Por um novo marxismo

Por um novo marxismo

Em sua filosofia da práxis, Gramsci avançou em uma nova seara do marxismo

Lincoln Secco

Antonio Gramsci era mesmo materialista? Adepto do materialismo histórico (uma “ciência”, na definição de um famoso manual de Stalin), poderia ele ter sofrido “desvios” idealistas em sua obra? Afinal, não é verdade que o jovem Gramsci preferia aderir a pensadores idealistas italianos como Benedetto Croce (1866-1952) e Giovanni Gentile (1875-1944), por exemplo, que aos líderes do socialismo italiano?

O marxismo do tempo de Gramsci apresentava-se, especialmente na Itália, sob a forma de um monismo metafísico que conferia à matéria uma posição determinante na explicação da história. Assim, essa abstração que habitava tão somente as cabeças dos marxistas da Segunda Internacional Comunista tornava-se uma causa concreta e operante. Em oposição ao idealismo, o materialismo era uma reação exacerbada à hipóstase, igualmente metafísica, do Espírito.

A tradução política daquele “marxismo” era o fatalismo, ou seja, a ideia de que a evolução das forças produtivas da matéria levaria necessariamente ao socialismo. Para Gramsci, portanto, a Revolução Russa devolvia, na prática, o espírito vivificador perdido pela teoria. Em 24 de novembro de 1917, publicou no Avanti, jornal socialista de Milão, o artigo “A Revolução contra O Capital”, referindo-se à obra máxima de Marx. Dizia ele: “Os bolchevistas desmentem Karl Marx”, pois O Capital, na Rússia, é o “livro dos burgueses”.

Terminologia

No período do cárcere fascista (entre 1926 e 1937), Gramsci retomou algumas preocupações da juventude, enriquecidas, no entanto, com novas leituras. Ele define o marxismo de Marx, Engels e Lenin como a filosofia da práxis. Poderíamos discutir se usa essa terminologia para demonstrar uma contribuição própria àquele legado ou simplesmente para iludir a censura carcerária.

Na verdade, ele avançava numa seara nova no campo marxista. O fatalismo da Segunda Internacional Comunista, para ele, não estava realmente superado com a Revolução de Outubro. Ao contrário, o próprio marxismo soviético apresentava traços marcantes daquela leitura “materialista”. É nessa chave que podemos entender sua crítica ao dirigente bolchevique russo Nikolai Bukharin nos Cadernos do Cárcere. E é também nessa chave que poderíamos, à revelia do próprio Gramsci, ver quanto Lenin, considerado por Gramsci um dos fundadores da filosofia da práxis, estava imbuído de erros semelhantes, especialmente em sua obra filosófica “Materialismo e Empiriocriticismo”.

Antes de tudo, por que a filosofia da práxis, entendida aqui como o “marxismo de Gramsci”, adotaria Bukharin como seu polo antagônico? Gramsci nada tinha contra a figura política de Bukharin. Viu-o na União Soviética, quando representou o Partido Comunista da Itália (PCI) junto à Internacional Comunista. Indicou a adoção de sua obra na escola do partido italiano. No cárcere, porém, Gramsci escolheu como objeto de crítica a tentativa do ensaio de Bukharin de popularizar o marxismo.

Na organização dos escritos gramscianos, feita depois da Segunda Guerra Mundial, essa crítica ficou diluída porque aos comunistas parecia muito melhor apresentar Gramsci como adversário de Croce e do idealismo italiano, bem como um pensador nacional, voltado para as tradições de seu país, e não como um adversário do marxismo soviético, ainda que fosse o de Bukharin, autor que caíra em desgraça e fora morto nos expurgos stalinistas. Talvez porque o pensamento filosófico de Bukharin se diferenciasse muito pouco da ortodoxia de Stalin.

Estrutura e superestrutura

Em sua crítica, Gramsci aponta para um momento crucial que permite entender o salto que sua filosofia da práxis representou em relação ao marxismo anterior: a questão da relação entre estrutura e superestrutura.

Ao criticar Bukharin, Gramsci nota nele um traço típico do materialismo vulgar dos filósofos do Antigo Regime: a adoção de uma falsa objetividade. Bukharin considera que a técnica determina o desenvolvimento histórico, ou seja, ele identifica a técnica com o conceito de forças produtivas materiais de Marx, estabelecendo uma relação mecânica com a superestrutura política, artística e cultural. Ora, para Gramsci, a correta definição da relação entre estrutura e superestrutura era decisiva para dialetizar o marxismo. Seu problema, essencial para um comunista militante, era encontrar o grau de liberdade dos sujeitos políticos na história. Afinal, por que ser comunista se o desenvolvimento histórico por si só nos levaria ao comunismo?

Gramsci reporta-se à ideia de Marx segundo a qual os homens tomam consciência dos conflitos sociais no nível das superestruturas. Diante da insistência de Bukharin na matéria stricto sensu, a análise gramsciana nega a supremacia de uma determinada concepção de matéria e, de certa forma, rejeita a noção de “materialismo histórico e dialético”.

Para confirmar suas pesquisas, Gramsci relê o famoso prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política (de 1859). Nele, Marx diz que “na produção social da sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social”.

Eis o problema da base e da superestrutura. Seria possível afirmar que Marx colocou a economia (forças produtivas e relações de produção) no lugar do Espírito hegeliano, caindo numa nova forma de idealismo?

Gramsci não concordaria com essa crítica (que de resto havia sido feita por Croce). Para Gramsci, “Marx não substituiu a Ideia hegeliana pelo conceito de estrutura”. Ainda assim, persiste o problema: como a estrutura se torna superestrutura? Ou seja, como uma necessidade histórica se torna liberdade? Como a história econômica se faz também política? A metáfora arquitetônica torna-se claramente insuficiente para dar conta dessas indagações. A arquitetura deveria ceder lugar à história e o substantivo “produção” deveria ceder ao princípio totalizante e de ação de um verbo, “produzir”.

Materialismo e idealismo

Ciente desses problemas da linguagem, entre outros, Gramsci empreendeu a superação tanto do materialismo quanto do idealismo, ambos igualmente metafísicos, pois separam o sujeito e o objeto, reduzindo a história a mero subproduto do autodesenvolvimento de um ou de outro.

O conceituado Dictionnaire du Marxisme, organizado por Georges Labica, indaga em seu verbete sobre superestrutura: pode existir uma base sem ideologia e vice-versa? Ninguém nunca viu uma economia sem sociedade. Portanto, base e superestrutura são conceitos relacionais.

Na análise da relação entre superestrutura e base, corre-se sempre o risco, portanto, de substituir a primazia da Ideia na exposição da história pela das forças produtivas e, assim, recriar uma nova forma de idealismo: o economicismo. A separação operada por Marx (segundo a metáfora arquitetônica de base e superestrutura) é metodológica e não empírica, pois não há economia sem sociedade e nem uma separação mecânica entre infraestrutura e
superestrutura. Para Gramsci, “as forças materiais são conteúdo e as ideologias a forma, distinção forma e conteúdo puramente didática, pois as forças materiais não seriam concebíveis historicamente sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais, sem as forças materiais”.

Gramsci enriquece o prefácio de 1859 com novas determinações ao revelar que Marx não separa base e superestrutura a não ser didaticamente. Só aparentemente a economia se torna uma causa metafísica, um Deus desconhecido que opera a história. A união orgânica de base e superestrutura pode ser obscurecida por sua aparente desunião metodológica. Concretamente, o que encontramos é o bloco histórico, a junção de base e superestrutura produzidas simultaneamente pela ação humana.

Essa definição, naquela conjuntura de tormentas do entre-guerras, talvez seja mais “materialista” do que aquela dos “idealistas de esquerda” que, obscurecidos pela própria vontade, transformaram em tragédias voluntaristas as organizações e as ideologias desprovidas de força material e apoio de massas. E talvez essa definição seja menos abstrata e “materialista” do que a dos últimos marxistas social-democratas que, angustiados entre a vertigem da tomada do aparelho de Estado e a sedução de um poder paralelo na legalidade burguesa, optaram por esperar.

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