Corpo tecido e traduções canibais: aproximações pela diferença

Corpo tecido e traduções canibais: aproximações pela diferença
A artista Loïe Fuller, cujas memórias inspiram o livro "A orquídea, a nuvem, a borboleta" (Foto: Isaiah West Taber/1897)

 

A orquídea, a nuvem, a borboleta: Loïe Fuller e a serpentine dance (org. e posfácio Lucila Vilela), Florianópolis, Cultura e Barbárie, 2020.

Traduções canibais: uma poética xamânica do traduzir. Álvaro Faleiros, Florianópolis, Cultura e Barbárie, 2019.

 

Dois livros publicados pela editora Cultura e Barbárie, em Florianópolis, chamam a atenção pela diferença que os põe em comum nesta breve resenha. É essa diferença, aliás, que os une. O primeiro, organizado e traduzido por Lucila Vilela, são trechos das memórias da dançarina americana Loïe Fuller, acrescidos de reflexões sobre a dança. A segunda obra é o ensaio de Álvaro Faleiros consiste em uma reflexão sobre a arte literária da tradução. Desde Haroldo de Campos, Faleiros foi quem levou o projeto intelectual de tradução e antropofagia a um novo salto epistemológico. Os dois livros, por suas diferenças, atentam para o canto e para a dança, situando-os como práticas de leitura tanto em termos de técnica quanto no sentido da invenção.

Vejamos uma invenção por necessidade: Loïe Fuller descobriu no fundo de um de seus baús uma caixinha. De dentro dela retirou “uma seda muito leve, comparável a uma teia de aranha.” Foi essa seda que serviu de base para o seu espetáculo, Serpentine dance. Mesclando hipnose e técnicas corporais, Loïe Fuller estreia em Nova York: “A orquestra tocou muito suavemente uma melodia melancólica e eu me esforcei para me tornar o mais leve possível a fim de dar a impressão de uma figura esvoaçante, obediente às ordens do médico [que atuava para hipnotiza-la]. Ele levantou os braços. Eu levantei os meus. Sob a influência da sugestão, em transe – pelo menos, na aparência – com o olhar fixo no dele, segui cada movimento. Minha túnica era tão comprida que eu continuava pisando nela e intuitivamente segurei-a com as mãos e levantei meus braços, enquanto continuava a flutuar pelo palco como um espírito alado.” Não demorou para que do público exclamasse um coro: “é uma borboleta”. Estávamos no final do século XIX e a dança deu um largo passo. Ou melhor, no seu voo de borboleta, Loie Füller alterou o ritmo das apresentações de dança.

Uma vez em Paris, será a sua vez de hipnotizar o público com sua dança. Dominando tecnicamente o movimento leve dos tecidos no palco do Folie Bergère. Por imagens, conhece-se sobretudo as variações cromáticas através de imitações por outras dançarinas e que ficaram gravadas na memória do cinema pelos irmãos Lumière. Mas a dançarina vai ocupar algumas páginas da literatura, encantando especialmente um poeta: Stéphane Mallarmé. O poeta não deixará de anotar suas divagações em Crayonné au Théâtre, nas quais a dança apresenta a forma humana na sua mais excessiva mobilidade. A propósito de um dos seus espetáculos, Mallarmé escreveu que toda a emoção sai daquele que a observa, ampliando o ambiente no silêncio palpitado pelos tecidos.

Mallarmé também é um autor ao qual Álvaro Faleiros vai aproximar tradução, xamanismo e antropofagia, sobretudo no plano do espaço da página do seu lance de dados (Un coup de dés, publicado na revista “Cosmopolis”, em 1897). Convém ressaltar que as duas traduções que o poema teve no Brasil foram assinadas por Haroldo de Campos na década de setenta, e por Álvaro Faleiros, em 2014. Caberia ler esse corpo que dança, o dos tipos móveis, na coreografia constelar do poema de Mallarmé. Mas o que faz Faleiros é uma operação muito mais concreta, preparando o leitor para a compreensão de elementos essenciais da poesia traduzida, a saber, a equivalência metro-rítmica, o que se perde e o que se ganha em um poema traduzido, assim como as “vozes estranhas” por vezes saídas das zonas indeterminadas entre o papel do escritor e do tradutor. Vozes às quais poderíamos acrescentar a do crítico-tradutor ou a do tradutor-crítico. Neste caso, a ordem dos fatores altera o resultado de um texto traduzido. Essa observação das zonas cinzas e vozes estranhas feita por Álvaro Faleiros vem de comentários de Paulo Henriques Britto e de Paulo Vizioli. Em relação a antropofagia, Álvaro Faleiros não deixa de mencionar a relevância de Haroldo de Campos como um “vetor para a internacionalização da associação entre antropofagia e tradução. A particularidade de Traduções canibais é que o autor aprofunda esse aspecto através de leituras de textos antropológicos como os de Manuela Carneiro da Cunha, Eduardo Viveiros de Castro e Pedro Cesarino. Com isso, ele recompõe uma camada da tradução a partir do xamanismo, a saber, o de cruzar barreiras corporais e espirituais, de transitar entre sentidos com ritmo, de modo que “o conceito de “ação xamânica” surge aí como possível modo de entendimento de sua poética tradutória como uma poética multiposicional.” Fato que não ocorre política e esteticamente sem desieraquização e permuta, como ele observa. A partir desse ensaio, é possível reivindicar uma percepção de relações mais ampla nas maneiras de encenar o sentido no espaço branco da página ou do tecido.

É nessa zona cinza, mas determinante como um espaço de criação, que Um lance de Dados, do Mallamé encontra equivalências e diferenças com a serpentine dance, de Loïe Fuller. O estudo “corpo tecido: impressões sobre Loïe Fuller”, de Lucila Vilela, por exemplo, capta a produção incessante de movimentos efêmeros que oscila entre amplitude e fugacidade, presença e ausência: são imagens da metamorfose que cruzaram o século XX com leveza e assombro, mantendo o efeito do transe do qual o leitor pode participar ao ler esses dois ensaios.

Eduardo Jorge de Oliveira é professor de Literatura, Cultura e Media no Brasil da Universidade de Zurique – UZH, na Suíça, e autor de A invenção de uma pele: Nuno Ramos em obras (Iluminuras, 2018) e Signo, sigilo. Mira Schendel e a escrita da vivência imediata (Lumme Editor, 2019).

 

A orquídea, a nuvem, a borboleta. Loïe Fuller e a Serpentine Dance
Organização Lucila Vilela
Cultura e Barbárie
80 página – R$50,00

Traduções canibais: uma poética xamânica do traduzir
Álvaro Faleiros
Cultura e Barbárie
192 páginas – R$62,00


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