Quando o Judiciário comemora com a torcida, quem foi derrotado?
Juiz Sérgio Moro na comissão da reforma do Código de Processo Penal (Lula Marques/Agência PT)
É assustadora a forma como o noticiário político tem sido dominado por debates estritamente jurídicos. Os portais da internet, os canais de televisão, as rádios, as revistas, os jornais, todos esses veículos estão tomados pelo debate dentro dos termos peculiares do “mundo jurídico”. Todos temos sido acostumados, há alguns anos, a acompanhar transmissões ao vivo de audiências e sessões de julgamento, durante as quais repórteres se esforçam para explicar, em linguagem mais acessível, o emaranhado de questões técnicas em que se enroscam os figurões da política.
Ao lado dos jornalistas, também é comum encontrar professores de direito que não apenas explicam os casos, mas até mesmo tentam prever os próximos passos dos processos, animando a torcida como fazem os comentaristas (“cornetaristas”, digamos) de futebol nas mesas redondas. E o clima, de fato, é parecido com o das arquibancadas, porque as torcidas da política vibram a cada ponto num 6 a 5 do placar do STF como se estivessem diante de uma final de campeonato. Poderia seguir nessa analogia, porque há até mesmo juízes com a vaidade dos craques mais publicitários, mas encerro lembrando que, às vezes, quando os ministros esquecem o juridiquês e os rapapés, tudo fica ainda mais parecido com a mais violenta e suja “pelada” da várzea.
E por que é assustadora essa onipresença do debate jurídico no noticiário? Porque isto significa que o noticiário está cada vez mais distante da realidade, cada vez mais distante de revelar os interesses políticos que estão por trás dos movimentos que acontecem nos tribunais. Com um jornalismo que se confunde, sem pudores, com a propaganda política e “especialistas” que levam o público para dentro das tramas da técnica jurídica (aulas expressas, ao vivo, sobre embargos infringentes nas turmas do STF…), a percepção do que está realmente em jogo nesses julgamentos é totalmente embaçada para que sobre ao público apenas torcer pelo resultado. Toda uma teia de questões que se reduzem a: vai prender ou não? Vai soltar ou não? Tentar falar em respeito à lei e consequências para outros casos, nesse momento, é pedir pra apanhar.
Todos nós, inclusive os ministros do STF, entramos nesse clima. Só isso explica o fato de uma ministra declarar que, tecnicamente, aquela não seria a sua posição, mas que, naquele caso, decidiria de outra forma… Refiro-me ao voto da ministra Rosa Weber no habeas corpus do ex-presidente Lula. É como se a ministra dissesse: minha posição resultaria em “não prender”, mas a “opinião pública” quer a prisão, então voto de uma forma que resulte na prisão. De “guardião da Constituição”, o STF transforma-se em uma corte que não pode mais aplicar a Constituição quando desagrade a “opinião pública”, a bancada do Jornal Nacional, alguns generais e meia dúzia de editorialistas.
As derrotas, aí, são muitas. E tendem a se multiplicar, porque a consequência natural dessa troca da “jurisprudência” (que pressupõe que os juízes observem, além do texto da Constituição e das leis, a forma como eles mesmos costumam decidir) por uma colcha de retalhos feita no ritmo das conveniências políticas é que, a cada julgamento, os juízes tenham que rasgar um pouco mais as suas togas. Quero dizer: já não importa, para o juiz que aceita essa dinâmica, ser coerente nem consigo próprio!
Se poderíamos acreditar que essa transparência toda, que (alguns) julgamentos ganharam, teria como consequência um maior controle social sobre a atividade jurisdicional (porque os juízes teriam o cuidado de mostrar coerência com as leis e com seus entendimentos anteriores), o que temos, na verdade, é o contrário. A transparência tem significado apenas a exposição dos juízes aos gritos da torcida (até mesmo ao pé do ouvido!), resultando daí, claro, essa figura estranha que é o juiz-herói, o juiz popular, o juiz que “joga pra torcida”, dando decisões como quem marca gols. Sim, um juiz que marca gols, porque sob sua toga está, nem tão escondida assim, a camiseta de um dos times. A propósito, não é por acaso que boa parte dessas pressões sobre o Judiciário se materializou nas ruas com a camiseta da seleção brasileira…
Quando se fala em controle social sobre a atividade dos juízes, devemos lembrar que isso jamais pode ser a imposição do “sentimento social” sobre os juízes, mas apenas a verificação de que os juízes tomam as decisões de acordo com a Constituição e as leis. Se não “gostamos” mais do que dizem a Constituição e as leis, este é outro debate, que jamais deve ser resolvido dentro dos tribunais. É o debate próprio da política.
O direito é uma forma de redução do horizonte político, uma forma de sufocamento da nossa percepção da realidade. Quem já passou por uma faculdade de direito sabe (ou deveria saber) que, durante sua formação, o que se dá, na verdade, é um processo em que o bacharel aprende a identificar no mundo uma infinidade de categorias jurídicas abstratas, que, no fim das contas, se sobrepõem às demais formas de perceber e se referir à realidade, às relações concretas entre as pessoas.
O jurista é o ser que olha para tudo na sociedade com as lentes do direito. É isso que vai ser exigido dele. “Dados os fatos, direi o direito”. Costumo brincar que, lá pelo segundo ou terceiro semestre, o estudante de direito já é alguém que, na cerimônia do casamento, enquanto os demais choram, pensa nas consequências do contrato…
Quando tratamos de política, no entanto, ainda mais num país desigual e em permanente crise, essa piada perde toda sua graça, porque o direito, os tribunais, o noticiário mais e mais jurídico, vão se revelar como o ambiente perfeito para a imposição do poder de um grupo político sobre outro e, no limite, sobre o restante da sociedade, porque nele se concentra a possibilidade de distorcer completamente tanto as questões reais envolvidas nos processos quanto a própria legislação aplicável, para atingir objetivos escusos sob a fantasia de que “a lei é para todos”.
Não. A lei não tem sido, nunca foi e dificilmente será para todos. Quando se escancara a parcialidade com que se dá sua aplicação, o mais provável é que a lei não seja para mais ninguém. Pensando bem, há algo de bom nisso tudo.
TARSO DE MELO é poeta e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. É um dos coordenadores do ciclo de leituras de poesia Vozes Versos (Tapera Taperá) e do selo Edições Lado Esquerdo.