É difícil ser fácil: sobre ‘Bolsonaro: o mito e o sintoma’, de Rubens Casara
O jurista Rubens Casara, autor do recém-lançado 'Bolsonaro: o mito e o sintoma' (Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)
Magda Righi, espectadora de uma conferência proferida por Pier Paolo Pasolini em Bolonha, em 1965, escreve-lhe uma carta intitulada “É difícil ser fácil”, publicada na revista “Vie Nuove”, na qual diz ter feito um enorme esforço para entender a sofisticação das palavras de Pasolini. “Não é possível expor os problemas e as críticas que dizem respeito à arte com uma linguagem acessível a todos?”, pergunta. Pasolini responde à sua inquietação:
“A simplificação e a vulgarização são profundamente deseducadoras: simplesmente informam a presença de alguns problemas e dão em poucas palavras a sua solução. Tal informação não acrescenta quase nada à cultura de quem lê: acrescenta apenas a ilusão de saber alguma coisa a mais. Agora, para lhe dizer a verdade, eu também me satisfaço com essa ilusão: por exemplo, no que diz respeito às pesquisas atômicas, biológicas e científicas em geral, não sendo um cientista e não possuindo uma linguagem da ciência, fico contente com certas ‘seleções’ divulgadoras: sei, porém, que depois de ter lido semelhantes seleções o meu saber ganhou algo a mais, materialmente, porém não mudou a não ser ilusoriamente. Se a simplificação é, portanto, apenas vulgarização, a partir do exterior, esse é um fato não cultural e puramente informativo. E há apenas alguns “profissionais” adeptos a semelhantes operações (grande parte do jornalismo funciona desse modo). Agora vivemos num tempo em que todo pensamento se apresenta a um autor ou a um crítico como duplicado: todo pensamento tem duas possibilidades de desenvolvimento ou duas diferentes raízes originárias. Nenhum de nós jamais poderá dizer, como ensinava Cristo, ‘sim se é sim, não se é não’: ao sim e ao não se chega sempre através de um debate interior dramático. Depois, também precisamos dizer algo sobre a técnica: ou seja, sobre as linguagens especialistas. Hoje, todo tipo de conhecimento se especializou, e só pode manter sua qualidade originária em sua linguagem. Esta, portanto, é difícil não porque é hermética ou obscura, mas porque é elíptica, tem algumas palavras que resumem passagens inteiras do pensamento (como toda língua técnica e específica). Por todas essas razões, minha linguagem, quase sempre, também aqui nesta rubrica, se apresenta como um inimigo a ser vencido, por mais que me esforce em tentar torná-la clara.”
No recém publicado Bolsonaro: o mito e o sintoma (Editora Contracorrente) – prefaciado por Rafael Valim –, Rubens Casara parece responder à exigência compartilhada por Pasolini com sua espectadora-leitora. Não só em seus últimos livros, mas também em entrevistas e artigos, Casara tem manifestado o desejo de entrar em contato com uma comunidade heterogênea de leitores. O juiz de Direito do Tribunal de Justiça do RJ tem buscado romper, assim, certo círculo hermenêutico do mundo ao qual se vincula institucionalmente, para que possa movimentar e cruzar saberes múltiplos, provenientes da história, psicanálise, filosofia, antropologia, economia, mitologia, comunicação etc., sem os quais se torna muito difícil compreender o “fenômeno político” que nos atravessa, hoje, no Brasil. Entretanto, Casara tem consciência de que não é necessariamente o desejo por “comunicação” que move seu gesto, mas, antes, o desejo por cognoscibilidades possíveis. Nesse sentido, busca escapar do imperativo e da tirania da informação midiática, que não por acaso é um dos tópicos de sua reflexão.
Em Por uma outra globalização (Record), Milton Santos reflete sobre a dupla tirania constante em sua (nossa) época: a do dinheiro e da informação, que estão “intimamente relacionadas”. Ele ressalta “o papel verdadeiramente despótico da informação”, ou seja, o fato de que o discurso midiático antecede quase de maneira obrigatória uma parte substancial das ações humanas”, e o que “é transmitido à maioria da humanidade é uma informação manipulada que, em lugar de esclarecer, confunde”, pois “falsificam-se os eventos, já que não é propriamente o fato o que a mídia nos dá, mas uma interpretação”. Assim, “o evento já é entregue maquiado ao leitor, ao ouvinte, ao telespectador, e é também por isso que se produzem no mundo de hoje, simultaneamente, fábulas e mitos”. A linguagem, portanto, no fim do século 20, apontava Milton Santos, ganha autonomia, constituindo sua própria lei. Isso facilita a entronização de um subsistema ideológico, sem o qual a globalização não se explicaria. E para que se explique, todas as técnicas hegemônicas de poder alimentam os globalitarismos, que, por sua vez, possuem uma imensa capacidade de capturar tudo aquilo que se coloca como adversário, diferente de uma “ética pragmática individualista”, diferente do mundo dos “empreendedores de si mesmos”.
Rubens Casara destaca muitas vezes, em seu percurso crítico, “o empobrecimento subjetivo” de nossas “experiências”, como na passagem: “A linguagem empobrecida é o resultado do que se tem chamado de ‘racionalidade neoliberal’, um modo de ver e atuar no mundo que transforma (e trata) a tudo e a todos como mercadorias, como objetos que podem ser negociados e/ou descartados. Diante desse quadro, a pessoa que se afasta do pensamento raso e dos slogans argumentativos, e assim coloca em dúvida as certezas que se originam da adequação aos preconceitos, torna-se um inimigo a ser abatido, isso se antes não for cooptado. Nesse sentido, pode-se falar que o empobrecimento da linguagem gera o ódio direcionado a quem contraria essas certezas e desvela os correlatos preconceitos.”
Assim, nessa guerra midiática, não é nada fácil inoperar certos dispositivos do capitalismo, pois eles têm um enorme poder de cooptação. Pasolini, ao tratar do neofascismo, ou seja, o mundo do consumo dos anos 1970, percebia com força e disposição crítica que a tirania do dinheiro é capaz de tornar muito facilmente os contestadores em súditos. Desse modo, estamos sempre diante de uma armadilha. Como nos aponta Giorgio Agamben a partir das reflexões de Walter Benjamin em O capitalismo como religião – a qual celebra um culto (sem sonho e sem piedade) extremamente culpabilizador -, como restituir ao nosso uso comum o que foi separado de nosso convívio pela “religião capitalista”?
A religião capitalista captura, a todo instante, os meios – corpos, linguagem, informação – pelos quais tentamos desativar a máquina mortífera do consumo. Casara, muito atento a tais mecanismos de poder, escreve: “a razão neoliberal se sustenta na hegemonia do ‘vazio do pensamento’ expressa no empobrecimento da linguagem, na incapacidade de reflexão e em uma percepção democrática de baixíssima intensidade. Qualquer processo reflexivo ou menção aos valores democráticos representam uma ameaça a esse projeto de mercantilização do mundo. A informação, por sua vez, é construída e manipulada segundo a lógica das mercadorias.”
A lógica das finanças, portanto, regula as ações do Estado Pós-Democrático, já que na pós-democracia, como argumenta Rubens Casara, se dá “o desaparecimento dos valores democráticos da esfera pública, a superação do modelo democrático de Estado. A democracia, com suas regras, princípios e valores, passa a ser vista como um entrave para o Estado. Como, em razão da racionalidade neoliberal, o Estado deve servir ao mercado e atender aos interesses dos detentores do poder econômico, os limites democráticos ao exercício do poder tornam-se obstáculos ao lucro e à circulação ilimitada do capital.” Além disso, e para tais fins, tal Estado necessita criar os meios de manutenção de seus interesses, contra toda e qualquer possibilidade de profanação, cujo gesto se encontra na abertura de um uso distinto do sintoma da repetição, geradora de comandos e violências. Nesse sentido, para impedir que a política ganhe uma dimensão mais criativa, participativa, o Estado Pós-Democrático torna-se cada vez mais, ao mesmo tempo, um Estado-policial e penal.
Como bem observou o jurista Silvio Almeida, em uma conferência no Seminário Nacional do Processo Penal e Democracia, em setembro de 2019, em Salvador, o processo penal se torna indissociável da necropolítica em curso. E acrescenta: “Necropolítica é um conceito indissociável de uma visão crítica da economia política, indissociável de uma visão crítica da Teoria do Estado e da Teoria do Direito, incluindo uma de suas ramificações: Processo Penal. Este não pode ser pensado, por sua vez, sem uma crítica da Teoria do Estado, da Teoria Geral do Direito e da Economia Política”. O processo penal, assim, conclui Silvio, “é indissociável da necropolítica”. Desse modo, a atualidade da reflexão de Walter Benjamin, em 1921, em “Para uma crítica da violência”, jamais perde sua atualidade: “A violência que mantém o direito é uma violência que ameaça”. O texto “Vou intervir!”, da jornalista Monica Gugliano, publicado na edição de agosto da revista Piauí, aborda justamente, entre tantas coisas, a ameaça enquanto sintoma sempre presente nos discursos de Bolsonaro.
Seguindo os caminhos múltiplos de Rubens Casara, verifica-se que um dos sintomas de nossa época é o (des)entendimento do que seja democracia: “Na pós-democracia o significante democracia não desaparece, mas perde seu conteúdo. (…) Em nome da ‘democracia’, na pós-democracia rompe-se com os princípios democráticos. A democracia torna-se vazia de significado, o que guarda relação com o ‘vazio do pensamento’ inerente aos modelos em que o autoritarismo acaba naturalizado.”
Não deixemos de lado, porém, o complemento da afirmação de Benjamin, citada anteriormente: “Só que essa ameaça não deve ser interpretada no sentido de intimidação”. Singular, nesse sentido, foi a manifestação de Bolsonaro durante a reunião ministerial no dia 22 de abril, quando declara: “Como é fácil impor uma ditadura no Brasil. Como é fácil. O povo tá dentro de casa.Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa,que o povo se arme!” Transfere-se a intimidação para o povo, tornando-se este o agente da intimidação, tendo em vista que Bolsonaro se encontra – já que sempre entronizado por seus atos e discursos totalitários – intimidado pela própria democracia? Nesse movimento paradoxal, como bem observa Rubens Casara, há um esvaziamento da democracia participativa, “que se faz tanto pela demonização da política e do ‘comum’ quanto pelo investimento na crença de que não há alternativa para o status quo.”
Se o significante democracia não desaparece na retórica cínica de certos grupos políticos, é porque vem capturado para se disseminar a ideia de que a própria democracia, para ser mantida “em sua baixa intensidade”, como ressalta Casara, requer o auxílio de forças antidemocráticas diante da ameaça da “desordem” que pode vir a ser criada por forças que impedem “a passagem da boiada”. Como desativar, portanto, a boiada? Estejamos atentos aos gestos de grupos, pensadoras e pensadores espalhados e fragmentados por todo o país que buscam abrir espaço, com força ética, crítica, alegre e rejuvenescedora, diante das ruínas da antiguidade de nosso presente. Podemos, ainda, nos perguntar: como desativar os dispositivos que conseguem, por cooptações e violências simbólicas e físicas, capturar nossas profanações, ou seja, como profanar o Improfanável, tal como nos questiona o filósofo Giorgio Agamben? Como restituir à comunidade algo que foi separado dela através de dispositivos imunitários que marcam as fronteiras espaciais e temporais diante dos corpos, e nos corpos, que serão protegidos em detrimento dos que serão brutalmente asfixiados e sacrificados?
Talvez possamos começar pelo exercício de traduzibilidade, e não apenas de tradução, do que entendemos por “comum”: na traduzibilidade, no vir-a-ser de uma nova compreensão de comum, a imaginação é a força que entra em choque com a tirania da forma do imaginário. Dar um novo uso ao termo, diferente daquele até então em uso, o qual está sempre muito entrelaçado à noção de “próprio” e de “propriedade”. O filósofo Roberto Esposito, autor de Communitas: origem e destino da comunidade (1998) e Immunitas: proteção e negação da vida (2002), nos relembra que “communitas” e “immunitas” provêm do termo “munus”, que significa, em latim, encargo, dever, ônus. Da etimologia de communitas, Esposito põe em relação três termos que derivam de “munus”: ônus (onus), ofício (officium) e, da relação entre ônus e ofício, doação, dom (donum).
Nesse sentido, o filósofo aponta que “uma vez que alguém aceitou o munus, ele é obrigado a devolver o ônus, na forma de bens ou serviços”. Instala-se, portanto, o débito. Movido por tal obrigação de doar, o sujeito não se sente parte da comunidade, torna-se anestesiado diante da dor dos outros. Esposito acrescenta: “Aquele que foi libertado das obrigações comunais ou que goza uma autonomia original ou, subsequentemente, liberado de um débito anteriormente contraído, goza a condição de immunitas.” De tal relação de exceção, que inclui por via da exclusão, entra em cena um poderoso paradoxo, diz Esposito: a imunidade pressupõe a comunidade e, ao mesmo tempo, a nega; a comunidade se protege de um possível excesso de entrega comunitária.
Por tais razões, Rubens Casara tenta rearmar no limiar final de seu percurso em Bolsonaro: o mito e o sintoma, um novo uso para a esfera do comum, “que não é uma, mas sim feita de múltiplas aproximações da ordem do sentido, que é, por sua vez, ela mesma, múltipla”, como tem observado o crítico Raúl Antelo nos últimos anos, em diversas intervenções. E por que Rubens Casara busca dar um novo uso à esfera do comum? Porque, como ele escreve: “Valores e ideias como ‘solidariedade’, ‘comum’ e ‘espaço público’ perderam importância para as pessoas”, visto que “a redução à desigualdade e as chamadas ‘políticas identitárias’, necessárias à concretização da democracia, mexeram com o imaginário da população, mas não foram apreendidas como algo da esfera do ‘comum’”, quando não deixamos de ver que “a grande imagem ausente ou precária no imaginário neoliberal é a do ‘comum’”, e que é justamente a “ideia do comum que se faz presente nas lutas sociais, movimentos populares e manifestações culturais contra o neoliberalismo”. Por esse motivo, ele conclui: “O ‘princípio do comum’ enuncia que existe o inapropriável e o inegociável. A partir da instituição do comum, novas imagens, novas normas, novos comuns e uma nova realidade pode surgir. Por isso é preciso insistir na força do comum, desdemonizar a palavra e refundar o conceito de comum como objeto da política. Não é impossível.”
Como nos apontava, em 1971, o grande mitólogo Furio Jesi, no ensaio “Sobre os mitos contemporâneos”: “Os mitos podem ser usados (e são usados!) para exercer uma verdadeira e peculiar hipnose sobre grupos sociais inteiros, para impor determinadas escolhas (políticas, consumistas, religiosas, etc.).” Como podemos, então, sabotar tais mitos? Como podemos sabotar o sintoma do gozo administrado, que se quer igual para todos e todas? Talvez um dos caminhos seja o da imaginação, para que possamos inoperar imaginários bélicos de plantão.
A meu ver, não há políticas da imaginação sem estudo, inclusive contra certos paradigmas pedagógicos que mantêm estruturas de forma alguma emancipatórias, diante da complexidade que é o Brasil. Por esse motivo Rubens se reinventa com outras leituras e estudos, entrando, por vezes, em consenso, e por outras, em dissenso, com os integrantes da comunidade, espacial e temporalmente heterogênea, que entram em cena no livro. Além disso, não há políticas da imaginação sem desejo. A etimologia da palavra studium diz respeito ao máximo grau do desejo. “Ela remonta, também – como nos diz Agamben em “Ideia do estudo” – a uma raiz st– ou sp-, que designa o embate, o choque. Estudo e espanto (studiare e stupire) são, pois, aparentados nesse sentido: aquele que estuda encontra-se no estado de quem recebeu um choque e fica estupefato diante daquilo que o tocou”.
O amor pela etimologia e filologia nos ensina, também, que estupefacere é o resultado da junção de duas palavras: stupere e facere. O verbo stupere significa ficar pasmado, atônito ou atordoado. Também pode significar ficar parado, sem se mexer. O verbo facere significa fazer, com todos os sentidos que o verbo fazer tem no português: realizar, construir, produzir, praticar, provocar. Assim, estupefacere significa literalmente “fazer ficar atordoado” ou “causar pasmo”. Tempos impossíveis, paradoxalmente, são momentos singulares para que façamos ficar maravilhosamente atordoado nosso pensamento.
Simone Weil dizia, em 1934, que “vivemos em uma época privada de futuro. A expectativa do que virá já não é mais esperança, mas angústia”. Como transformar a angústia que nos paralisa em força criativa? Clarice Lispector escreve uma bela crônica para o “Jornal do Brasil”, nos anos 1960, cujo título era “Brincar de pensar”: “Às vezes começa-se a brincar de pensar, e eis que inesperadamente o brinquedo é que começa a brincar conosco. Não é bom. É apenas frutífero.” Eis o início de outro mito, de um novo e mais frutífero sintoma. E Rubens Casara, sabendo o quanto é difícil ser fácil, não teme o estupor e o gesto do fazer ficar atordoado, do atordoar-se, pois, assim, é o próprio sujeito que se torna democraticamente heterogêneo.
Bolsonaro: o mito e o sintoma
Rubens R.R. Casara
Contracorrente
200 páginas – R$ 44
Davi Pessoa é professor de literatura italiana na UERJ e tradutor