Ferrugem e corrosão

Ferrugem e corrosão
(Foto: Bob Sousa)

 

“Quando me julgo – nada valho; quando me comparo, sou grande. Enorme consolo.”
(Lima Barreto, Diário íntimo).

 

As ideias de Lima Barreto e suas fabulações literárias sempre estiveram ao lado daqueles que foram esquecidos pela sociedade, os “humilhados e ofendidos”, no dizer de um escritor que lhe foi bastante caro em termos de correspondência de projetos, o russo Fiódor Dostoiévski. Os inúmeros dissabores que a vida reservou ao autor das Recordações do escrivão Isaías Caminha estão na base da memorialística e das sondagens da própria intimidade que ele concebeu, ao passo que o gosto pela literatura russa ajudou-o a penetrar tão densamente nas malhas da literatura social, já que o homem de letras nascido em 1881 e morto em 1922 “não queria mais a exaltação do amor, que nunca esteve a perecer; mas a comunhão dos homens de todas as raças e classes, fazendo que todos se compreendam, na infinita dor de serem homens”, conforme defendeu no artigo “Amplius!”, publicado no jornal A Época de 10 de setembro de 1916, no qual declarava ainda não ensejar mais uma “literatura contemplativa”, extemporânea ao início do novo século, e, sim, “uma literatura militante para maior glória da nossa espécie na terra e mesmo no Céu”.

(Foto: Bob Sousa)

Boa parte dessas ideias dá sustentação ao espetáculo A solidão do feio, em cartaz no auditório do Sesc Pinheiros, monólogo de Sidney Santiago Kuanza que integra a trilogia “Masculinidade e Negritude” da Cia. Os Crespos, por meio da qual o grupo quer debater o legado artístico e político de notórios homens negros brasileiros (Madame Satã e Benjamim de Oliveira estão no centro das outras duas iniciativas).

O criador do Quixote tropical Policarpo Quaresma já havia sido retratado em cena no contundente exercício de teatro narrativo “Lima Barreto ao terceiro dia”, de Luís Alberto de Abreu, texto concebido entre os anos de 1984 e 1986, mas somente estreado em 1995, em montagem dirigida no Rio de Janeiro por Aderbal Freire Filho. Cumpre notar que o texto de Abreu constitui uma espécie de mina d’água para a atual experiência de Os Crespos, não somente porque olhou para Lima Barreto como (nas palavras do próprio dramaturgo) um “espelho nosso de cada dia”, entrecruzando o movimento das relações sociais com a perspectiva crítica sobre o sujeito brasileiro, como também pelo fato de, transformado no filme homônimo de 2018, ter contado com Sidney Santiago Kuanza no elenco, dividindo com Luís Miranda o papel do protagonista.

(Foto: Bob Sousa)

Pois bem, A solidão do feio é um espetáculo de muitas qualidades, dentre as quais destaca-se o caráter de urgência com que concebe o nosso encontro com o escritor. No momento em que muitos experimentos do teatro negro brasileiro mostram o quão enferrujadas estão certas expressões linguísticas, certas visões de mundo e certas linguagens artísticas, incluindo-se aí, naturalmente, os estereótipos do quase nunca questionado teatro branco, trazer à cena o conteúdo corrosivo de Lima Barreto soa como um projeto político dos mais consequentes. Ferrugem e corrosão podem botar abaixo as mais férreas estruturas – somos levados a acreditar ao longo do espetáculo. A ficção concebida por Lima Barreto há cem anos aspira a, tragicamente, ainda ser a crônica de nossos tempos; a crônica e a memorialística do autor de outrora não passaram para o lado da ficção, insistindo em calar fundo na dor de nossa consciência social.

Transitando entre os registros dramático e metalinguístico, A solidão do feio presta uma homenagem sui generis ao homem que, “mesmo depois de morto, pagou caro pela coragem, valentia e gênio. Afinal, vivemos num mundo em que não se tem essa singularidade impunemente. Mais ainda quando salta a característica do caráter” (como tão bem definiu João Antônio em “Lima Barreto, pingente”), convertendo tal homenagem em uma denúncia para a qual o país insiste em olhar pelo pincenês da desfaçatez: o fato de as pessoas negras no Brasil continuarem pagando caro. Em vida, por serem negras. Com a própria vida, por serem negras. Daí a muito bem-vinda forma pela qual o espetáculo tem início: com Lima Barreto “mesmo depois de morto”. A performance – simples e ligeiramente estranha – executada à entrada do Sesc Pinheiros “acolhe” (?) espectadores e curiosos com a emblemática imagem de um cemitério dos vivos, embalada pela prosa do próprio escritor e pela música de Heitor Villa-Lobos. Logo depois, o público é convidado a subir ao auditório, onde, por meio de cinco cenas e um epílogo, Sidney Santiago Kuanza ora representa o Lima Barreto histórico, ora debate publicamente a natureza de seu próprio trabalho de ator, articulando de forma intrincada os planos do diário íntimo (seja do homem negro das letras de então, seja do homem negro do teatro de agora), do diário da encenação, da fabulação literária e da militância jornalística do homenageado. A veiculação de materiais audiovisuais diversos, a ocorrência de intervenções metateatrais pontuais da codiretora Gabi Costa e até mesmo um eficiente jogo de simulação da realidade completam a empreitada – usufruída pela plateia com interesse e engajamento continuamente renovados.

(Foto: Bob Sousa)

Sidney Santiago Kuanza (também criador do projeto e responsável pela dramaturgia) exibe corpo e voz plenamente alinhados à energia emocional mobilizada em cena, aos tensionamentos políticos decorrentes dela, a toda criatividade, ora densa, ora folgazã, empenhada no projeto. A coreografia do ponto de Exu é de uma beleza magnetizante; o longo solilóquio de “Apologética do feio”, conto a partir do qual o espetáculo foi nomeado, é um primor de execução. Embora nada tenha da feiura reputada a Lima Barreto, muito pelo contrário, o intérprete se irmana em cena ao escritor, ao tocar fundo em uma série de fealdades e de hediondezas que aniquilaram o autor de Clara dos Anjos e que continuam de uma atualidade alarmante. Vivas e doídas.

A solidão do feio recusa-se o olhar para Lima Barreto como um homem negro ressentido. Recusa-se igualmente a tratá-lo somente como um intelectual indignado com uma sociedade provinciana. Como também a reduzi-lo à imagem de um alcoólatra. O Lima Barreto que se vê no auditório do Sesc Pinheiros surge diante de nós como também quis desenhá-lo Luís Alberto de Abreu: “uma tatuagem na alma, tão grande e tão nítida quanto o próprio país”. Nas páginas de seu Diário íntimo, o jovem memorialista Afonso Henriques de Lima Barreto cravou: “No futuro, escreverei a História da escravidão negra no Brasil e sua influência na nossa nacionalidade”. Ainda que por caminhos oblíquos, ou mesmo em razão deles, ele conseguiu tal intento. Seja pela ótica da historiografia oficial, seja pelo viés da margem esquerda da história, já tivemos um Lima Barreto, batemos a porta da Academia Brasileira de Letras na cara dele e o internamos em um manicômio. O que A solidão do feio nos obriga agora é engoli-lo. Com as cascas de suas feridas e tudo.

A SOLIDÃO DO FEIO

Duração: 80 minutos
Classificação: 14 anos

Quando: 11 de janeiro a 9 de fevereiro, das quintas aos sábados, às 20hPerformance de abertura às 19h30

Onde: Sesc Pinheiros – Auditório, 3º andar, rua Paes Leme, 195 – Pinheiros – São Paulo

Quanto: R$ 40, R$ 20 e R$ 12

 

Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Uni-Rio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero.


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