Realismo e política
Inspirado em Maquiavel e Marx, Gramsci identificou a íntima relação entre o ser e o dever ser da política
Alvaro Bianchi
Preocupado com o desenvolvimento de uma ciência da política e de uma prática política capaz de superar a divisão entre governantes e governados, Antonio Gramsci encontrou na obra do filósofo Nicolau Maquiavel (1469-1527) e do historiador Francesco Guicciardini (1483-1540) grande inspiração. Políticos, historiadores e filósofos do Renascimento italiano, ambos marcaram profundamente a história da Itália e as ideias políticas que tiveram lugar na península. O que atraía Gramsci nesses autores era o forte realismo neles presente, que aconselhava a tomar as coisas em sua efetividade e a considerar a política como um conjunto de práticas voltadas para a conquista e manutenção do poder político.
O realismo de ambos os escritores renascentistas era substancialmente diferente e foi sobre essas diferenças que Gramsci refletiu. O pensamento e a ação política de Guicciardini estavam baseados no discernimento e na prudência. Estudando as coisas tais como elas eram, em sua verdade, ou seja, com discernimento, o homem sábio poderia evitar os riscos da política e agir com prudência, evitando ao máximo os perigos decorrentes das grandes transformações.
Mas o realismo de Maquiavel era de outro tipo. Defendendo como regra o estudo da verità effettuale della cosa (a verdade efetiva da coisa) em vez de sua imaginação, o secretário florentino não suprimia toda imaginação política, mas apenas aquela que não encontrava fundamento na realidade. O compromisso de Maquiavel com a unidade da Itália era, assim, um compromisso com um futuro imaginado e desejado pelo qual estava disposto a combater. Esse não era um amanhã qualquer, e sim um amanhã que encontrava sua legitimidade histórica no fato do dever ser estar inscrito previamente no ser.
Paradigmas do político
Guicciardini e Maquiavel constituem dois paradigmas para o pensamento político italiano. O crítico literário Francesco De Sanctis (1817-1883) tratou desses paradigmas de modo exemplar em dois ensaios. Para De Sanctis, Maquiavel era um homem da transição entre o feudalismo e o mundo moderno que via o medievo morto na consciência, mas vivo nas instituições de sua época. O secretário florentino não procurava no passado a cura dos males do presente. Ele encontrava no passado as causas desses males e por isso, em vez de pensar na restauração do medievo, sonhava com sua demolição.
Para construir esse novo edifício social e político era preciso colocar o homem em seu centro, o homem real, o homem de seu tempo. À negação que o medievo fazia da vida terrena e da verdade da realidade, Maquiavel contrapunha o restabelecimento da vida terrena, de sua consciência e das forças que nela operavam. O homem, desse modo, não era passivo ou contemplativo; era um ser que operava sobre o real, um ser ativo e atuante. O secretário florentino era, assim, “não o filósofo da natureza, é filósofo do homem. Mas seu engenho ultrapassa e prepara o argumento de Galileu”. Filósofo e político, Maquiavel havia inaugurado uma filosofia da ação política.
A posição de Guicciardini era, para De Sanctis, muito diferente. O diplomata florentino enfatizava a separação entre filosofia e práxis e afirmava que “conhecer não é colocar em ato”. Assim, embora Guicciardini fosse um amante da liberdade bem ordenada, da laicização da política, da independência e da unidade italiana, esse amor era platônico. Esse programa era simplesmente abstrato; não impregnava sentimentos vivos e forças operantes; era apenas formado por ideias e opiniões.
O homem sábio definido e defendido por Guicciardini não era, desse modo, um homem de ação. O discernimento não estava voltado a instruir uma prática; ele tornava o sábio consciente dos perigos enfrentados, superior aos seus compatriotas que nada viam ou que viam o que não existia, e cheio de desprezo pelos homens vulgares que não tinham um olhar treinado e uma mente perspicaz como a dele. Mas toda essa inteligência só lhe permitia ser irônico. Nada mais.
Gramsci conhecia e valorizava positivamente a opinião de De Sanctis a respeito desses dois realistas do Renascimento, percebendo neles dois modelos de homem político, ambos realistas: o moderado-conservador e o radical-revolucionário. A oportunidade para o marxista sardo desenvolver essa percepção foi dada pela leitura de um artigo do socialista Paolo Treves, no qual ele manifestava sua preferência pelo realismo passivo de Francesco Guicciardini, em vez do realismo ativo de Maquiavel.
Guicciardini seria para Gramsci um “diplomata” e mesmo um “cientista da política”. Mas Maquiavel era de outro naipe; o secretário florentino era um político. O diplomata e o cientista da política poderiam ter como horizonte uma realidade já constituída. Mas um homem de partido, “um político em ato” teria como objetivo “criar novas relações de forças e por isso não pode deixar de ocupar-se do dever ser”. Era esse o objetivo de Maquiavel: produzir novas relações de força que superassem as antigas, criar um novo Estado. Era um objetivo perigoso, mas esse risco valia a pena correr.
Realidade efetiva
Inspirado em Maquiavel e Marx, Gramsci identificou a íntima relação existente entre o ser e o dever ser da política: “O político em ato é um criador, um suscitador, mas não cria a partir do nada nem se move no turvo vazio de seus desejos e sonhos. Toma como base a realidade efetiva”. O político em ato, tal como Maquiavel, deveria ser capaz de ler a realidade efetiva, a relação de forças existentes e em contínuo movimento. Mas, ao contrário de Guicciardini, que permanecia passivo e, por isso mesmo, não se opunha à reprodução incessante do ser, o secretário florentino fazia sua aposta na transformação. Por essa razão, enquanto o realismo de Guicciardini era conservador, assim como o socialismo de Treves, o realismo de Maquiavel era, para Gramsci, popular, assim como o de Marx.
Para esse realismo popular, a leitura da realidade efetiva tem por objetivo encontrar as possibilidades de transformação realmente efetivas. Não se trata, pois, de conservar, estabilizar ou acomodar-se, trata-se de transformar o mundo. O realismo popular é, assim, capaz de revelar uma realidade que é igual a si própria, mas que contém, ao mesmo tempo, aquilo que lhe é diferente. É por essa razão que, segundo Gramsci: “Aplicar a vontade à criação de um novo equilíbrio das forças realmente existentes e operantes, fundando-se sobre aquela determinada força que se considera progressiva, e potencializando-a para fazê-la triunfar é, sempre, mover-se no terreno da realidade efetiva, mas para dominá-la e superá-la (ou contribuir para tal). O ‘dever ser’ é, portanto, concreto, é a única interpretação realista e historicista da realidade, é a única história em ato e filosofia em ato, a única política”.
Pessimismo e otimismo
A máxima de Gramsci “pessimismo do intelecto, otimismo da vontade” refletia-se de modo diferente no espelho de Guicciardini e no de Maquiavel. Ambos os renascentistas partilhavam o pessimismo do intelecto, mas apenas o último propugnava o otimismo da vontade. Nisso Gramsci estava com o realismo popular do secretário florentino. Onde o marxista sardo se distanciava deste e também de Guicciardini era nas razões para o pessimismo. Para Gramsci, o pessimismo do intelecto não deitava raízes em uma apreciação negativa da natureza humana. A revolução operada pelo marxismo sobre o pensamento de Maquiavel estava justamente na crítica da ideia de natureza humana e na ênfase no caráter histórico do homem e na distinção entre governantes e governados.
Essa crítica permitia desnaturalizar a política, identificando o conteúdo concreto da ciência política com uma
ciência histórica. O realismo de Maquiavel e de Guicciardini estava assentado na constância natural do comportamento humano. Seus estudos históricos tinham por objetivo demonstrar essa constância. A recusa de uma natureza humana fixa permitia a Gramsci livrar-se de uma concepção naturalizada da história sem com isso abrir mão daquela importante sensibilidade histórica que havia marcado os pensadores renascentistas. Também para o sardo a experiência contemporânea e o estudo da história forneciam a chave para a inteligibilidade do presente.
O pessimismo gramsciano do intelecto era, assim, alimentado por seu realismo popular e radicalmente histórico. Ele implicava uma atitude cautelosa na análise das relações de forças econômicas, políticas e ideológicas, bem como na desconfiança de toda tentativa de subestimar o inimigo. Mas seu otimismo da vontade era a contrapartida. Este não se dobrava à força das coisas, agia sobre elas com vistas a transformá-las. Se nos lembrarmos que esse otimismo não foi abandonado sequer na prisão, poderemos imaginar a força das ideias e do homem que pacientemente as produziu.