O vivo na palavra
(Foto: Divulgação)
Como a palavra se faz eva? Como se torna matriz corpórea, livre no livro de qualquer armadilha livresca, viva pulsação do que vive? Escrito e publicado neste longo período em que a morte ameaça no ar que respiramos, O Vivo, quarto volume de poesia de Adriana Lisboa, também conhecida por sua premiada obra em prosa ficcional, interroga a vida que acende a palavra em seus momentos de incandescência:
eva
como se lavra a palavra
terra
como se pesa
………..se pila
a palavra
como se bebe a palavra
………..água
como se morde a palavra
………..cão
como se livra
do livro
no livro
essa brasa acesa
essa ave brava
essa eva
………..a palavra?
Diferente da Eva da tradição bíblica, a palavra poética é aqui ave brava, não vive para perpetuar, domesticada, apenas o que é humano. Quer engendrar também “tempo/ para devolver a poesia aos répteis”, “o lampejo do corpo” no vaga-lume, o encontro com a não língua afetiva dos cães, o desencontro com as aves que, nas nuvens, “voam para a pátria”, o salto da rã além do poema de Bashô, a labuta rítmica da mosca diante da vidraça fechada: “sua gaia-ciência/seu deus vigilante/seu tempo de vida/o zumbir da sua sina/a redondilha/do seu labor”. No mais refinado artesanato poético, Adriana Lisboa confronta-se reflexivamente ao que pulsa vivo aquém da voz humana, inarticulado em sua animalidade.
No poema que dá título ao livro, o “eu lírico”, quase sempre discreto, quando não ausente, se coloca em primeiro plano para observar, no corpo que respira, o florescer do vivo. E ao observar, observa-se.
o vivo
vivo como se fosse
meu este instante
mas ele não é mais
que canteiro
do vivo
há um animal que em mim
se observa
e segreda ao largo vivo
dentro dele
e por toda parte ao seu redor:
eu – nada mais do que aquilo que habito
este instante
um canteiro
o ar que inventa o pulmão.
Mais do que pensar o vivo pulsar do sensível, trata-se aqui de explorar as possibilidades de uma sensibilidade pensante – esse corpo que pensa e se pensa através do espelho enganoso das palavras, mas também é capaz de mergulhar profundamente nelas. A palavra aparece, assim, como a areia movediça onde a poeta esboça (e borra) fronteiras entre a experiência silenciosa e sensível do vivo e o “eu”, “este acolito que pensa/ o que ele corpo dispensa”, projetando descolamentos auto reflexivos, como no poema “divisa”:
penso versos
em que eu não caiba
enxoto a palavra que
o eu designa
mas vem ela e salta
monossilábica e tônica
para dentro do meu projeto
– haverá sabotagem
(eu se pergunta)
nesse ao redor
nesse céu de tanto azul
nessa mosca pesada e lúdica
batucando a janela?
Como ter certeza de que há
vida para além
da divisa do meu?
– não me atrapalhes (respondo)
não te pertenço
não me pertences
basta a confusão de achar
que te habito
no instante em que escrevo isto
como se o meu pronome fosse eu
Segundo a poeta Claudia Roquette-Pinto, que escreveu o prefácio incluído no volume, “O Vivo é um livro de flagrante inquirição metafísica e metalinguística, que tem o corpo como bússola e a linguagem como algo de que se desconfia”. Nele, a própria saudade, temática poética tradicional, não é “da ordem do tempo”, mas pertence ao espaço vago; renova-se e reaviva-se assim, no poema “obrigada por perguntar”, como “algo da equipe do corpo”, com “seu acervo de cheiro e ruído/seu buquê de seiva e voz”. Poesia intensa em sua aparente simplicidade, convida a “celebrar – dentro e fora de nós – o que pulsa e ‘torna-se novo’”, nas palavras da professora e poeta Prisca Agustoni, que assina a orelha.
Além destes dois ótimos textos críticos citados, a edição caprichada inclui ainda uma belíssima imagem de capa, obra da artista plástica Mariana Palma, que mistura imagem fotográfica e pintura. Mesclando o natural e o artificial, o orgânico e o inorgânico numa composição delicada, seu trabalho também dá muito o que pensar em torno “d’O vivo”.
Patrícia Lavelle é poeta e professora de Teoria literária na PUC-Rio, fez doutorado em filosofia na EHESS-Paris.