Recordações dos corpos dos mortos

Recordações dos corpos dos mortos
(Foto: Bob Sousa)

 

“Eros, penetrando na consciência, é movido pela recordação; assim, protesta contra a ordem de renúncia; usa a memória em seu esforço para derrotar o tempo num mundo dominado pelo tempo.”
Herbert Marcuse,
Eros e civilização

A mais recente criação de Zé Henrique de Paula para o Núcleo Experimental – o musical Codinome Daniel, cuja dramaturgia também é assinada pelo diretor – recupera as últimas seis décadas da história política e cultural do país, imprimindo à iniciativa a marca do contemporâneo, isto é, promovendo uma intrincada reflexão sobre o aqui-agora do Brasil, prestes a rememorar os sessenta anos do golpe de 1964, responsável pela instauração de uma ditadura civil-militar que durou vinte e um anos e, hoje, está morta, sim, mas não de todo sepultada – como os acontecimentos do 8 de janeiro de 2023 e as revelações deste 8 de fevereiro, quando o presente texto está sendo finalizado, deixam transparecer.

O espetáculo trata de um personagem em cuja trajetória individual ressoaram intensamente os principais acontecimentos da vida social no Brasil e no mundo, no período que compreende o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da década de 1990. Herbert Eustáquio de Carvalho (1946-1992) – que a partir de 1969 passa a adotar o codinome Daniel – não fugiu ao encontro para o qual a segunda metade do breve século 20 o convocou. Primogênito de uma tradicional família mineira (mãe, dona de casa; pai, policial militar); calouro de Medicina em uma universidade pública no efervescente ano de 1965; entusiasta da política estudantil em 1967; defensor da luta armada contra o regime militar no ano seguinte; militante ativo da esquerda revolucionária; espectador passivo da revolução sexual dos anos 1960 (pela enorme dificuldade que encontrou para, no mesmo período das ações mais ousadas, assumir a então ousadia de sua homossexualidade); clandestino no país; exilado na Europa; autorizado a retornar, mas não anistiado; defensor de pautas políticas e comportamentais totalmente avessas aos yuppies anos 1980; vítima da maior epidemia do século 20; cavaleiro do otimismo típico da geração que sonhou com um país melhor e foi à luta por isso.

(Foto: Bob Sousa)

Por concentrar toda sua energia nesse vasto e denso material, Codinome Daniel evoca indiretamente o período de grande politização do teatro brasileiro, vivido entre 1958 e 1978, quando palavras como resistência e militância saíram da esfera dos discursos engajados à esquerda e tomaram a cena teatral de assalto. Mais diretamente, o espetáculo aborda a expressiva transformação ocorrida no campo das ideias, ao longo da década de 1970, que, segundo Heloísa Buarque de Holanda, levou a Filosofia a interrogar as formas totalizantes de pensamento; a História a descobrir o cotidiano como fonte inovadora de trabalho; a Literatura a se enredar com a pergunta feita por Foucault – O que é um autor? –; e o ativismo de 1968 a insistir no slogan “O pessoal é político” (proferido duas ou três vezes na peça).

O espetáculo contrasta de modo muito sensível e inteligente as duas visões de mundo encampadas por Herbert Daniel: a da ortodoxia do marxismo-leninismo, que ele defendeu apaixonadamente durante os anos em que esteve envolvido na luta armada, e a da fluidez de assuntos como sexualidade, poder, subjetividade e autocrítica, sobre os quais fez incidir um novo olhar – que o tornou um pioneiro entre nós no trato de questões como diversidade, gênero, alteridade e inclusão.

Apresentadas essas questões, o que se sobressai na proposta do Núcleo Experimental é a originalidade da empreitada. Não é por ser um musical que gira em torno de uma figura emblemática e suas contradições que o trabalho se assemelha a Calabar, o elogio da traição (1973), de Chico Buarque e Ruy Guerra; como também não é por ser um experimento dramático que esfumaça os contornos políticos e deixa a matéria da intimidade prevalecer que a peça remete a Cordélia Brasil (1968), de Antonio Bivar. Ainda que um espectador mais velho deseje encontrar a filiação histórica desse gênero de teatro praticado por Zé Henrique de Paula e o Núcleo Experimental, o trabalho deles está mesmo voltado às urgências do tempo presente, às futuristas duas primeiras décadas sem futuro do século 21 – vide a grande quantidade de jovens que frequentam as temporadas do grupo. Os experimentos realizados, seja no nível da dramaturgia, atuação e direção, seja no nível da criação e direção musicais, privam de um estilo todo próprio – responsável por formar novos públicos e embaralhar as convicções de espectadores afeitos a teatralidades mais convencionais.

(Foto: Bob Sousa)

Tomando por base a admirável biografia Revolucionário e gay: A vida extraordinária de Herbert Daniel (Civilização Brasileira, 2018), do historiador norte-americano James N. Green, Zé Henrique de Paula concebeu um espécime dramatúrgico que, além de franquear ao espectador os fatos objetivos mais relevantes da vida do personagem, convida a plateia a adentrar o terreno da subjetividade do protagonista. Dentre alguns pontos altos da dramaturgia, estão a sobreposição de tempos (o passado projetando-se como contemporâneo ao presente, o futuro retrocedendo para evidenciar a obsolescência das velhas mentalidades); a livre circulação de personagens separados pelo tempo e pelo espaço, mas instados a conviver pelas malhas do desejo; e a irrupção da metalinguagem por meio da qual a arte do teatro que seduziu o tímido adolescente mineiro amparado pelo mundo das letras salva da solidão o arrojado ativista envolvido com o mundo das armas – e, quem sabe, convide o espectador a renunciar à política como espetáculo e a usufruir o mundo da cena como o lugar da politicidade sensível. A criação do narrador da peça – o autor do livro, James N. Green, que surge no palco como uma espécie de mestre de cerimônias – é outro recurso inventivo e bastante eficiente, para o qual Fabiano Augusto encontra-se plenamente preparado, transitando com muito domínio entre as esferas da enunciação épica e do jogo metateatral.

A propósito, o elenco de Codinome Daniel investe em um estilo de atuação conduzido, ora pela vazão da emoção à flor da pele, ora pelo emprego da técnica a serviço do delineamento de tipos humanos flagrados em pequenos detalhes. Davi Tápias confere a Daniel uma comovente dimensão humana – seja patética, seja ética, sempre empática. Como Wanda, Luciana Ramanzini toca o dedo na ferida do terrorismo de Estado; como dona Geny, brinca com muita verve com a espontaneidade das mães provincianas de outrora. O mesmo se aplica a Lola Fanucchi e Cleomácio Inácio (intensos como Iara Iavelberg e Carlos Lamarca, respectivamente; burlescos como os jovens Laís e Hamilton, por exemplo). Renato Caetano (o pai), André Loddi (Cláudio) e Paulo Viel (Zequinha) contribuem com igual energia criativa para fazer o espectador se sentir continuamente atraído por seus personagens. Aliás, interesse talvez seja a palavra-chave que orienta o trabalho dos oito intérpretes, empenhados em fazer o espectador-cidadão dedicar renovada atenção a esse já difuso período da História do Brasil.

(Foto: Bob Sousa)

Enquanto a direção de Zé Henrique de Paula orquestra tudo muito bem, investindo em certas nuances de ritmo e de atmosfera emocional muito expressivas e garantindo a notável unidade estilística do espetáculo, o trabalho de concepção e direção musical de Fernanda Maia chama a atenção pelo fio da navalha sobre o qual desliza. A musicalidade predominante em cena é da ordem do afetivo, que se transforma em passional, que se converte em patético e não se furta a bordejar a esfera do kitsch. As canções apresentadas evocam um tempo passado de antes da tutela do bom gosto, penetrando diretamente nos ouvidos do espectador sem pedir licença ao cão de guarda da razão. Com Eros presidindo a cena, todas as cartas de amor são ridículas, e os manifestos políticos também. Há muito de intemporalidade na criação da música, que não parece ajustada às sonoridades do aqui-agora, tampouco reverente às sonoridades do lá-então.

Tal intemporalidade, a rigor, está bastante adequada à proposta da encenação. Codinome Daniel homenageia um morto mais vivo do que nunca, embora os tempos que correm o queiram lançado ao fosso do esquecimento. Tempos de simultaneidade e aceleração. Tempos que fazem o homem se esquecer de seu melhor passado e de seu melhor porvir. “Esquecer”, alerta Marcuse em Eros e civilização, “é também perdoar o que não seria perdoado, se a justiça e a liberdade prevalecessem. Esse perdão reproduz as condições que reproduzem injustiça e escravidão: esquecer o sofrimento passado é perdoar as forças que o causaram sem derrotar essas forças”. E as forças retrógradas que causaram o 31 de março de 1964 não foram ainda derrotadas.

Um espetáculo com o impulso e a delicadeza de Codinome Daniel atua contra a rendição ao tempo, evocando o tempo histórico como veículo de libertação. A reconquista das décadas de 1960, 1970 e 1980 promovida em cena recupera o tempo perdido, revolvendo o solo das experiências de gratificação e de prazer. Eros não abandona o palco, como jamais abandonou a vida adulta de Herbert Daniel. Uma vez que o tempo hiper administrado no capitalismo pós-industrial de hoje exerce seu poder sobre Eros, o desejo de felicidade passa a ser uma coisa do passado. E é contra isso que o livro de James N. Green e a mais recente criação do Núcleo Experimental se insurgem. Recordar os corpos dos mortos é um processo de duração contínua, que converte o saudosismo em ação histórica. Somente assim, a luta contra o esquecimento passa a ser também a luta contra todo e qualquer tipo de dominação.

CODINOME DANIEL
Até 4 de março
Segunda, sexta e sábado, às 21h; domingo, às 19h
Teatro do Núcleo Experimental
Rua Barra Funda, 637 – Barra Funda
Duração: 2h45min. com intervalo
Classificação: 12 anos
Ingressos: R$ 40 e R$ 20

Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Uni-Rio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero.

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