Querida poeta brasileira

Querida poeta brasileira
'Moça lendo uma carta à janela' é o quadro de Johannes Vermeer que inspirou o poema de Lu Menezes (Foto: lunaparque)

 

Querida poeta brasileira do século XXI,
querida correspondente vinda de um futuro do passado,
querida voz que me endereça múltiplos reflexos,
querida Lu Menezes ou apenas
Lu, querida,

Exilada em isolamento, dispersa e sempre online entre múltiplas janelas virtuais, esboço endereçamentos. Respondo assim ao poema epistolar que você endereça à Querida holandesa de Vermeer, no livro acaba de sair pela Luna Park, numa bonita coleção que propõe releituras poéticas contemporâneas de pinturas anteriores ao século 20. Num jogo de reflexos, confundo-me com aquela a quem o “eu lírico” do longo poema se endereça: a mulher que lê uma carta perto da janela, numa pintura do holandês Vermeer cuja data provável a edição bem cuidada situa entre 1657 e 1659.

De pé, com a carta nas mãos, a moça da pintura não contempla a sua própria imagem no reflexo luminoso projetado na vidraça da janela, apenas lê. Mas na superfície transparente da leitura, ela e eu nos vemos confundidas neste mesmo “você” do endereçamento epistolar, que aqui remete ao procedimento lírico que projeta no poema uma interlocutora em segunda pessoa, na qual a leitora que sou também se projeta.

é no ato de “ler”  que você
se faz ver… exibindo
o valor incomparável
do infindável
alcance da linguagem.

O efeito especular da carta se multiplica ao endereçar-se também à receptora (ou receptor) do poema, como um espelho que espelhasse um outro espelho, num reflexo infindável. Deslocada em algum lugar entre 1657 e 2020, leio numa janela virtual a mensagem que você endereça a Saskia, nomeando assim, numa referência à esposa de Rembrandt, a moça cuja imagem anônima se reflete (e me reflete) na transparência do vidro (da tela).

Este jogo de reflexos faz pensar na reflexão crítica de Célia Pedrosa sobre o uso do endereçamento poético na poesia contemporânea, em procedimentos que colocam em cheque uma concepção intransitiva da palavra poética, compreendida como fechada em sua densidade expressiva. Sim, é também para mim, e sem dúvida para muitas e muitos futuros leitores, que a sua carta se abre e desdobra.

E me leva a um outro texto, que talvez você nem tenha lido, mas pode entrar em nossa conversa. É um ensaio de Ingeborg Bachmann que tematiza o “eu” na literatura. Ela diz que longe de ser invariavelmente confessional, numa reivindicação ingênua de autenticidade, o “eu” pode ser representado no texto literário de diferentes modos, passando da fragmentação da consciência em diferentes camadas de rememoração, como em Proust, ao esfacelamento da própria experiência que a narração em primeira pessoa deveria unificar em Beckett.

Entretanto, mesmo que tenha perdido toda credibilidade, esteja estropiado e sem nenhuma garantia de autenticidade, o “eu” vive lá onde fala, instalando um presente. De acordo com Bachmann, a criação poética o faz ressurgir a cada vez de um modo novo, respondendo a novas situações históricas com diferentes representações da voz humana.

Penso então na voz deslocada em Vaga carne, o filme recente de Grace Passô: “eu” que migra de uma matéria a outra sem identificar-se com suas diferentes corporeidades, até que finalmente adere ao corpo de uma mulher negra do qual e no qual fala, num processo aberto e complexo de identificação e descentramento, exterioridade e incorporação.

Na sua carta, o “eu” endereçado de certo outro modo também é um ir e vir espectral, voz que se desloca e se projeta entre imagens e imagens de imagens, percorrendo múltiplos reflexos do passado no presente.

Querida Saskia,

Tome este nome como tangencial
homenagem a Rembrandt.
Te escrevo, mesmo que
o rumo desta carta
temerariamente pareça
com a estreita
ponte japonesa
suspensa
entre Hida e Etchu
numa xilogravura de Hokusai.

Na temerosa travessia deste endereçamento ao passado, a voz epistolar é a ponte flexível e ondulante que conduz de uma imagem a outra, projetando reflexos de sua leitora, e equilibrando-se entre rimas toantes e internas que multiplicam também no plano rítmico efeitos de espelhamento. Vai assim desdobrando a pintura de Vermeer em diferentes camadas do passado artístico que, para Saskia, são futuro – Hokusai, Rembrandt, Van Gogh, Mondrian, Hopper – além de mencionar seus conterrâneos seiscentistas Post e Eckhout, que pintaram a biodiversidade brasileira ameaçada pela “atual erupção de barbárie”. Apesar dos saltos aos futuros e hipotéticos presentes do passado, são bem de agora as perguntas que faz à imagem de sua interlocutora, as inquietações que lhe conta:

Basta lembrar, Saskia, que a Terra
já era redonda para você,
com esfericidade bem comprovada
via circum-navegação
de Fernão de Magalhães;
mas eis que retorna
o ultra-obtuso
“terraplanismo”
– obscurantismo
cúmplice e sinônimo
de outros em voga

Talvez essa travessia endereçada que seu poema-carta propõe seja semelhante ao pulo do tigre de que falava Walter Benjamin em suas teses sobre a história: um salto em direção ao passado que encontra seu impulso no presente, farejando “o atual onde quer que se mova na selva do outrora”.  Na densidade histórica deste endereçamento que entrelaça o agora e o outrora, dispensando a “descrição/ da sucessão de inventos” numa “total/visão histórico-planetária”, articular historicamente o passado não significa apresentar uma série de acontecimentos, mas, como diria Benjamin, apoderar-se de uma imagem “quando ela surge como um clarão num momento de perigo”.

Sim, querida Lu, o momento é mesmo de grande perigo! Por isso não posso deixar de convocar a matéria preciosa de uma outra face do tempo, imobilizada na imagem, evocando aqui ainda um poema de seu primeiro livro, sobre “A Leiteira”, outro conhecido quadro de Vermeer

Banhou-se de luz
de ouro de Vermeer
a infinita vontade de ver de verdade

A crosta do pão é de ouro
A palha do cesto é de ouro

O barro da jarra é de ouro

e o Tempo
é um leite de ouro
fulgindo
ao alcance da mão

Neste “eu” crítico que a infindável quarentena exilou em seus reflexos e é também um endereçamento em busca de um “nós”, retribuo aquele “transcendental abraço” que você endereça à leitora da sua carta.

Patrícia Lavelle é poeta, professora da PUC-Rio e doutora em Filosofia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS-Paris)

Querida holandesa de Vermeer
Lu Menezes
Luna Parque
24 páginas – R$20,00


> Assine a Cult. A mais longeva revista de cultura do Brasil precisa de você

Deixe o seu comentário

TV Cult