Por que dizer fascismo: o centauro de Maquiavel

Por que dizer fascismo: o centauro de Maquiavel
Jovens da Opera Nazionale Balilla, organização juvenil do fascismo italiano (Reprodução)

 

O golpe de 2016, o cenário que o antecedeu e seus desdobramentos tiveram elementos de fascismo. É imperiosa esta demonstração porque tem graves consequências para entender o que é a sociedade brasileira, o seu futuro e em que medida ou como podemos estancar o cruel retrocesso político, social e econômico que vivemos. Dizer “fascista” pode ser às vezes um insulto gratuito. Mas trata-se de utilizar um conceito que tem uma base epistemológica perfeitamente identificável.

Para a Internacional Comunista, de inspiração stalinista, o fascismo era uma “ditadura terrorista aberta, constituída dos elementos mais reacionários, chauvinistas e imperialistas do capital financeiro”. Colhe-se daí o caráter de classe e de ser uma forma de dominação capitalista. Mas havia muito mais complexidades e o conceito ficou pobre quando o dirigente comunista italiano Togliatti mostrou que, para além da noção singela de ditadura sob o capitalismo (concentração do poder, ausência de regras constitucionais limitadoras do exercício do poder, inexistência de direitos e garantias básicas), o que não era nenhuma novidade, havia a singularidade histórica de ser uma forma de dominação apoiada tanto na violência quanto no consenso de parte da sociedade. Para Togliatti isto importava porque a partir daí a estratégia seria operar nos movimentos de massa do fascismo.

Mas essa combinação de coerção e consenso, de um regime de força com ampla base social não apenas indiferente ou alienada, era mais complexa ainda como forma de dominação de classe singular. Porque não se tratava apenas de um apoio de massas que legitimava o regime e sua violência, mas também de uma homogeneização da sociedade segundo o padrão da convencionalidade burguesa, capturando o imaginário da massa para tanto.

Esse processo de homogeneização significava ver a sociedade como um organismo que deveria ser “saudável”.  Tudo que significasse diferença do padrão político e social da civilização burguesa, branca, cristã e ocidental era o mal ou uma doença da sociedade. Daí se construía a desumanização da diferença, o diferente como uma categoria sub-humana que, como tal, podia ser aniquilada fisicamente; podia ser excluída da vida social e não era sujeito de direitos.

Assim, partidos e movimentos sociais de esquerda ou progressistas, etnias, religiões, formas distintas de sexualidade foram excluídos das categorias “normal”, “bom” e “bem”. Essa dominação fascista pelo controle ideológico visando a desumanização do diferente fazia com que ela emergisse sem pudor entre lúmpens, ressentidos sociais, personalidades autoritárias, a pequena burguesia apavorada pela possibilidade de proletarização e que se representava segundo o padrão social burguês.

Posta, assim, sinteticamente, a natureza do fascismo, é possível dizer que encontramos, no Brasil e no mundo, hoje, não um regime fascista clássico e pleno, mas elementos ou características fascistas.

De plano, por exemplo, na política anti-imigração de Trump, cuja retórica se baseia na associação de imigrantes com drogas, violência e criminalidade (ou seja, são doenças sociais, são o mal), o que autoriza o Estado a tratá-los como não pessoas, não sujeitos de direitos, a separar crianças de pais e outras perversidades. O organismo saudável da sociedade americana precisa ser curado da doença.

No Brasil, a base social de apoio ao golpe teve uma clara característica fascista porque é composta basicamente por uma classe média que vê o mundo e se representa de acordo com aquele padrão de convencionalidade burguesa, branca e ocidental e o negro, o pobre, o favelado, os proletários compõem uma categoria sub-humana. A ascensão (ilusória, na verdade) dessa “ralé” ameaça o seu mundo, os seus privilégios e a sua sensação de superioridade étnica, social, cultural e econômica.

No plano estritamente político, a ascensão ao poder de um partido de esquerda que é visto como representante dessa ralé nunca foi assimilado e emergiu como ódio social na primeira oportunidade que surgiu, em 2013. Para a classe média, tal como no fascismo clássico, o diferente é o mal – e é uma doença social. Por isso, expressões como “esquerdopata” (a esquerda como doença) ou “petralha” (a esquerda como o mal ou delinquência) foram facilmente incorporadas e usadas como retórica política, e a ponto de já poderem ser verbetes de dicionário.

O combate à corrupção foi a máscara que encobriu esse fascismo, corrupção que não incomoda minimamente quando flagrada no presidente golpista e nos escândalos de uma gangue lúmpen a serviço do grande capital, que entrega o patrimônio público a empresas privadas e criminosamente as riquezas nacionais ao capital internacional.

Tal como no fascismo clássico é o grande capital o destinatário desse regime de exceção, particularmente o capitalismo financeiro, em favor do qual o regime pós-golpe vai operando uma brutal apropriação de renda pelo teto de gastos sociais, garantindo os frutos da especulação financeira, e ainda a acumulação de renda pelo mecanismo da revogação de direitos e destruição da legislação trabalhista.

Por fim, também como elemento de fascismo, há o papel do Judiciário, composto em esmagadora maioria pela mesma classe média protofascista e filofascista que foi a base social do golpe. É notável a semelhança entre o que vivemos neste momento no Brasil na esfera jurídica e a aniquilação fascista de direitos fundamentais e de garantias diante do poder punitivo do Estado, alegadamente para instaurar uma nova ordem social. A polícia e o processo penal nazistas eram “Volkisch” (palavra que expressa aproximadamente a ideia de etnia e que designa um movimento nacionalista que surgiu no século 19), base ideológica para princípios vagos em nome dos quais preceitos jurídicos iluministas eram afastados para que o processo ou a ação policial não tivessem limites. Entre nós não são postulados “Volkisch”, mas a “moralidade”, a “honestidade” na vida pública que permitem condenar sem provas, obter confissões como condição de liberdade, o que nada mais é do que uma forma sutil e envernizada de tortura porque inflige sofrimento para que o agente do Estado obtenha a prova ou a declaração que pretende. Isto mascara a grande e verdadeira espoliação promovida pela elite, tomando nesse aspecto a análise de Jessé de Souza.

Maquiavel recomendava ao Príncipe ter a natureza dupla de um centauro, meio animal, meio homem. Essa passagem do Príncipe foi utilizada por Gramsci a propósito da relação consenso – coerção. Dizia o florentino que “já foi ensinado aos príncipes (…) pelos escritores antigos (…) que Aquiles e muitos outros príncipes antigos haviam sido criados por Quíron, o centauro, que os guardara sob sua disciplina. Ter um preceptor meio animal, meio homem, não quer dizer outra coisa senão que um príncipe deve saber usar ambas as naturezas e que uma sem a outra não é duradoura”.  

A metáfora é valiosa para compreender qualquer dominação política, pela virtude humana da astúcia e pela força de um animal. O fascismo é a forma mais perversa do centauro porque nele o consenso buscado pela metade homem se apoia no mais profundo irracional da massa para legitimar uma violência sem limites, como a experiência histórica do nazifascismo no século 20 mostrou.


MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP


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