Os liberais brasileiros e seu atávico medo da democracia

Os liberais brasileiros e seu atávico medo da democracia
Carlos Lacerda e Aécio Neves (Arte Revista CULT)

 

Uma das mais importantes inovações do pensamento moderno é a noção de história linear. Rompendo com a lógica presente na concepção de tempo greco-romana e mesmo medieval, o Iluminismo insiste que a história seria guiada por um devir se desenrolando como uma flecha ao longo do tempo.

Abrimos mão de uma visão mais intuitiva de circularidade, tal como presente na natureza, e passamos a aceitar a ideia de um aprimoramento linear e inelutável. Interessantemente, de forma irônica e talvez mesmo trágica, os desdobramentos recentes em nosso país parecem nos remeter mais à lógica histórica clássica do que à moderna, já que parecemos estar presos a uma circularidade que tende dolorosamente a se repetir a cada 50 anos, mais ou menos, pelo menos no que se refere à nossa experiência política.

De modo concreto, é quase impossível não vermos fortes reverberações dos acontecimentos de 1964 nos eventos envolvidos na atual crise em que vivemos, cujo início se coloca por volta de 2014. Foi então que, logo após do segundo turno da eleição presidencial, o candidato oposicionista Aécio Neves se recusou a aceitar sua derrota no pleito, apesar de ter concordado em participar do mesmo processo, em um gesto claramente golpista que lembra as palavras, também golpistas, de Carlos Lacerda, ao se referir a Vargas, dizendo que o último “não pode ser candidato. Se o for, não pode ser eleito. Se eleito, não pode tomar posse. Se tomar posse, não pode governar.”

Embora dita anos antes do golpe de 1964, a frase expressa nitidamente a lógica que passaria a guiar os auto-denominados liberais brasileiros, que por fim viriam a apoiar uma intervenção militar no país. Da mesma forma que seus antecessores nominalmente liberais, a partir da sua recusa em aceitar os resultados do processo de democrático, Aécio e seus aliados, que passam a boicotar o governo no Congresso, começariam a conclamar seus eleitores, fortemente representados nas classes médias urbanas, para que fossem às ruas demandar a renúncia da presidente democraticamente eleita, ou forçar, de alguma forma, casuística que fosse, sua remoção do posto, por meio de um processo de impeachment.

Os capítulos dessa história são bem conhecidos por todos não sendo, portanto, necessário detalha-los aqui. Caberia somente enfatizar seu aspecto central, qual seja, a recusa em aceitar a vontade majoritária do país, expressa por meio do voto popular. Assim, novamente reverberando atitudes semelhantes quando do primeiro e importantíssimo processo de aprofundamento da democracia formal em nosso país (entre 1945-1964), nossos liberais (de fato, conservadores e elitistas) somente aceitam a expressão democrática da população quando lhes convêm.

Tanto Lacerda como Aécio se recusaram a aceitar que o governo de então, seja esse o de Vargas ou de Goulart, no início dos anos 60, ou de Dilma, mais recentemente, pudesse estar em sintonia com os desejos da maioria da população. Lembremos que, embora seu governo estivesse imerso em uma das principais crises econômicas e paralisias políticas da história do país, Goulart continuava sendo um presidente extremamente popular, tendo obtido três vezes mais votos no plebiscito de retorno ao presidencialismo de janeiro de 1963, do que a quantidade de votos que o haviam elegido vice-presidente em 1960. Da mesma forma, seu partido, o PTB, quase dobrara sua delegação na Câmara Federal nas eleições congressuais de 1962, expressando, portanto, a concordância com a sua agenda de reformas por parte crescente de segmentos da população.

O medo e recusa em aceitar as regras democráticas é, pois, tradição recorrente dos liberais tupiniquins, ainda que os meios pelos quais isso se manifesta variem, incluindo desde operações de natureza militar até a promoção de desinformações, boatos e histeria por seus membros na mídia corporativa. Isso ocorreu tanto no início dos anos 60, como demonstrado novamente pela ação de Lacerda; no final dos anos 80, quando da campanha de terror contra Lula; e mesmo em anos ainda mais recentes, com o o devaneio sobre o suposto bolivarianismo do PT.

A grande inovação na implementação desse ativismo ao longo dos últimos tempos tem sido o uso do aparato formal do estado de direito, de natureza eminentemente liberal, para impedir o funcionamento da própria democracia formal, também de natureza liberal clássica, diga-se de passagem. A manifestação mais clara desse processo tem sido a subversão da lógica acusatória que deixa de presumir a inocência do acusado para deduzir sua culpabilidade necessária quando da existência da suposição de um possível interesse no ato ilícito.

Esse raciocínio invertido – e claramente negacionista – da lógica humanista fundante do pensamento liberal moderno é paradoxalmente exercido por agentes investidos na defesa do próprio estado liberal, que agem nesse sentido, de maneira mais frequente quando da remoção de atores políticos de grande apelo popular, como Lula, do jogo democrático. Subverte-se, assim, mais uma vez, a essência da tradição liberal a fim de que interesses oligárquicos, fortemente arraigados entre os ditos liberais dessas paragens tropicais, sejam defendidos.

O liberalismo clássico pressupõe a liberdade e igualdade de oportunidades para a participação no mercado econômico e arena política. Subterfúgios que impeçam esse exercício democrático, ainda que revestidos de carapaças formais legais ou salvacionismos moralistas de forte apelo emocional, contradizem fortemente a lógica liberal moderna. Já que grande parte da nossa trajetória política é mais circular do que progressista, não seria o caso de que nossos liberais se assumissem, de vez, por aquilo que realmente são: defensores pré-modernos da lei do mais forte e da eliminação da democracia popular?


RAFAEL R. IORIS é professor da Universidade de Denver e autor do livro Qual desenvolvimento? Os debates, sentidos e lições da era desenvolvimentista (2017)

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