A psicanálise e o sujeito trans
Despatologizar o sujeito trans e outros ensaios lacanianos, do psicanalista argentino Fabián Fajnwaks, é um título cuja limpidez de sentido antecipa seus propósitos. Com organização do Labtrans/UFMG e edição da Scriptum, o livro reúne uma série de conferências e artigos do autor no Brasil, tendo como alicerce a interseção entre estudos de gênero e teoria psicanalítica. O livro será lançado às 11h deste sábado, 19 de agosto, na livraria Scriptum, em Belo Horizonte.
Como aponta a coordenadora do Labtrans, Márcia Rosa, Fajnwaks retoma Lacan para se acercar de uma despatologização da transexualidade, na medida em que, como diz o autor francês, “o ser sexuado só se autoriza de si mesmo […] e de alguns outros”. Assim, Fajnwaks enfatiza, segundo Rosa, “que a psicanálise lacaniana vai além da divisão gozo masculino/gozo feminino e que ela abre passagem para a diversidade de arranjos com a sexualidade feitos pelos falasseres do modo como melhor lhes convier”.
Ao longo de 415 páginas, Fajnwaks – professor da Université Paris 8 – provoca uma transação entre estudos queer e a teoria psicanalítica. Estão em análise, por exemplo, o falocentrismo freudiano e a suposta patologização do sujeito transexual pela psicanálise lacaniana. Fajnwaks retoma a radical subversão de Lacan do conceito primeiro de Nome-do-Pai para afastar qualquer suspeita normativa e patriarcal que sua teoria pudesse verter para autores como Judith Butler, Gayle Rubin ou Paul Preciado.
Para o psicanalista, a relação da psicanálise de orientação lacaniana com os estudos de gênero e queer é de disputa – segundo ele, saudável para ambos. “Para a primeira, porque nos permite negar muitos pontos que não são mal-entendidos, mas desconhecimentos, no que diz respeito à suposta defesa que a psicanálise lacaniana faria da ordem patriarcal, da heteronormatividade e do falocentrismo. Nenhum desses pontos pode ser sustentado desde o ensino de Lacan na década de 1970”, diz o autor. Segundo ele, para a psicanálise, é salutar a crítica queer para atualizar sua posição em relação aos resquícios que possa ter dos preconceitos centrados em qualquer abordagem essencialista, que reencaminha o sujeito para uma eventual inscrição sexual apenas anatômica ou biológica.
Como repercussão do que chama de “laço com a Coisa brasileira”, o livro não apenas compila escritos e conferências sobre estudos de gênero no país como investiga suas manifestações culturais pelo arcabouço psicanalítico. “O que mais me impressiona na cultura brasileira é a possibilidade de combinar inventivamente o que há de mais contemporâneo de que essa cultura se nutre com o que há de mais ancestral, representado hoje pelas culturas indígenas”, diz o autor.
Em “O ancestral e sua borda com o presente”, que analisa o trabalho fotográfico da artista indígena Moara Tupinambá, Fajnwaks propõe um paralelismo possível entre o sintoma freudiano e a ancestralidade – ambos manifestações de um passado que se recusa a desaparecer. “É descobrir que a verdadeira alteridade da cultura brasileira, o verdadeiro Outro do Brasil, não é tanto a cultura europeia ou norte-americana que aí desempenha um papel também por emulação, mas a ancestral cultura ameríndia que foi negada justamente pela civilização-projeto, que procurou dominá-lo e dizimá-lo”, afirma.
Em texto sobre Clarice Lispector, o psicanalista se debruça sobre a linguagem existencial da autora, com aproximações e tensões com o pensamento de Lacan, e explora o veio barroco da língua portuguesa. Ele destaca o lugar que Clarice atribui ao que chama de “o inexpressivo” em A paixão segundo G.H. – “o que sempre foi minha busca cega e secreta”, como escreve a autora. “Este inexpressivo abre-se na linha sub-reptícia que lhe permitiu entrar no espaço que existe entre o número um e dois, entre duas notas musicais, entre dois grãos de areia, entre dois fatos… E esta combinação entre o ancestral e o contemporâneo também ficará nessa linha sub-reptícia que percorre a cultura brasileira”, diz.