“Somos daqueles que se recusam a esquecer”

“Somos daqueles que se recusam a esquecer”
(Foto: Bob Sousa)

 

“Se wo were fi na wo sankofa a yenkyi”
“Nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou para trás”.
Adinkra, sabedoria em símbolos africanos.

O título do presente texto, retirado do “Discurso sobre a negritude”, de Aimé Césaire, convida a um exercício de alteridade inescapável. Examinar formas não canônicas de teatralidade, advindas de processos renovados de escritura dramatúrgica e modos não europeus de leitura da história do mundo, e do mundo das estórias, é uma necessidade imperiosa na formação continuada da crítica e na ampliação, inclusive em chave autocrítica, de sua atuação. Depois de A solidão do feio – monólogo de Sidney Santiago Kuanza sobre o escritor Lima Barreto que integra a trilogia “Masculinidade e Negritude” da Cia. Os Crespos, por meio da qual o grupo quer debater o legado artístico e político de notórios homens negros brasileiros (Madame Satã e Benjamim de Oliveira estão no centro das outras duas iniciativas) –, outro espetáculo concebido por um coletivo de artistas negros mergulha fundo nas possibilidades de expressão e comunicação do teatro contemporâneo e faz a diferença neste início de ano na cidade de São Paulo. Trata-se de Bom dia, eternidade, da companhia O Bonde, em cartaz no Teatro Anchieta (Sesc Consolação) até o próximo dia 25 de fevereiro. Aqui também ocorre o encerramento de uma tríade de experiências cênicas concebidas a partir de uma pesquisa comum. A “Trilogia da Morte” denuncia o processo de aniquilamento físico e subjetivo a que são submetidos os corpos negros, seja na infância, tema do primeiro espetáculo, Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus (com dramaturgia de Maria Shu, direção de Ícaro Rodrigues e direção musical de Cristiano Gouveia); seja na fase adulta, assunto da segunda criação do grupo, Desfazenda – Me enterrem fora desse lugar (com dramaturgia de Lucas Moura, direção de Roberta Estrela D’Alva e direção musical de Dani Nega); seja, agora, nesta terceira e última parte da trilogia, na velhice, matéria tratada por Bom dia, eternidade, que tem dramaturgia de Jhonny Salaberg, direção de Luiz Fernandes Marques Lubi e direção musical de Fernando Alabê.

 (Foto: Bob Sousa)
(Foto: Bob Sousa)

O jovem quarteto de O Bonde – Ailton Barros, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Marina Esteves – convidou para dividirem a cena com eles quatro músicos veteranos, de trajetórias pessoais e profissionais muito diversas: o cantor, compositor, contrabaixista e arranjador Luiz Alfredo Xavier (85 anos); o baterista e cantor Cacau Batera (80 anos); a cantora Maria Inês (73 anos); e o maestro, pianista e regente Roberto Mendes Barbosa (59 anos). Da presença desses oito artistas reunidos no palco do Teatro Anchieta irradiam uma teatralidade e uma musicalidade que articulam de modo muito genuíno cronologias afixadas na História e memórias inscritas nos corpos. A grande qualidade de tal articulação é contrariar a roteirização previsível da vida e buscar o assombro insuspeito da experiência.

A dramaturgia a cargo de Johnny Salaberg vai revelando aos poucos a complexidade sobre a qual está assentada. O tema desse último espetáculo da “Trilogia da Morte” é o envelhecimento dos corpos negros – o que pede, naturalmente, do material dramatúrgico uma incursão pelos territórios do passado. Tal perspectiva dá origem, então, a uma série de anfibologias e de jogos de espelhamento dispostos sob a forma de um quebra-cabeças lúdico, expressivo, muito atraente de remontar. Bom dia, eternidade fala do processo histórico de sujeição dos corpos negros – segundo Grada Kilomba, “desumanizados, primitivizados, brutalizados, mortos” –, mas o faz pela via da fragmentação narrativa. Da impiedade dos tempos da mentalidade colonial, o espectador somente dispõe de vestígios incertos, embora potentemente vivos. Uma fotografia em que a negritude está quase apagada, um troféu de concurso de dança, uma escultura kitsch de um papagaio, um obsoleto aparelho de rádio, um igualmente ultrapassado caderno escolar, algumas moedas que servem de troco, um modesto pente de cabelo, uma relíquia de família sob a forma de um pano de prato – objetos provenientes de perscrutações da memória, real ou ficcional; pequenos monumentos parcialmente reconstruídos; textos tridimensionais cheios de lacunas que conservam uma perspectiva cronológica de mais de seis décadas, orbitando em torno de um contexto histórico determinado – o golpe militar de 1964 –, já quase tragicamente inacessível ao entendimento do espectador contemporâneo, não fosse o modo farsesco como foi redivivo nos últimos cinco anos. Por meio de tais fragmentos é que se haverá de reconstruir o todo. Não como um discurso único, padronizador. E, sim, como uma experiência subjetiva, que calará fundo na interioridade de cada um. Como um velho samba de nosso cancioneiro. Narrativamente, a dramaturgia investe na segmentação do vitral, renunciando à totalidade da pintura mural, que somente teria produzido a ilusão de um discurso totalizante em torno do corpo negro. A técnica da composição em vitral tem a vantagem de extrair dos fragmentos a sua discreta monumentalidade: cada narrativa-resquício equivale a um corpo-documento. Há um quê de dicotomia barroca na empreitada, que quer nos fazer ver que “o todo sem a parte não é todo/a parte sem o todo não é parte”.

(Foto: Bob Sousa)
(Foto: Bob Sousa)

Outra grande qualidade de Bom dia, eternidade é a conversão de rememorações dolorosas em festa, em rito, na celebração da afirmação de existências fraternas que, juntas, resistem aos traumas. O teatro, fratria que é desde sempre, converteu o túmulo em altar. A música, fratria que é desde sempre, converteu o sacrifício do animal de cujo osso se fez o instrumento em som. Aqui, então, não poderia ser diferente. A grande fratria representada pelos oito corpos negros em cena, que nos convidam a nos irmanarmos com eles durante todo o tempo, reconfigura o acesso ao passado e, portanto, à escrita da História, confrontando o sofrimento por meio do corpo a corpo com a vida. O enfrentamento da dor é uma condição necessária para que os artistas abordem o inenarrável, convertendo-o em fabulação. “Narrado, do ponto de vista das vítimas ou de outros sujeitos que saibam (…) compreender a dor do outro como sua própria dor, o horror deixa de pertencer ao domínio da não linguagem e do esquecimento para integrar-se à vida social sob a forma de uma linguagem a ser escavada a fim de tornar-se recurso ético e estético capaz de enfrentá-lo na expectativa de impedir sua repetição”, afirma Edimilson de Almeida Pereira em Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma estética de base afrodiaspórica na literatura brasileira. O teatro negro no Brasil tem mostrado uma vitalidade desconcertante. Essencial para desnudar os mecanismos das estruturas necropolíticas. E com o mesmo tom de desconcerto tem alertado o país de que não se pode deixar o passado e o futuro em paz. “Pois paz sem voz, não é paz…”.

Misto de show musical salpicado de depoimentos (filiado, diretamente, à tradição do Show Opinião, ao qual presta discreto tributo, e, indiretamente, ao show Rosa de Ouro, pelo fato de fazer do samba o cadinho onde se fundem o velho e o novo, o palco e o terreiro, o oral e o escrito) e peça de teatro na qual a música constitui uma dramaturgia própria, Bom dia, eternidade conta com a direção de Luiz Fernando Marques Lubi (que ainda assina cenografia e figurinos), responsável tanto pelo dinamismo das cenas coletivas como pela espontaneidade das performances individuais. Ainda que os modos de expressão do trabalho nasçam do inequívoco talento dos quatro integrantes da companhia O Bonde, a forma admirável pela qual o espetáculo se comunica tão francamente com a plateia, envolvendo-a em uma atmosfera de alegria e participação do começo ao fim, deve-se notadamente à energia criativa do diretor.

Bom dia, eternidade tem a nobre missão de expressar os incontidos corpos da teatralidade e da musicalidade negras no Brasil. Disposto a contar novas estórias sem se esquecer das coisas que passaram, o espetáculo mira, com olhos promissores, os futuros que virão. E que cabe a todos construir. Os corpos invisíveis viram corpos presentes. Revolvê-los do solo do esquecimento e fazê-los reviver são as tarefas do trabalho. Como também o é a contínua renovação de tais corpos pela espiral das temporalidades afrodiaspóricas, para as quais, beckettianamente, o fim está no começo (vide o início da empreitada) e, no entanto, continua-se. No âmbito da eternidade, cada dia haverá sempre de ser um bom dia.

 

BOM DIA, ETERNIDADE

Até 25 de fevereiro
Sexta e sábado, 20h; domingo, 18h

Sesc Consolação – Teatro Anchieta

Rua Dr. Vila Nova, 245 – São Paulo
Duração: 120 minutos
Classificação: 16 anos
Ingressos: R$ 50, R$ 25 e R$ 15

 

Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Uni-Rio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero.


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