Platero e eu

Platero e eu
O poeta espanhol Juan Ramón Jiménez (Reprodução)

Juan Ramón Jiménez (1881-1958) ocupa um lugar central na conformação da lírica espanhola do século 20. O poeta, que se definia como o andaluz universal, encontra nesse achado conceitual a fórmula capaz de articular uma postura que revelava a tensão entre a identidade particular e as verdades objetivas do mundo. Ao definir-se como andaluz universal, o poeta equilibrou-se entre o permanente esforço do particular sem abandonar o universal, na ação de encontrar o universal graças à identidade.

Sua capacidade de transitar entre diferentes repertórios estéticos foi decisiva para que se configurasse como um poeta singular na tradição moderna espanhola. E é dessa capacidade de trânsito entre diferentes propostas poéticas que surge Platero e Eu, grande representante da relação entre o espaço natural e o da cultura.

Platero é concebido e escrito entre os anos de 1906 e 1912, período no qual o autor sofre sucessivas crises depressivas. Não por acaso Juan Ramón insere o subtítulo Elegia andaluza no livro. A elegia é uma modalidade poética que se caracteriza pelo canto à ausência de um ente querido; ao cantá-la, conjugam-se a ausência e a presença desse ser querido e seu entorno, um tempo pretérito que retorna na prosa poética e se faz presente aos olhos do leitor.

Nascido em Moguer, no sul da Andaluzia, Juan Ramón Jiménez (1881-1958) é uma das principais vozes da lírica espanhola. Sua terra natal o inspirou a escrever Platero e Eu (1914), uma de suas obras mais significativas, ao lado de Diário de um Poeta Recém-casado (1916) e Eternidades (1918). Em 1936, por ocasião da Guerra Civil Espanhola, exilou-se em Nova York e não mais retornou à Espanha. Treze anos mais tarde, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Um ano e meio depois de ser laureado com o prêmio, faleceu em Porto Rico.

Leitura abrangente

É necessário dizer que o autor nunca denominou essa obra como um livro exclusivamente para crianças; não obstante, advertiu para essa via de leitura. Para o poeta, Platero e Eu não tinha um destinatário concreto e preciso (“Este livro, em que a alegria e a dor são gêmeas, como as orelhas de Platero, foi escrito para… não sei para quem!… para quem nós poetas líricos escrevemos… Já que é para crianças. Não lhe tiro nem ponho uma vírgula. Ótimo!”). Esse é um dos motivos que tornam a obra tão abrangente, podendo ser lida por adultos e crianças sob distintas óticas, mas com igual intensidade, cada qual a seu modo.

Ao longo de seus 138 capítulos (a tradução aqui comentada não recolhe os três apêndices que surgirão mais tarde), Platero e Eu reúne consciência estética, moral e social, além de uma pitada generosa de simpatia do autor, que a tradução consegue configurar em sua extensão.

Em seu percurso, o livro oferece um leque de possibilidades de leitura, das quais destacamos duas: pode ser lido tanto como uma obra única, em uma sequência de aventuras do burrinho Platero e do “eu” que nos conta sua história, como uma sequência de contos hermosos e singulares, em que as andanças do poeta e seu burrinho descortinam a beleza da paisagem andaluza e de seus habitantes, suas dores e suas alegrias. Encerrada em um ciclo natural, a narração vai de uma primavera a outra, revelando a beleza de cada estação, bem como distintas maneiras de encarar a natureza local. Associação, emoção e evocação conformam o tripé da realidade que se dilata aos sentidos do leitor.

A presente edição reúne e amplia todos esses elementos em distintos níveis. Oferece-nos ilustrações tão cromáticas quanto a obra de Juan Ramón; expõe-nos uma verdadeira dança de cores em verbo e imagens, configurando uma impressionante união entre a palavra melódica e a imagem naïf (sem ser infantilizada). Revela-nos a prosa poética como uma forma condensada da linguagem, o que converte a tarefa da tradução em uma busca pelo sentido, pelo tom, cores e musicalidade embalados por uma escritura capaz de conjugar a fluidez da prosa com a função poética.

Tradução artesanal

A edição bilíngue garante o respeito ao leitor, que em uma leitura comparativa pode observar e reconhecer a tarefa de titãs de devolver na mesma moeda o conhecimento e a sensibilidade do autor. Trata-se de uma tradução artesanal, em todos os sentidos positivos que essa palavra compreende. O esforço da prática tradutória vai muito além de termos técnicos, para descansar no regaço da perspicácia estilística, capaz de penetrar com acuidade no texto de origem. Fina alquimia de palavras, exercício de busca por uma sinonímia adequada, alcançadas pela perseguição da musicalidade a favor da beleza traduzida em forma de prosa poética. Destreza para poucos.Há, ao longo do livro, pequenos deslizes, como a tradução equivocada de uma palavra, a supressão de uma frase inteira (capítulos XLV e XLIX) e a inconstância na tradução das citações em inglês, italiano e francês. Tudo de fácil solução e que não diminui o trabalho.

Em suas escolhas, a tradução mostra-se como um equilíbrio na corda bamba, que se sustenta entre o bom senso e a sensibilidade. Manter esse equilíbrio requer eleições e uma delas se configura na opção por não traduzir a fala dos diálogos em sua tentativa de emular a dicção andaluza. Escolha difícil que pende para a compreensão da fala, ainda que prive o leitor de elementos fortemente caracterizadores da cadência poética juan-ramoniana. Os trejeitos léxicos do andaluz, que servem para modelar de forma estilística o texto, são tratados como elementos de intradutibilidade e, aqui, o texto perde sua melodia. Mas trata-se de uma escolha e, como tal, deve ser respeitada.

O livro, em seu conjunto, evidencia um fino exercício de dissecação de palavras e imagens. Texto complexo, sem ser complicado.


Juan Ramón Jiménez

Trad.: Monica Stahel
Ilustr.: Javier Zabala
WMF Martins Fontes
296 págs. – R$ 48

(1) Comentário

  1. Livro que marcou-me por toda a vida como embrião formador do eu interior, achei escondido na estante dos livros clássicos de minha mãe, professora de letras, mulher culta, estudiosa, foi-se minha mãe ficaram as lembranças e ensinamentos…

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