Duas famílias marcadas pela violência

Duas famílias marcadas pela violência
Em 'Pátria', Miren e Bittori mudam a partir do impacto de um grupo nacionalista basco em suas vidas (Foto: Divulgação/HBO)

 

Em meio a tantos lançamentos audiovisuais, temos muitas produções dedicadas a enredos repletos de reviravoltas e poucas dedicadas à construção de boas personagens. Pátria, série espanhola que estreou na HBO no final do ano passado, é uma exceção. Criada por Aitor Gabilondo e inspirada no romance homônimo de Fernando Aramburu, a minissérie de oito episódios conta a história de duas famílias e de como suas vidas são afetadas pelo conflito basco. 

Entrelaçando a esfera privada à esfera pública com habilidade, Pátria vai nos apresentando alguns acontecimentos históricos enquanto conhecemos Bittori e Miren, duas amigas de uma vida inteira que vivem em vilarejo basco e veem essa relação se transformar quando o marido da primeira é assassinado pelo ETA (Euskadi Ta Askatasuna em basco, que significa Pátria Basca e Liberdade), organização nacionalista armada, considerada por muitos países como um grupo terrorista, da qual faz parte um dos filhos de Miren, Joxe Mari. 

Fundado nos anos 1950 originalmente com o objetivo de defender e promover a cultura basca, e criado no meio da ditadura de Francisco Franco, o ETA começa como um grupo de resistência, que passa a ter como objetivo a independência do País Basco, região que fica entre a fronteira da Espanha e da França em que residem as pessoas de origem basca, como é o caso de Bittori, de Miren e de suas famílias. 

O livro e a série se passam na parte espanhola da região, no extremo norte do país. No final da década de 1960, quando ETA se torna uma organização paramilitar com objetivo separatista, estima-se que passaram a ser responsáveis por mais de 800 mortes e milhares de pessoas feridas. Atualmente, mais de 400 antigos membros estariam em prisões na Espanha, na França e em outros países. Em 2011, um comunicado foi divulgado anunciando o fim da luta armada. Então Aramburu, nascido em San Sebastián (Donostia, em basco), quis escrever esse romance, publicado na Espanha em 2016.

A decisão de contar essa história a partir da perspectiva dessas duas famílias bascas é um desafio: precisaríamos nos aproximar de cada uma das pessoas envolvidas (são nove protagonistas) e nos importar genuinamente com todas, ainda que muitas vezes não sejamos capazes de compreendê-las. Se no livro temos tempo para isso — são mais de quinhentas páginas muito bem sucedidas em nos apresentar as personagens vividamente —, a transposição para as telas teria outros obstáculos: muito do que está nas linhas passou para as entrelinhas e outro tanto precisou ser deslocado, condensado, recriado para funcionar bem nesse outro formato, que, afinal, é uma obra autônoma e precisa se sustentar como tal.

Em ‘Pátria’, Jon Olivares interpreta um difícil personagem: Joxe Mari (Foto: Divulgação/HBO)

Mas o resultado surpreende. A começar pela escolha do elenco, que não poderia ser mais acertada — o próprio Aramburu gosta muito da série e disse que já não consegue imaginar outros rostos para suas personagens —, e a decisão de manter as mesmas pessoas ao longo de diferentes momentos da vida, com apoio de maquiagem, também me pareceu perfeita. Se as atuações todas são excelentes, destaque seja dado às atrizes que representam as duas amigas, Elena Irureta (Bittori) e Ane Gabarain (Miren), que tiveram o desafio de representar duas mulheres complexas e teimosas, personagens riquíssimas em nuances. Também comove a atuação de Loreto Mauléon como Arantxa, filha de Miren e Joxian, irmã de Joxe Mari e Gorka. Arantxa é uma moça linda e sensível, ponto central da trama, que sofre um derrame na vida adulta e está sendo cuidada pelos pais. As tensões intrafamiliares potencializam e são potencializadas pela pressão externa, escalonando os conflitos.

Mas, justiça seja feita, seria preciso mencionar cada nome do elenco. Jon Olivares (Joxe Mari), por exemplo, tem um papel dificílimo em mãos e consegue, com sutileza, humanizar aquele que poderia ser tomado como o vilão. Essa é uma história de pessoas, não de bandidos e mocinhos, e uma história de pessoas que sofreram muito, mas que também têm um elo profundo de amor.

Em alguns momentos, Pátria lembra outra adaptação literária contemporânea da HBO: My brilliant friend, série inspirada na tetralogia napolitana de Elena Ferrante. Aramburu, como Ferrante, é ótimo em entrecruzar a vida doméstica dessas famílias, no interior de suas casas, com suas rotinas quase banais, à vida política e à história que os envolve e que determina, em grande medida, seus destinos. Também como Ferrante, o autor é muito competente em criar personagens verossímeis, com ambivalências humanas, e talvez o maior mérito, entre tantos da obra, esteja justamente aí.

Com uma direção segura e sem didatismo, Pátria fala de violência, solidão, desamparo e desalento, mas também fala de amor, amizade e humanidade. Por isso, é capaz de falar de esperança de uma maneira que, longe de soar tola, é absolutamente necessária em tempos tão sombrios. Uma série singela, que tem a coragem de se aproximar das pessoas sem cinismo e sem ingenuidade. É raro — e precioso — que possamos testemunhar algo assim.  

Fabiane Secches é psicanalista e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo.


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