A vanguarda nacionalista de Roberto Mangabeira Unger

A vanguarda nacionalista de Roberto Mangabeira Unger
O filósofo e ex-ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos Mangabeira Unger em 2007. (Crédito: Wiki Commons)

 

O livro Rebeldia Imaginada: instituições e alternativas no pensamento de Roberto Mangabeira Unger (editora autonomia literária, 2019), organizado por Carlos Sávio Gomes Teixeira (UFF), principal estudioso da obra de Mangabeira Unger em nosso país, ajuda a consolidar no Brasil o crescente interesse acadêmico pela obra do filósofo, teórico social e político brasileiro. O interesse dos intelectuais brasileiros pelo pensamento de Unger sempre esteve aquém da relevância e centralidade que o professor de Harvard e ex-ministro de Assuntos Estratégicos de Lula e Dilma possui nos Estados Unidos, na Europa e na China. Mas isto começou a mudar há algum tempo e o livro oferece um panorama aprofundado do alcance e do caráter revolucionário de seu pensamento. Além de mapear e introduzir as discussões de Unger nos mais diferentes ramos do pensamento e da ação política, o livro aprofunda o debate e demonstra, em diferentes enfoques, a ousadia de Unger em combinar análise do existente com as possibilidades imanentes de sua transformação. 

Além da relevância acadêmica, o interesse pela obra de Unger se justifica por um critério político que deveria ser óbvio: seu pensamento, ainda que academicamente orientado pela busca de alternativas conceituais e institucionais para a realização política da grandeza humana a nível global, tem como diretriz prática fundamental a busca de alternativas programáticas reais para o Brasil. Vivemos, segundo ele, em uma “ditadura da falta de alternativas”, pois nos faltam opções  político-ideológicas e programáticas capazes de engajar amplos setores sociais em um processo cumulativo e revolucionário de transformação institucional e estrutural da sociedade pela política. A ideia de “rebeldia imaginada” combina insubordinação nacional aos diferentes tipos de colonialismo com inovação institucional, a partir da imaginação e do experimentalismo em diferentes esferas da vida social, como caminho para superar o subdesenvolvimento e realizar os potenciais de grandeza comum contidos na nação brasileira.

Na relação com a vida política, Unger nunca se contentou em ser o intelectual distanciado que oferece ideias abstratas, mas deixa o sentido programático de suas ideias para ser elaborado por outros, por políticos ou formuladores de políticas públicas. Ele gosta mesmo é de ir para o meio da confusão e traduzir sua visão da sociedade, da política e da personalidade em programas reais capazes de apontar não só rumos de transformação institucional, mas também os primeiros passos do caminho, como fez na Estratégia Nacional de Defesa e em várias outras iniciativas estratégicas quando foi Ministro.  Apenas a intensidade e o tipo diferenciado de sua atuação na esfera acadêmica e na esfera política, enquanto intelectual que sempre buscou assumir responsabilidades políticas diretas, já bastariam para fazer de Unger uma figura ímpar no cenário contemporâneo. Sua rebeldia parece, como muitos já observaram, a de um homem do século XIX que se recusa a abdicar da transformação institucional e estrutural da sociedade, mesmo atuando em um ambiente intelectual e político que rebaixa o nível das expectativas, a ponto de desacreditar como irracional qualquer projeto de transformação radical da sociedade, ainda que de modo incremental, como é o caso de Unger. 

O livro Rebeldia imaginada é trabalho de recepção, crítica e desdobramento do pensamento ungeriano. Em análises sobre os mais variados componentes e frentes deste pensamento destaca-se a doutrina fundamental de que o entendimento da relação dos seres humanos como o mundo social e cultural inclui o necessário entendimento de como esta relação, assim como a vida sociocultural e os próprios seres humanos envolvidos nela, são ou podem ser transformados. Entender o real é entender como ele é ou pode ser de outro modo. As formas sociais e culturais que enquadram a personalidade e limitam suas possibilidades de autorrealização podem até assumir níveis elevados de “entrincheiramento” contra a mudança, mas isto exige um trabalho de bloqueio intelectual que pode ser desafiado com a reconstrução e demonstração da contingência das formas de organizar nossa vida econômica, política, jurídica etc. 

Para Unger, romper com a visão determinista e reabrir o leque de escolhas institucionais exige enfrentar o colonialismo mental. Desafiar o “entrincheiramento” das escolhas institucionais feitas pelos países do Atlântico Norte no pós-segunda guerra para organizar o funcionamento da democracia representativa e da economia de mercado exige um trabalho de recepção crítica de teorias e modelos políticos, econômicos e jurídicos instituídos nos países centrais. Exige afirmar e construir pluralismo global de formas institucionais para organizar a economia, a política, o direito e diversas outras esferas sociais. A resistência às mudanças necessárias para superar o subdesenvolvimento, o primitivismo político, econômico e educacional só podem ser contornadas rompendo-se com a crença de que democracia representativa e economia de mercado só podem ser organizadas com as fórmulas inventadas e idolatradas pelos países do ocidente liberal. Para Unger a modernidade política (democracia) e a modernidade econômica (economia de mercado) são um horizonte de variadas possibilidades de como organizar concretamente a produção e a distribuição do poder e da riqueza. Unger observa contingência e mutabilidade ao tratar tanto do passado como do presente das sociedades contemporâneas, destacando sempre a adoção seletiva, conflituosa e combinatória de modelos institucionais para organizar a economia e a política. 

O livro demonstra o caráter vanguardista do pensamento de Unger na teoria política, na teoria social, na teoria jurídica e na economia. Seus capítulos demonstram como o entendimento da vida social e cultural dos seres humanos a partir da ideia de que os formatos institucionais e conceituais existentes não são necessários se desdobra em proposições concretas sobre como e em que direção intervir em diferentes áreas da vida social. Este desdobramento culmina na proposta de formular e implementar políticas públicas a partir de uma dinâmica de “experimentalismo institucional” que deve ser promovida por decisões políticas que tornem a adesão à mudança mais atraente que o apego à rotina. 

Unger tem raízes filosóficas nos “jovens hegelianos” que, como Marx, traduziam a constatação científica da contingência da vida social no programa político de transformar a realidade. Se toda forma institucional é uma solução entre outras possíveis para problemas sociais, se a economia de mercado é possível tanto com propriedade privada como com propriedade pública ou coletiva, e se a democracia pode combinar formas diretas (plebiscitárias) e indiretas (democracia parlamentar) de representação, não há razão para aceitar a hegemonia de uma única alternativa institucional. 

A discussão sobre as formas da propriedade econômica, que envolvem inovações econômicas e jurídicas, talvez seja o momento em que a rebeldia contra a idolatria de alternativas únicas fica mais evidente. Diferente de Marx, Unger não entende que a economia de mercado só combina com o regime da propriedade privada dos meios de produção. Para ele, especialmente com as possibilidades abertas pela economia do conhecimento, a pluralização das formas de propriedade é plenamente compatível com a economia de mercado: a propriedade privada pode coexistir com formas públicas ou coletivas de propriedade. A busca por transformar os processos de apropriação dos meios de produção e de controle da produção da riqueza, ao mesmo tempo em que promove com isso ao avanço das forças produtivas, torna o programa de Unger tão revolucionário quanto o de Marx, ainda que sua visão da mudança seja a de reformas revolucionárias, de mudanças incrementais com uma resultante transformadora, pois, ao contrário de Marx, ele não vê os sistemas sociais como totalidades estruturais que só podem ser transformados pela substituição completa e drástica de um sistema total por outro. Como não apenas as estruturas e instituições, mas também os próprios interesses das classes e frações de classe podem ser transformados, a visão incremental da mudança não significa menor ímpeto transformador. Isto fica evidente na insistência de Unger em se rebelar contra o rebaixamento das expectativas políticas, correlato necessário da idolatria das instituições econômicas e políticas existentes no Atlântico Norte. A social-democracia, ao aderir ao neoliberalismo na economia política, renunciou a qualquer pretensão de reorganizar política e juridicamente os regimes de produção e distribuição da riqueza, ou seja, as formas de propriedade, restringindo-se a esforços de redistribuição marginal do que sobra da riqueza produzida e distribuída de modo concentrador e excludente. A esquerda se contenta em tentar humanizar o regime econômico comandado pela plutocracia rentista.

O programa político transformador que Unger desdobra de sua teoria social e política também tem raízes em sua visão sobre a personalidade humana e suas relações com o mundo sociocultural. Sua visão sobre o ser humano é a de um ser que nunca está plenamente em casa nos formatos sociais e culturais vigentes. As possibilidades do ser humano sempre transcendem o que é possível social e culturalmente em cada contexto. Nossa alma é infinita em relação as possibilidades finitas nas quais cada sociedade e cultura tentam nos enquadrar. Transformar o mundo sociocultural é também, e acima de tudo, rebeldia da personalidade que deseja transcender os formatos de como ser, agir e vivenciar na vida com os outros. Esta visão da personalidade não é, no pensamento Unger, uma ideia puramente filosófica, mas sim ideia religiosa básica do cristianismo: a fé e a esperança de que o amor e o engrandecimento pessoal mútuo possam transcender a esfera da vida privada e orientar de algum modo a construção de solidariedades complexas e “comunidades imaginadas” (Benedict Anderson) na vida política. A capacidade de questionar a rigidez das estruturais sociais e institucionais vigentes a partir na crença de que pessoas podem se vincular em um nível mais elevado não deve ser direcionada para a autossegregação do mundo em pequenas comunidades de santos, pois isto é bloquear o potencial transformador do cristianismo enquanto crença na mudança das pessoas e do mundo. Deve se direcionada para a vida em comum, para a política. Se a vida religiosa ainda é uma esfera especial para a transcendência da personalidade em relação ao mundo social, ainda que isto fique atualmente restrito a micromundos, então ela têm uma contribuição indispensável para a construção de formas de transcendência políticas na esfera pública, pois sem energia transformadora emulada na própria personalidade, a transformação social fica sem sua principal fonte. 

A amplitude e a riqueza da obra de Roberto Mangabeira Unger são indicadas pelo temário do livro, que vai desde a situação da constituição de 1988 no Brasil atual ao papel da transcendência religiosa na mudança social, passando pelo direito tributário, pelos direitos humanos, pela análise de políticas públicas, pela relação entre capital e trabalho e pelo papel dos partidos políticos. Ao abordar com clareza, objetividade e profundidade diferentes e variados temas e dimensões da obra de Roberto Mangabeira Unger, Rebeldia imaginada torna-se um livro de leitura obrigatória para todos que desejam reabilitar a inteligência como recurso de construção e reconstrução da vida nacional. 

Rebeldia Imaginada: instituições e alternativas no pensamento de Roberto Mangabeira Unger
Org. Carlos Sávio Gomes Teixeira
Autonomia Literária
512 páginas – R$50,00


Roberto Dutra é doutor em sociologia pela Universidade Humboldt de Berlim e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Foi diretor do IPEA.

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