Estante Cult | O passado vivo que fala ao moderno

Estante Cult | O passado vivo que fala ao moderno
O filósofo Walter Benjamin (Foto: Reprodução)

 

“Quando me tiveres lido, joga fora este livro, e sai. Gostaria que te tivesse dado o desejo de sair – sair do que quer que seja e de onde seja, de tua cidade, de tua família, de teu quarto, de teu pensamento.”
André Gide, Os frutos da terra
Tradução de Sérgio Milliet

As palavras com as quais o narrador do famoso romance de André Gide dirige-se ao seu interlocutor Nathanaël talvez pudessem servir de epígrafe a qualquer trabalho de cunho biográfico a respeito do filósofo Walter Benjamin, cuja trajetória foi pontuada pelas viagens e pela necessidade premente de partir. É o caso do recém-publicado Experiência e pobreza (Editora 34), do escritor ibicenco Vicente Valero, que se detém sobre a vida de Benjamin em suas duas temporadas na ilha de Ibiza: entre abril e julho de 1932 e abril e setembro de 1933.

Dividido em nove capítulos, o livro trama a passagem insular do filósofo às paisagens das ilhas baleares, ensaiando uma aproximação entre os escritos desse período e a experiência de Benjamin com as paragens e a cultura vernácula da ilha. Sem energia elétrica nem água encanada, com uma economia baseada na pesca e na agricultura praticadas há séculos por seus habitantes, Ibiza é retratada como um ponto de suspensão no tempo, a contrapelo de uma Europa desnorteada pelo progresso e a beirar a guerra. “Um lugar onde a antiguidade podia ser contemplada ainda como um objeto animado, e não como um apanhado de ruínas”, escreve Valero, estabelecendo de partida um locus arcaico e bucólico.

A arquitetura rústica figura como um dos primeiros encantos à aproximação do estrangeiro incauto. Reluz, para Benjamin, a “sobriedade do espaço tradicional, rigorosamente humilde, sem a mínima ambição decorativa e em claro contraste com o sempre pretensioso acúmulo de objetos, característica de toda casa burguesa”. Como se a arquitetura local estivesse para a arquitetura moderna como a aura para a obra reprodutível, ou a arte de narrar para o romance moderno – pois a construção tradicional é provida da tradição e da experiência.

Benjamin desenvolve essas ideias em “O narrador”, de 1936. Porém, quatro anos antes, ouvindo histórias de marinheiros – nos trajetos marítimos para a Espanha e para as ilhas – e causos de camponeses (os dois grupos aos quais, no referido ensaio, o filósofo associa a figura do narrador), ele próprio ensaiou a arte de narrar em contos como “O lenço”, “A viagem do mascate” e “A sebe de cactos”, os quais Vicente Valero analisa brevemente à luz das personagens históricas que inspiraram os escritos benjaminianos. Assim, o pensador alemão mobilizava uma resposta não apenas teórica à extinção do narrador, mas também prática, pela filiação à trama milenar tecida “na substância viva da existência”, como escreveu em seu mais célebre ensaio.

Um desses contos, “O anoitecer da viagem”, coloca em perspectiva um comerciante local que, aproveitando-se do crescente turismo nas ilhas, um paraíso redivivo para a intelectualidade europeia da época, constrói o primeiro hotel da região, impulsionando seu progresso. “Os costumes arcaicos podiam parecer muito atraentes para os viajantes que tinham o hábito de idealizá-los, mas não tanto para aqueles que desejavam alcançar a prosperidade, o conforto e, definitivamente, a água corrente e a luz elétrica. A utopia insular não era a mesma para todos”, reflete Vicente Valero.

Se na ilha Benjamin chegou à “essência de uma viagem: rumo ao passado”, refletiu-o não apenas em seus diários de viagem, que assumiram uma forma integrada à cadeia da tradição oral, mas também nos outros escritos aos quais se dedicou lá: sua Crônica de Berlim e alguns textos que passaram a integrar as séries “Sombras curtas II”, “Autorretratos do sonhador” e “Imagens do pensamento” – voltados, afinal, ao seu passado, à infância em Berlim, cidade para a qual retornou em julho de 1932.

A segunda passagem do filósofo pela ilha, no ano seguinte, já não é benfazeja. À medida que o nazismo ascendia na Alemanha, escasseavam os trabalhos em estações de rádio e jornais, dos quais Benjamin dependia economicamente. Seus anfitriões na primeira viagem, a família Noeggerath, mudaram-se para uma casa mais luxuosa e, com isso, os custos da hospedagem tornam-se impraticáveis para o autor de Rua de mão única. Em situação materialmente precária, ele mudou-se para uma casa em construção. Os ibicencos, que brindavam os turistas com apelidos cômicos, passaram inclusive a chamá-lo de es miserable.

Nessa época, Benjamin escreve o ensaio “Experiência e pobreza”, também a perscrutar ideias que apareceriam em “O narrador”. Não à toa, o ensaio empresta seu título à obra de Valero e serve de linha divisória à sua biografia, quando à primeira passagem do filósofo por Ibiza, marcada pela experiência do antigo e tradicional, sucede a segunda passagem, sob o signo da precariedade. Como a mimetizar a escrita do personagem biografado, feita na ruptura, na brecha, no “fio roto da história”, nas palavras do autor. É um ensaio, inclusive, que sobrepõe à experiência tradicional a vivência do pós-guerra, fraturada pela pobreza. “Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor, para recebermos em troca a moeda miúda do ‘atual’”, lemos no texto de Benjamin, a ecoar provocativamente até as suspeitáveis sensibilidades estéticas do contemporâneo.

Não obstante as tormentas da Ibiza de 1933, quando o filósofo também se viu “atormentado por todos os horrores das atividades de colonização e especulação imobiliária”, esse retorno à ilha foi bafejado por alguns (re)encontros galernos. Com o francês Jean Selz, com quem iniciou o projeto de traduzir a Infância em Berlim por volta de 1900 para a língua de Baudelaire e com quem experimentou a alteração dos estados da consciência promovida pelo haxixe e o ópio; com Paul Gauguin, neto do pintor homônimo, admirável companhia em caminhadas silenciosas; e com a artista holandesa Anne Marie Blaupot ten Cate, a última paixão do filósofo, segundo Vicente Valero.

A presença e o significado de Blaupot na vida de Benjamin não são ignorados pelo biógrafo, que ensaia uma interpretação do enigmático “Agesilaus Santander”, texto dedicado à amada; e que acompanha essa relação mesmo após a volta do filósofo para Paris, em setembro de 1933. Ao pensar na importância de outra mulher que passou por sua vida, a atriz letã Asja Lacis, a filósofa Jeanne Marie Gagnebin pondera a importância do feminino para Benjamin, que “não idealiza as mulheres amadas, mas lhes dá uma força de revelação da própria alteridade em si mesmo”. O texto introduz a nova edição de Rua de mão única, igualmente lançada pela Editora 34, que, apesar de republicar a já famosa tradução compilada em Obras escolhidas 2, gratifica o leitor com um texto de Benjamin e Lacis sobre uma viagem a Nápoles, um escrito memorialístico da atriz sobre o encontro com o filósofo e três críticas ao livro escritas, respectivamente, por Siegfried Kracauer, Ernst Bloch e Theodor Adorno.

Após a última estadia do filósofo na ilha, Valero ainda acompanha sua trajetória por alguns meses e chega, de forma sucinta, a seu final nos Pirineus. Ao traçar as temporadas ibicencas de Benjamin por meio de depoimentos dos habitantes locais e, principalmente, de uma análise detida de suas cartas, diários e livros, o autor de Experiência e pobreza acaba também por pintar com cores vivas sua ilha natal. Algo que fica evidente na estrutura dos capítulos, que cruzam os fatos biográficos e os textos dos quais o filósofo se ocupava à época com informações sobre a vida de personalidades com quem ele se encontrou, direta ou indiretamente, nos meses que viveu em Ibiza – além das já citadas até aqui, como Blaupot, Setz e Gauguin, estão o filólogo Walther Spelbrink, o escultor misterioso Jockisch e o artista Raoul Hausmann.

Por um lado, essa estrutura nos faz pensar no fato de a própria ilha acabar assumindo um certo protagonismo na biografia, pois, além dos tons paradisíacos que se lhe atribuem – um “microcosmo insular” em que se realiza “a perfeita associação entre natureza e cultura” –, importa ao seu autor elaborar um pequeno retrato da sociedade ibicenca da década de 1930, composto não somente por seus campônios, como também por turistas e intelectuais que a descobriram e ali aportavam. Por outro lado, ela remete, de forma sutil, às amizades de Benjamin no período e à importância da paisagem, natural e humana, para o desdobrar de sua obra. Como se, tal as ruínas vivas da ilha mediterrânea, ele apontasse para o espectro de uma experiência pré-industrial, lastreada no gregário, em contraposição ao esfacelamento do social que caracteriza o moderno.

Benjamin capta esse movimento, fazendo do fragmento seu projeto literário e filosófico a contar e contrariar a forma do progresso. O mesmo faz seu biógrafo, que mergulha pontualmente nos anos em que o filósofo esteve em Ibiza para, além de retratar um momento fixo de sua vida, lançar luz à trajetória que ainda estaria por vir. Vicente Valero, assim, empreende a feliz tentativa de coser alguns pontos de uma obra tão fracionária quanto inesgotável como a legada por Walter Benjamin.


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