafiante.  

A invenção é perturbadora, não apenas por seu impacto em nossas ideias sobre a arte, mas, de maneira mais abrangente e fundamental, em nossas ideias sobre a humanidade – e o destino desta. Para parte da ciência contemporânea, os organismos humanos são apenas algoritmos, mas com uma capacidade infinitamente menor de processamento de dados que os algoritmos inorgânicos atuais. Permanece, é verdade, o problema da consciência como um ponto opaco que a inteligência artificial não consegue superar. Mas é verdade também que a consciência talvez comece a parecer menos relevante do que supúnhamos.

Algumas profissões que não são meramente automáticas, que a princípio jamais confiaríamos a máquinas, já estão sendo exercidas por elas, e talvez venham a ser exercidas apenas por elas no futuro. Por exemplo, a medicina diagnóstica: computadores já são capazes de apresentar diagnósticos com muito maior eficácia do que médicos humanos. E ainda, pasmem, a advocacia: podendo ler toda a história da jurisprudência relativa a certa questão em segundos, os computadores já tomam decisões mais corretas que os humanos.

Em face dessa discussão, tendemos a pensar que a arte é o reduto último de afirmação da irredutibilidade de nossa espécie; portanto, uma justificação inexpugnável de sua singularidade, senão de sua superioridade. É nesse contexto mais amplo e dramático que se inscreve a criação de David Cope. O que devemos pensar a partir dela? A arte pode ser feita por programas de computador? Ou ela requer alguma dimensão específica e irredutivelmente humana?

Muita água já tinha passado debaixo da ponte até que Barthes viesse a publicar seu célebre texto sobre a morte do autor, seguido pela igualmente conhecida conferência de Foucault sobre o tema. O ponto de ruptura do debate se dá na segunda metade do século 19, quando se abala a autoimagem da criação artística, então baseada numa relação direta, causal ou transparente entre fatores externos à obra e a obra mesma. Nesse momento, o artista era um “inspirado”, favorecido pelas musas; seus versos ou melodias eram a expressão de sua alma; a chave de compreensão de sua obra era o conhecimento de sua biografia.

Seguidos ataques foram desferidos a essas ideias. A filosofia da composição, de Edgar Allan Poe, revelou o quanto de pensamento crítico e consciente está em jogo durante o processo de criação (menos misterioso e inspirado do que se queria, portanto); nos poemas destituídos de eu lírico de Mallarmé, a própria linguagem parece ser o sujeito que escreve; nas Iluminações de Rimbaud já não se descreve nenhuma realidade factual ou externa, mas puras paisagens mentais; os artigos de Proust contra Sainte-Beuve, o crítico biográfico, observam que o eu civil do artista não se confunde com o eu da obra; os formalistas russos, já no início do século 20, inauguraram uma concepção radicalmente material da linguagem; há ainda a boutade precisa de Gide (“Com bons sentimentos se faz má literatura”); daí ao estruturalismo e, logo, à anunciada morte do autor por Barthes.

O sentido geral dessa movimentação histórica é a ideia de que arte não se faz com sentimentos, experiências biográficas ou favor dos deuses – arte se faz com linguagem, com conhecimento do material, isto é, da tradição de seu uso nas obras anteriores. Assim, quando Barthes proclama a morte do autor, é da imagem do autor como eu biográfico que se trata. “Não importa quem fala”, fala o personagem de Beckett citado por Foucault – importa o que fala, como fala. O artista é alguém que conhece seu material, estuda as obras passadas, reinterpreta-as, mistura-as, combina diversos códigos, e assim tenta produzir uma diferença, valor supremo da arte moderna. A originalidade, portanto, não é uma criação ex-nihilo, mas sim efeito de uma mistura imprevista, insuspeitada dos elementos da tradição (estou a par das ideias recentes sobre a “inoriginalidade”, mas não posso tratar disso aqui).

Se admitirmos isso, que a originalidade é o valor supremo da arte moderna, e que ela é produzida por meio de combinações insuspeitadas da tradição, podemos retomar o problema da autoria dos computadores. Pode um computador produzir uma obra de arte original? Essa é a pergunta. As experiências de David Cope com o programa EMI não resistem a ela. O que o programa fez foi, a partir de uma base de dados com as obras completas dos compositores antigos, analisar suas características, identificar seus estilos (o estilo, como afirma corretamente Cope, é o que se repete entre as obras) e compor novas músicas à maneira deles. Músicas diferentes – mas apenas em um sentido fraco da palavra diferença. Essas criações pertencem antes ao que Kant chamava de imitação. Ora, já para o autor da terceira crítica, a imitação é o que se opõe à genialidade, que é por sua vez “o talento para produzir aquilo para o que nenhuma regra prévia pode ser dada”. Para Kant, uma obra de arte deve criar as regras segundo as quais será apreciada. Apreciada, mas não produzida, pois uma obra de arte só o é se for produzida pela genialidade, que é a capacidade de se dar uma nova regra a partir das regras fornecidas pela tradição.

O próprio David Cope, entretanto, identificou essa limitação. Seu projeto seguinte procurou dar um passo adiante. “Emily Howell”, seu novo programa, já não compõe a partir de bases de dados delimitadas. Processando informações de músicas diversas, e aberto a processar inclusive críticas sobre suas criações, Emily Howell parece estar na mesma situação de qualquer artista: assimila a tradição, interpreta-a (a partir dos feedbacks que recebe), monta seus próprios arranjos. Seu estilo, declara Cope, é “um amálgama de vários estilos”. Em que isso difere das condições de qualquer artista humano?

Bem, aqui devemos introduzir uma questão de difícil trato. Por mais que a compreensão moderna da arte tenha rumado no sentido de uma maior capacidade de explicitação da natureza das obras de arte, isto é, daquilo que as torna obras de arte (procedimentos formais), permanece um ponto opaco, negativo, inexplicitável. Se, como diz Kant, a genialidade, ou seja, a capacidade de produzir originalidade, é um talento, devemos perguntar: o que exatamente, positivamente, é o talento? Se, como propõe Barthes, o artista é um bricoleur de códigos, o que faz com que apenas alguns, e não outros tantos, realizem mashups originais da tradição? Será essa capacidade relacionada a algo irredutivelmente humano? Pode um computador produzir o salto, o insight, o lance de dados genial que quebra um paradigma, instaura uma nova forma, apresenta ao mundo uma diferença, um acontecimento?

Em um ensaio em que comenta o texto de Foucault sobre a questão do autor, Agamben observa que o filósofo francês ressalva: “o autor não está morto; mas pôr-se como autor significa ocupar o lugar de um morto”. Tornar-se autor implica necessariamente desaparecer, na obra, como eu biográfico; mas esse desaparecimento implica, por sua vez, a permanência do autor, na obra, como aquilo que é a sua condição de origem. Tal como o talento, o autor está na obra indiretamente, como o que a torna possível. Não poderia haver obra de arte, desse modo, sem uma subjetividade (sem o autor, desaparecido na obra, como sua origem). Mas aqui volta a questão: o que é a subjetividade?

Não seria, ela também, apenas o efeito de uma série de cruzamentos, de arranjos, no caso, de identificações e experiências, que vão formando uma autoimagem, bem como uma narrativa pessoal? Será que o eu lacaniano – destituído de essência, efeito de uma complexa montagem – difere fundamentalmente das condições de um programa de computador? Será que o que compreendemos como subjetividade – com seus corolários de emoção e afeto – em obras de arte não é apenas o efeito de determinadas combinações de notas, acordes, palavras, timbres de voz? E que assim, consequentemente, não é preciso uma subjetividade que as torne possível, mas meramente combinações que produzam seu efeito?  Ou será que há alguma dimensão – a consciência, a sociabilidade – irredutivelmente humana que produz, e só ela produz, obras de arte originais, e também as reconhece como tais?

Na prática, até agora Emily Howell não apresentou aos humanos nenhuma obra de arte “disruptiva”, “genial”, “original”. Na teoria, entretanto, a questão me parece permanecer aberta: será possível que isso um dia aconteça?

franciscobosco@terra.com.br

(1) Comentário

  1. O programa teria que produzir algo (arte) – melodia, imagem, sintaxe frasal – resultante da intervenção, na base de dados da tradição nele armazenados, de modo que já aí a diferença alterasse traços de semelhança, Vou pensar melhor.

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