Salvos da guerra e do mar
Foto: Ligia Jardim
Welington Andrade
“… ele não pode voltar a sua terra pátria por falta de barcos providos de remos e tripulação que o levem pelo vasto dorso do mar”.
Homero, Odisseia.
O famoso “catálogo das naus” presente no segundo canto da Ilíada – que na belíssima tradução da epopeia grega para a língua portuguesa a cargo do poeta lisboeta Frederico Lourenço corresponde aos versos 494-785 – constitui a primeira cena da literatura ocidental (sabe-se que o poema épico foi escrito por volta de 700 a.C.) que trata da ligação entre homens e embarcações. “Enumerarei os comandantes das naus e a ordenação das naus”, afirma o narrador homérico antes de introduzir uma longa descrição dos chefes que tomaram de assalto a cidade de Troia fazendo uso de suas embarcações “recurvas, preparadas para o alto-mar”. Entretanto, se na Ilíada os elementos náuticos exercem um discreto papel de coadjuvantes ao longo da venturosa, mas trágica caracterização da existência humana apresentada por Homero, na Odisseia, por sua vez, barcos e jangadas dividem com Odisseu o protagonismo da trama, levando o herói a compreender, ainda que tardiamente, que a instabilidade do mundo marítimo está associada de modo indelével às atribulações da vida.
Assim é que o mar e a literatura no Ocidente se relacionam desde sempre. No caso da literatura dramática, as mesmas fontes fabulares do ciclo troiano registrado por Homero migraram, a partir do século IV a.C., para a esfera do teatro, possibilitando aos trágicos gregos explorarem uma série de símbolos marítimos convertidos em signos dramáticos e cênicos. Se no Agamêmnon, de Ésquilo, por exemplo, há uma grande expectativa pela entrada em cena do rei que viajou muitos anos pelo mar até finalmente retornar à pátria (“Partiram há dez anos desta terra/… em mil navios belicosos e tripulados todos por argivos”, diz o Coro), tanto n’As troianas como na Hécuba, de Eurípides, a expectativa se reverte, concentrando-se os acontecimentos de ambas as peças na partida iminente das naus gregas, que levarão para o território aqueu as mulheres troianas transformadas em presas de guerra (“Encaminhemo-nos primeiro às tendas, amigas minhas, e depois ao porto; vivamos nossa vida de cativas, submissas ao destino inexorável”, anuncia o Corifeu na cena de encerramento de Hécuba).
Dentre o vasto repertório artístico e cultural oferecido pela cidade de São Paulo nesse final de ano, uma potente parceria entre o ambiente marítimo e o mundo do teatro se dá em Cais ou Da indiferença das embarcações, montagem que a Velha Companhia está apresentando no Sesc Ipiranga até o próximo dia 19 de dezembro. Escrita por Kiko Marques, a peça – que vem cumprindo, desde que estreou em outubro de 2012, uma bem-sucedida (e premiada) carreira – trata da história de um grupo de habitantes de Ilha Grande, a comunidade litorânea pertencente a Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, outrora pacata e provinciana, que hoje vive um tanto quanto descaracterizada pela exploração turística.
O cais da ilha serve de palco para a narrativa que costura encontros e desencontros em torno dos representantes de três gerações sucessivas de uma mesma família: Waldeci, seu filho Walcimar e seu neto Walciano. Um velho barco – batizado prosaicamente de Sargento Evilázio – e uma poita (objeto pesado que se usa como âncora nas pequenas embarcações) abandonada testemunham cada um dos eventos singulares que envolvem os protagonistas e conduzem a narração. A história ocorre nas viradas de ano, momento cíclico em que se suspendem as tarefas cotidianas para se fazer o balanço das ações passadas e se gestar as possibilidades de futuro.
Muito rapidamente o texto se converte em um espetáculo de inúmeras qualidades, sob a direção do próprio dramaturgo, Kiko Marques. A rusticidade que se insinua em tudo e acaba migrando, por meio de uma articulação bastante sutil, do terreno da forma para o do conteúdo, é a chave-mestra para que, além da natural empatia por uma história contada de modo tão envolvente, o espectador possa também refletir sobre os acontecimentos descortinados a sua frente, procurando, então, não encará-los assim como tão naturais.
O espaço cênico circular e comunal em torno do qual o público é acomodado reflete as formas de organização e os meios de vida daquela comunidade litorânea, marcada por fortes laços de solidariedade e pela mútua dependência que se estabelece entre seus habitantes. O centro nervoso da cena é o próprio cais, talhado em bela e rude peça de madeira retangular sobre a qual os atores assumem o protagonismo de suas ações. Igualmente rudes são as vestimentas dos intérpretes, preocupadas em delinear tipos humanos que vão oscilando paulatinamente do registro rural para o urbano, à medida que o tempo avança. (Vale destacar aqui o belo trabalho realizado por Chris Aizner na criação de cenário e figurinos). Tal materialidade plástica do espetáculo – que se apropria tão bem do aconchegante galpão situado nos fundos do jardim do Sesc Ipiranga – é ressaltada pela bela trilha sonora executada ao vivo pelos músicos Tadeu Mallaman e Cintia Gasparetti, cuja musicalidade pontua com muita expressividade os momentos líricos, dramáticos e trágicos que se alternam.
Instalada essa envolvente atmosfera – que convida o tempo todo o espectador para o rito, a festa, a comunhão –, uma série de personagens começa a desfilar diante do público, articulando tênues fios narrativos que tratam basicamente de amores e de labores. Espreitamos, então, muitos afetos recíprocos, mas também alguns não correspondidos, que mais adiante irão virar desafetos, transformados, por sua vez, em rispidez ou violência. E testemunhamos também projetos de trabalho – exequíveis, difíceis ou utópicos – que constituem, no fim das contas, perspectivas de transformação política e econômica da nação. Viajamos em companhia dos personagens rumo a um tempo perdido na memória, pautado pela regularidade do trabalho e pela passagem dos dias. Mas também chegamos com eles aos tempos atuais, em que a outrora função estabilizadora das formas de vida tradicionais vem se extinguindo aceleradamente, para dar lugar à sensação de não pertencimento, de desenraizamento ou de “desterritorialização”, típica da experiência urbana que nos rodeia.
As singulares criações dramatúrgicas plasmadas no texto são apresentadas por um elenco bastante afiado, disposto a investigar uma corporeidade física e vocal para a qual o rigor e a delicadeza na composição dos personagens parecem constituir a meta do estilo de interpretação. Os atores não se lançam à sedução rasa das alegadas formas folclóricas ou pitorescas. Antes, procuram investir em gestos, inflexões e emoções genuínas, que lhes permitam delinear os tipos, sem descuidar da complexidade e da riqueza interior dos indivíduos que tão honradamente defendem. Alejandra Sampaio, Kiko Marques, Marcelo Diaz, Marcelo Laham, Marcelo Marotti, Marco Aurélio Campos, Maurício de Barros, Patrícia Gordo, Rose de Oliveira, Tatiana de Marca e Virgínia Buckowski se saem muito bem da empreitada. E contracenam com um convidado bastante especial, o ator Walter Portella, que simbolicamente dá vida ao barco Sargento Evilázio. Veteranos atores e velhas embarcações, o espetáculo parece querer dizer, expõem-se naturalmente às inclemências do tempo, mas resistem a elas por serem, no fundo – do mar ou da cena –, indestrutíveis. Além de Portela, a Velha Companhia convidou Luiz André Querubini, do Grupo Sobrevento, para coordenar o trabalho de manipulação e confecção dos bonecos usados em cena, que ampliam, pelo viés da fantasia e da inventividade, a percepção imaginativa do projeto de encenação.
Enredados assim por sutilezas e delicadezas incontestáveis, os espectadores se deixam arrebatar por uma trama tão habilmente entrelaçada. (Trata-se, a rigor, de uma experiência cênica genuína, calcada no poder que ainda exerce sobre as plateias o velho teatro narrativo, nos moldes do significado que Walter Benjamin imprime aos conceitos de narrativa e de experiência). E talvez esses mesmos espectadores idealizem a atmosfera de rusticidade que exala aqui e ali a todo momento. Entretanto, é preciso estar atento para o clima de violência – atávica, longeva, imemorial – que subjaz a todo esse mundo idílico, sentimental, paradisíaco… E que contamina ambos os universos retratados, seja o dos amores, seja o dos labores. Se rústicas podem ser chamadas as plantas que crescem à vontade, sem requerer nenhum cuidado especial, rústicos também são os homens simples, toscos, abandonados ao atavismo da vida primitiva, que dissimula o tanto quanto pode, mas não elimina por completo, as marcas do impacto da colonização.
Cais ou Da indiferença das embarcações fala não somente de amantes embrutecidos, mas também de trabalhadores brutalizados. Em ambos os casos, a rusticidade soa discreta, mas não abandona a cena, sob a forma de indelicadeza, grosseria e incivilidade sutilmente narradas. Pois rústico também é o mar – simples em seu movimento de vai e vem, rude em sua arrogante autonomia, violento em seu implacável poder de destruição.