Os novos modos de morrer são tendência no governo Bolsonaro
Quando a maioria dos eleitores brasileiros resolveu dar um cheque branco a Jair Bolsonaro, em outubro de 2018, não imaginava certamente que uma boa parte do preço a pagar seria cobrado em vidas humanas.
Antes, muitos compraram a ideia de que a política contra o crime urbano proposta pelo candidato – baseada no tripé rédeas soltas para a polícia, aumento da posse de armas de fogo pela população e mão forte contra a criminalidade – haveria de poupar ao menos a vida das “pessoas de bem”.
Quase quatro anos depois e a violência urbana não apenas não cedeu como foi estimulada pelo empobrecimento da população, pelo desemprego e pela fome. E outras formas de morrer ganharam as manchetes dos jornais e os tópicos de destaque das mídias digitais.
Morre-se muito de morte evitáveis neste país, e não é de hoje. Sãos as mortes causadas pela violência do crime, pela ausência do Estado, pela miséria e pela dificuldade de acesso a sistemas públicos de saúde, por exemplo. Neste contexto, governos falharam desgraçadamente por anos, por incapacidade de formular e implementar políticas públicas adequadas. Ou porque não conseguiram enfrentar de modo eficiente o que nos ata à miséria e à pobreza que causam tantas mortes hoje evitáveis em outros cantos do mundo.
Não resta dúvida de que essa sensação de que estamos fartos de tanta violência e morte é um dos fundamentos do sentimento antipolítica que empurrou o país para Bolsonaro. Mas ele, paradoxalmente, não prometia paz, segurança e vida. A sua proposta baseava-se, ao contrário, em força, conflito e morte. Só que morte seletiva, dos que “mereciam morrer” para que as pessoas decentes continuassem vivas.
De fato, o presidente se empenhou nisso, com propósito e método, em uns casos, ou por meio de ações indiretas que só poderiam ter este desfecho. São o caso, por exemplo, do extraordinário aumento da posse e da circulação de armas de fogo no país, dos incentivos a policiais e soldados para que usem cada vez mais métodos letais no combate ao crime ou, enfim, da implantação e do reforço de uma mentalidade na qual a morte se banalizou.
O fato, porém, é que com Bolsonaro não só não diminuem as mais populares formas de morrer e matar neste país, como foram promovidas a destaques três tipos muito particulares de morte, que ocupam cotidianamente o centro da atenção pública.
Antes de tudo, praticamente oficializou-se a morte pela mão do Estado. O legítimo monopólio da violência por parte do Estado foi transformado durante o governo Bolsonaro em autorização para os massacres de suspeitos, algo que as forças policiais vêm realizando com impressionante regularidade. Duas dezenas de mortos como resultado de uma ação policial coordenada deixariam estarrecida a população civil de qualquer país civilizado, mas aqui tais operações são celebradas pela turba bolsonarista e pelo próprio presidente da república como uma demonstração de que tudo está no rumo certo. De fato, a única política pública efetiva de Bolsonaro é a “política de matar vagabundo”, como eles dizem, independentemente de se isso diminui o crime urbano – não diminui – ou se é compatível com o Estado de Direito – não é.
Como se isso fosse pouco, temos a polícia que tortura e mata no varejo, como sempre o fez, mas agora sob o olhar público, sem sequer temer que a violência ilegal seja testemunhada e gravada, porque sabe que tem as costas quentes e o apoio presidencial.
Além disso, em 2020 e 2021 a morte por negligência, incapacidade ou perversidade de quem governa provocou uma tragédia sem proporções na nossa história. Para provar suas convicções estúpidas, anticientíficas e fanáticas sobre a covid-19, e sobre as medidas públicas eficientes para enfrentá-la, quantas pessoas terão morrido nesses anos por falta de vacina? Ou por terem tomado medicamentos inadequados promovidos pelo presidente? Ou por acreditarem em fake news disseminadas pelos bolsonaristas? Ou, enfim, por recusar-se a se vacinar seguindo nisso o presidente negacionista?
Por fim, o governo Bolsonaro será lembrado por um terceiro tipo de morte muita típica, aquela causada pela mão de quem se sente incentivado e protegido por quem governa. Isso já se verifica nas mortes realizadas por forças militares, mas a permissão e o incentivo para matar se estende até os grupos armados e praticantes de ilegalidades autorizadas pela fala pública do presidente. Madeireiros, empresas de mineração e de pesca ilegais em terras indígenas são parte desse contingente de força bruta e apta para a violência, principalmente na Amazônia brasileira.
Bolsonaro inicia o seu governo declarando-se o mais feroz e inescrupuloso inimigo da proteção do meio ambiente em geral, mas particularmente da ideia de preservação da Amazônia. Além disso, declarou o seu particular horror a qualquer proteção e reconhecimento de direitos aos povos indígenas.
Dentre as tantas fantasias baseadas em ignorância e má-fé em que Bolsonaro acredita piamente, está a representação da Amazônia como um Eldorado, uma casca de floresta, ocupada por silvícolas primitivos, recobrindo tesouros que deveriam ser explorados e incorporados à riqueza nacional. Os tesouros deveriam ser extraídos, por inciativa privada, claro, que somos ultraliberais, enquanto os “pobres índios”, civilizados e incorporados à sociedade brasileira. Esta é a visão bolsonarista da Amazônia e se lhes parece uma caricatura é porque, de fato, é uma grosseira simplificação do mundo. A ideologia amazônica do bolsonarismo é, sem dúvida alguma, algo do século 16.
Nessa representação, as únicas forças adversárias do progresso (quer dizer, da exploração de riquezas e civilização dos bárbaros) são hoje instituições públicas, organismos internacionais, ONGs, os próprios indígenas e uma legião de militantes da causa ambiental e da causa dos povos da floresta, que hoje convergem. Essas forças precisam ser incapacitadas e esta é a política pública explícita para a Amazônia brasileira desde o primeiro dia do governo Bolsonaro.
Que se inaugura com a polêmica demissão de um cientista, Ricardo Galvão, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que realizava pesquisas e relatórios públicos sobre o desmate na Amazônia. E continua a sua tarefa com uma bem urdida articulação para desmontar ou incapacitar qualquer órgão ou instituição, ou para exonerar qualquer funcionário público com poder para enfrentar a indústria da madeira, grileiros e invasores de terras indígenas, os interesses e os abusos das mineradoras e da indústria da pesca ilegal, sem mencionar o tráfico que sabidamente funciona em consórcio com tudo isso.
Bolsonaro e seu ministro do meio ambiente, o antiambientalista Ricardo Salles, dedicaram-se com afinco a inabilitar o Ibama e a Funai, as joias da coroa do preservacionismo brasileiro, a atacar a credibilidade de ONGs ambientalistas, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão da CNBB que atua há 50 anos na defesa dos direitos dos povos indígenas, e até da Polícia Federal atuante na região, como declarou esta semana o ex-superintendente daquela força policial no estado do Amazonas, o delegado Alexandre Saraiva. Ele foi exonerado como Bruno Pereira e muitos outros por enfrentar os novos amigos de Bolsonaro, usando para tanto a Lei e a obrigação de servir aos interesses da República.
Desde então, a violência incentivada pela impunidade corre solta na região. Em 2019, o trabalhador da Funai, Maxciel Pereira dos Santos, foi assassinado com dois tiros na nuca. O inquérito nunca foi concluído. Em abril deste ano, a imprensa internacional falou de crianças ianomâmis estupradas e mortas por garimpeiros ilegais.
Por fim, esta semana estamos todos comovidos pelas prováveis mortes de Dom Phillips e Bruno Pereira. Dom era um jornalista que cobria para a imprensa britânica os desmandos das políticas anti-indígenas e antiambientalistas deste governo. Bruno era um ex-funcionário da Funai, indigenista e ambientalista, que já havia sido exonerado por Bolsonaro por enfrentar o crime no mesmo Vale do Javari onde foi assassinado.
Quem os matou sentia-se certamente a favor dos ventos políticos neste momento, o da virada bolsonarista na Amazônia segundo a qual madeireiros, garimpeiros e pescadores ilegais estão do lado certo, enquanto os índios, as ONGs, os ambientalistas e os órgãos como a Funai ou o Ibama representam o lado errado da história.
A bala e o facão, mais uma vez, cumprem o seu destino na “Tragédia Bolsonarista” a que se submeteu o país, e levam mais duas vidas inocentes e preciosas para a causa humanitária. Completa-se assim a moldura. O bolsonarismo, não por acaso, inaugurou a sua aventura eleitoral, em março de 2018, com o assassinato de duas pessoas que atuavam na defesa de direitos civis das populações das periferias metropolitanas do país, Marielle Franco e Anderson Gomes; agora fecha o ciclo, em junho de 2022, com a morte de duas pessoas que atuavam na defesa dos direitos e dos interesses dos Povos da Floresta e do Meio Ambiente, Dom Philips e Bruno Pereira.
O governo Bolsonaro passará, como passou a ditadura militar. Não sem antes, porém, deixar como legado um rastro de morte e dor que marcará a nossa breve e frágil história republicana como uma chaga.
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Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP). Twitter: @willgomes