O teatro, um documento do real; o Estado de direito, uma ficção

O teatro, um documento do real; o Estado de direito, uma ficção
Cena do espetáculo "Mateluna" (Foto: Felipe Fredes)

 

 

 

Mateluna, com texto e direção de Guillermo Calderón, é um espetáculo que discute os conceitos de verdade e representação, convertendo a experiência estética do teatro em um exercício de prontidão ética dos mais originais. Não se trata aqui de invocar a velha ciência grega da conduta pelo viés do que ela se tornou hoje em todas as sociedades do mundo ocidental, um compilado de frases feitas, meias-irmãs da retórica vazia e do entulho discursivo, presentes em toda e qualquer demonstração de indignação farisaica (a expressão é de Antonio Candido), não somente por parte do trabalhador mais humilde como também da autoridade política de maior relevo, mas ausente, de fato, tanto nas ocorrências pessoais mais ordinárias como na vida social mais ampla. A ética em Mateluna nasce do modo muito peculiar como Calderón une teatro e política, cuja associação serve de mote para a contundente investigação que o dramaturgo e diretor, na companhia dos seis atores que estão em cena, se propõe a realizar acerca dos mecanismos de representação da verdade.

Jorge Mateluna, o ex-militante da Frente Patriótica Manuel Rodriguez que permaneceu preso durante doze anos, colaborou em 2013 com a criação de Escuela, o espetáculo em que Calderón tratava das escolas chilenas de guerrilha urbana da década de 1980. Ainda enquanto a peça excursionava, Mateluna foi detido novamente, desta vez acusado de participação em um assalto comum a um banco. Condenado pela justiça após a instauração de um processo repleto de suspeições, o ex-guerrilheiro, que nunca deixou de afirmar sua inocência, hoje cumpre pena de dezesseis anos em uma prisão de segurança máxima no Chile. Entre a estupefação e o amargor, o novo trabalho de Calderón, uma espécie de continuação a fórceps de Escuela, adverte para o fato de a história da prisão de Jorge Mateluna se repetir. Primeiramente, como tragédia política; depois, como farsa policial.

A encenação de Mateluna investe na reprodução de variados modos de representação, seja da história do protagonista, seja do percurso cumprido pelo próprio grupo de artistas durante a elaboração do trabalho, extraindo deles um bem aquilatado equilíbrio entre significados diversos. Inicialmente, representar significa um jogo, operação esta que faz aqui com que as emoções sejam sublimadas para se converterem rapidamente em humor. Desse modo, uma representação assumidamente humorística da história de Mateluna e sobre Mateluna é moldada no fluxo inicial do jogo teatral, arte transgressora por excelência, nunca é demais lembrar, quer do senso comum, quer dos discursos oficiais. A atitude humorística, como lembra Elias Thomé Saliba, em Raízes do riso, partilha o espaço do indizível, do não dito, e constitui uma ética tanto do descompromisso como da liberdade. “A representação humorística”, afirma o historiador, “é o esforço de desmascarar o real, de captar o indizível, de surpreender o engano ilusório dos gestos estáveis e de recolher, enfim, as rebarbas que a história, no seu constructo racional, foi deixando para trás”. Ocorre, entretanto, que a segunda prisão de Jorge Mateluna é por demais recente e ainda carece de ser compreendida pelo distanciamento da razão.

Cena do espetáculo “Mateluna” (Foto: Felipe Fredes)

Assim, o espetáculo logo sai da esfera do humor para adentrar o terreno da ironia, a velha arte das profundidades ou das alturas, que priva do sentido de dissimulação, de ocultamento daquilo que na verdade se tem ou se sabe. A experiência irônica em Mateluna se dá, então, a cada vez que a encenação leva o espectador a observar os volteios teatrais que o mundo da polícia, em sentido estrito, e o mundo da política, em abordagem mais ampla, deram para atender aos interesses da ideologia, porque a ironia, segundo D.C. Muecke, em Ironia e o irônico, “não é apenas alguma coisa que acontece; é alguma coisa que pelo menos pode ser representada acontecendo”. É por meio desse movimento ativo que o teatro político de Guillermo Calderón acaba se propondo a ludibriar um discurso ideológico que não tem outra intenção senão o ludíbrio de nossa inteligência – o que leva a peça ao exercício de um outro registro, o do absurdo, experimentado entre as sensações de perplexidade e aflição. Absurdo advém das formas gregas “atopon” e “adynaton”, significando, respectivamente, “fora de lugar” e “impossível, porque contraditório”.

Mateluna, então, se assume como um espetáculo errático, somente concebido por ter havido um erro histórico, que deixou dramaturgo e atores atônitos, estupefatos, erro este captado por eles ainda em sua flagrante contemporaneidade. Ao teatro aqui cabe denunciar que a crença que devotamos à razão não corresponde aos resultados do engano, da incompreensão, do malogro que é vivermos em Estados democráticos de direito nos quais a lógica humanista que sustenta a cidadania é violentamente solapada pelo caráter arbitrário do Estado policial. Justiça e manifestação do poder – sob esse aspecto, Mateluna soa tão atual para o que vem ocorrendo no Brasil – compõem um binômio absurdo, de tipo kafkiano, o primeiro escritor, segundo Luiz Costa Lima, a produzir uma ficção (O processo) que demonstra o quão ficcional se tornou o Estado de Direito na modernidade. Guillermo Calderón e os seis intérpretes do espetáculo corporificam o objetivo mais verdadeiro que todo teatro político se propõe a atingir: o de desmontar as ficções que nos envolvem, enredam e podem até nos aniquilar.

Texto originalmente concebido para publicação no site da 4ª MITsp

Mateluna
Onde:
 Teatro João Caetano, R. Borges Lagoa, 650, Vila Clementino, São Paulo
Quando: Até 21/03, às 21h
Quanto: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia entrada)

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