Crítica literária e o caso Ronell-Reitman: “um essencial desabrigo”
A professora e filósofa Avital Ronell (Foto: Reprodução)
O ensaio de Mauricio Salles Vasconcelos, Avital Ronell – A questão, o escândalo, a cultura test drive (Córrego, 2019), pauta-se por uma ocorrência discriminatória e não menos reveladora do conservadorismo de certo segmento acadêmico-institucional: a decisão de foro judicial que resultou no afastamento da professora Avital Ronell (nascida em Praga, República Tcheca) das atividades docentes na Universidade de Nova York, onde leciona. No período de 2018 e 2019, a catedrática da área de literatura germânica e estudos comparativistas – à época, com 66 anos de idade – precisou declinar do exercício do magistério e teve salário suspenso devido à acusação de assédio sexual ao jovem gay Nimrod Reitman, seu ex-orientando e autor da denúncia.
Avital Ronell – a questão, o escândalo, a cultura test drive manifesta sincronia com vertentes teórico-críticas contemporâneas, que promovem, em esfera híbrida, um diálogo vigoroso entre os discursos literário, filosófico, histórico e geopolítico. Ronell identifica-se como lésbica e milita por questões feministas, engajada nos estudos queer. Ressalte-se que a condução reflexiva adotada por Vasconcelos reitera a inclinação do pesquisador para abordagens de dinâmica acirrada, complexa, originárias das correntes pós-estruturalista e multiculturalista, sendo a primeira, em particular, afortunadamente delegada por Jacques Derrida, Michel Foucault, Paul De Man, Maurice Blanchot, Giorgio Agamben, Gilles Deleuze e Félix Guattari.
Assiste-se, com efeito, a um procedimento hermenêutico que sonda fenômenos arraigados no tempo e no espaço: um gesto investigativo que amiúde se inicia pela incursão na raiz léxica de dado objeto, desbravando um horizonte semântico capaz de deslindar conflitos histórico, étnico e ético, desconstruindo tropos. Aliás, em Salvo nome, Derrida diz que a desconstrução implica sobretudo a “própria experiência da possibilidade (impossível) do impossível, do mais impossível, condição que divide o dom, o ‘sim’, o ‘vem’, a decisão, o testemunho, o segredo etc.”, considerando-se a ambiguidade e a ambivalência do verbo, com suas lacunas e fraturas, dobras e sobras.
Logo, o construto especulativo de Vasconcelos paraleliza o episódio responsável pela superexposição de Ronell à produção científico-acadêmica dessa intelectual que confia a seus textos uma linguagem pulsante e vanguardista. A autora de The telephone book mostra-se, como bem assinala Mauricio, alerta às plurais conexões no campo das ideias e à fiação midiática em contínuo rizomático, já que ela – imbuída de convicções próximas às de Hélène Cixoux e de Judith Butler – atua como “filósofa, crítica de cultura e tecnoanalista”, e examina áreas diversas do saber: “psicanálise, ciência, sexualidade, civilização tecnificada, no contexto norte-americano das guerras do narcotráfico e das telemediações”.
Assomam-se às páginas do livro as leituras que Ronell realiza de inúmeros filósofos – apreende de Foucault, entre outras visões, a forma como ele “confronta os fronts de pensamento e cultura, estabilizados como ‘universais’ e abrigos antropomórficos”. O capítulo que Vasconcelos nomeia de “Gabinetes, Cabines” reserva-se a imbricações entre o foco de abordagem da autora de The test drive e a obra derradeira de Goethe (Conversações com Goethe), título firmado por Johannes Peter Eckermann, que conviveu com o esteta alemão, foi seu secretário e tomou nota de sua fala (“ato-ditado”). Mauricio situa, na fenda desse cruzamento de vozes, o alcance ótico de Ronell, isto é, as predileções de estudo dessa exegeta que está à escuta dos dêiticos, da palavra em trânsito, dos enunciados com seus pontos de deriva, de suas linhas de fuga.
Trata-se de território no qual autoria e recepção (autor-assinante) estão em jogo e latência (“laboratório/gabinete/cabine”). A professora da N.Y.U. desperta, a partir de Ditados, a atenção de Judith Butler, que concebe o trabalho da germanista como inerente ao de uma gay scientist. E curiosamente, à luz dessa operação, eclode o tal fato. Ou melhor: “Vem, inclusive daí, de tais correlações entre escrita e imagem pública, o ponto intrincado da questão e do escândalo por que passou Avital […] (Porque toda a acusação se fundamentou pelo que está escrito não apenas nas weblines, no circuito secretado das caixas eletrônicas de correio, mas no conjunto dos livros de Ronell, já que sua figura é reconhecível, publicizada)”.
O pronunciamento que ela endereça ao New York Times expressa acima de tudo retidão: “Nossas comunicações – que hoje Reitman afirma que constituíram assédio sexual – foram entre dois adultos, um homem gay e uma mulher queer, que compartilham a origem israelense, assim como uma inclinação para comunicações floreadas e afetadas, decorrentes de experiências e sensibilidades acadêmicas comuns”.
Recorde-se de que o segundo livro de Avital, Guerras do crack – literatura, adicção, mania, lançado em 1992, recupera a desventurada Emma Bovary; há espaço também concedido à leitura do ficcionista Thomas De Quincey, consumidor de ópio e precursor, em larga medida, tanto de William S. Burroughs quanto de William Gibson, autor de Neuromancer (1984) – narrativa cyberpunk em que o termo ciberespaço é cunhado pela primeira vez. Em síntese, a escritura de Ronell tangencia justamente neste circuito enervado: corpo e droga (pharmakon), no cenário performático e esquizofrênico das cadeias de computadores, avultam como matéria de contemplação (a internet que possibilita a Reitman armazenar as mensagens “floreadas” é, por ironia, a rede global através da qual o então jovem manipula os registros, otimizando-os e transformando-os em sintagmas de injúria).
Marcel Proust é um dos autores da órbita de interesse de Ronell – vislumbra-o a partir do binômio Literatura/Máquina, guiada pelos postulados de Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo. Nesse momento, observa Vasconcelos, os ensaios da professora da N.Y.U. “avançam para uma analítica da cultura maquínica”. Avital é portadora de um repertório vastíssimo, o que atesta a formação sólida nos terrenos da literatura, filosofia e também psicanálise, permitindo-lhe que eventos do presente sejam medidos em conjugação com personae e princípios fenomenológicos, por vezes, de tempos longínquos: de Kant a Heidegger, de Sófocles a Shakespeare (eis que a ironia, a anti-metafísica, a técnica, a condição de desfiliação e desamparo elevam-se como signos de ruminação). Não por acaso, Antígona e a personagem Cordélia da tragédia Rei Lear pontuam a cena autorreflexiva de um livro como Reclamação – Agravo entre amigos (o mais recente de Ronell, publicado em 2018, o mesmo ano da imputação de assédio a Reitman). Por contiguidade, a vocalização, a oralização, o logocentrismo, o falocentrismo e o grito feminino não se fazem ausentes.
Ronell evoca também Josefina, a ratinha do conto “Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos”, de Franz Kafka, nela se projetando: “Não me entenda mal. Esta é uma posição orgulhosa. Porque eu sou Josefina, Rainha do Povo-Rato, abastecida pela melancolia de Benjamin. Minha reverberação espectral, que não tem a menor pretensão de chegada garantida, ainda é transmitida no sentido shakespeariano, onde air (ar) e heir (herdeira) coincidem ao ponto de consternação e angústia na mudança de jogo […]”.
Em sobrevoo a esse universo instigante, a ensaística de Mauricio Salles Vasconcelos cartografa os principais trabalhos daquela com quem dialogou mais estreitamente na ocasião em que a teve como supervisora de estágio pós-doutoral (2000-2001) na Universidade de Nova York. Consequentemente, emana de Avital Ronell – a questão, o escândalo, a cultura test drive uma intenção amiga, afetiva e testemunhal, empenhada em revelar àqueles que pouco conhecem a produção da germanista e filósofa seu teor e sua grandeza. Mesmo porque, conclui Vasconcelos, se ela mais ficara em silêncio – mediante o enredo ultrajante no qual seu nome se vê maculado –, é “por deixar como resposta um processo-questão já incluso em sua produção investigativa e escritural”.
Ricardo Iannace é professor das Faculdades de Tecnologia do Estado de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade de São Paulo.