O riso de Montaigne

O riso de Montaigne

Nos Ensaios, Montaigne descreve sua própria experiência, esperando que o riso traga emenda à vaidade humana, fazendo-a ciente de sua inconstância 

Silvana de Souza Ramos

 As reflexões de Montaigne sobre a consolação mostram o caminho construtivo de uma filosofia capaz de articular, de maneira inédita, a vida e o exercício do pensamento. Montaigne não era um filósofo acadêmico e jamais se preocupou em instruir o público no conhecimento de algum assunto específico. Por isso, é difícil enquadrá-lo numa corrente filosófica tradicional, embora seja possível analisar o sentido de suas interrogações, na medida em que deixamos de mascará-las com preocupações que não eram as suas. Esse procedimento interessa não só porque nos aproxima do caráter peculiar de sua filosofia, mas também porque nos esclarece acerca de sua proposta ética, ancorada numa visão singular do homem.

Não tendo nada de específico para ensinar, nenhuma ciência para defender, Montaigne dirige-se ao leitor dos Ensaios com a afirmação: “Sou eu mesmo a matéria de meu livro”. Mas o que significa tomar-se a si mesmo como assunto? Qual a legitimidade dessa empreita? Não se trata de um procedimento apenas retórico, na medida em que a decisão de descrever-se publicamente encontra sua gênese na experiência da perda e na consequente melancolia que a acompanha. Antes de se tornar escritor, Montaigne havia sofrido a morte do pai – a quem amava resolutamente – e, ainda, a perda repentina do amigo La Boétie, em cuja companhia encontrava não só o prazer da amizade, mas principalmente sua própria identidade. Acometido pela melancolia, o filósofo retira-se da vida pública – onde exercia cargos importantes na política francesa – e decide se consolar na companhia privada dos livros nos quais busca estímulo para suas reflexões.

Melancolia e criação

Poderíamos reconhecer nesse roteiro a ocasião para uma leitura psicanalítica da decisão montaigniana de escrever: a morte do pai e do melhor amigo produzem uma dor tão profunda que precisa ser canalizada – ou “sublimada” – por uma ocupação capaz de ajudar a vencer a tristeza. Entretanto, ao fazer isso, perderíamos de vista o fato de que Montaigne era ciente do lugar ocupado pela escrita em sua própria biografia e, mais que isso, sabia que os Ensaios assumiam um caráter terapêutico inédito, já que visavam aplacar a dor com uma eficácia nunca encontrada nos procedimentos asseverados pelos antigos. Por um lado, isso significa que não precisamos de conceitos da psicologia ou da psicanálise para encontrar nos Ensaios uma aliança fecunda entre sofrimento e criação. Pelo contrário, já na primeira edição de seu livro o filósofo deixa claro que pretendia colocar no papel os devaneios produzidos em seu espírito, para infundir-lhe uma constância virtuosa. Por outro lado, o relato de Montaigne nos dá acesso a uma compreensão precisa da experiência dos afetos e de como podemos lidar sabiamente com o sofrimento e com as mazelas da finitude.

A sabedoria estoica

Comumente, a perda exige uma reflexão sobre a condição humana, especialmente no que diz respeito à sua fragilidade. O momento do luto nos coloca diante da inevitabilidade da morte e da aparente contingência dos eventos que a trazem à cena. Para aplacar esse sentimento de despropósito ou de ausência de sentido, o pensamento estoico produziu uma reflexão potente acerca do papel da filosofia, no que diz respeito à consolação das dores que acompanham a visão da morte e da experiência do infortúnio. Afinal, como construir uma vida virtuosa e feliz, sabendo-se finito e sujeito às aflições mais diversas? Como manter-se firme e equilibrado diante da doença, do exílio, da injustiça ou do luto?

Para o estoico, só há um caminho possível: compreender a racionalidade e a necessidade dos eventos. Isso permite aceitar a inevitabilidade dos acontecimentos e o fato de que não podemos consequentemente alterá-los. Pelo contrário, devemos contribuir para que a natureza siga seu curso, já que não está em nosso poder infundir-lhe outra via. Não há como tornar-se senhor do exterior, embora seja possível conformar-se internamente às peripécias da vida. Sendo assim, aceitar a necessidade da morte, por exemplo, implica abster-se do medo que ela poderia provocar, pois a compreensão pode nos trazer consolo e tranquilidade diante das vicissitudes a que estamos sujeitos.

Mas por que o homem muitas vezes não consegue vencer o medo do infortúnio? Isso se deve ao desconhecimento da ordem natural das coisas: aquele que ignora a necessidade é constantemente pego de surpresa e se sente despreparado para vencer a dor e evitar o medo. O sábio, ao contrário, antecipa pela reflexão tudo que poderia atingi-lo. Sendo assim, o estoicismo dá à filosofia uma tarefa crucial: filosofar é aprender a morrer, isto é, a reflexão é o caminho encontrado pelo sábio para precaver-se do infortúnio. É claro que não poderá evitá-lo, mas será capaz de aceitá-lo com naturalidade e sem temor.

 Um riso que liberta

Montaigne conduz sua própria filosofia por um caminho teórico simetricamente oposto ao dos estoicos. Em vez de defender a seriedade do sábio – indiferente ao infortúnio e impermeável ao apelo das paixões –, o filósofo prescreve um método mais ameno e compatível com sua própria compleição. Descrevendo a si mesmo, em seus Ensaios, Montaigne encontra apenas inconstância e desordem. Num primeiro momento, acredita que a reflexão possa apaziguar a inquietude de seu espírito. Fiel às lições do estoicismo, tenta mirar o exemplo do sábio, para segui-lo em sua virtude. Porém, logo percebe que o mandamento estoico de contemplar sem cessar a face da morte não traz tranquilidade, apenas torna ainda mais sombria uma vida já carregada de obscuridade. Por isso, conclui ser impossível apelar para a força interior, no intuito de resistir ao tormento das ameaças exteriores. Pelo contrário, a severidade imposta pela moral estoica parece mais entristecê-lo do que elevá-lo ou apaziguá-lo.

Que fazer, então? Aceitemos, diz o filósofo, a inconstância dos homens e a contingência dos valores e dos assuntos terrenos. Vejamos o homem naquilo que ele realmente é: volúvel, passional, inquieto, preguiçoso, petulante, frágil… Devemos condená-lo? Esperar que ele recupere sua essência perdida ou desfigurada pelo vício? Nada disso: a solução de Montaigne não condena nem enxerga na condição humana os signos da decadência, pois o filósofo não julga o homem comparando-o a um ideal de virtude distante da vida concreta. Não se trata tampouco de dignificá-lo, lamentando sua fragilidade. O homem localiza-se entre a besta e o anjo, entre a pureza do espírito e a completa animalidade. Se as paixões o comovem, se parece impotente diante da dor e ainda assim espera elevar-se a um ideal inatingível, cabe ao filósofo fazê-lo enxergar-se em sua inútil vaidade.

Segundo Montaigne, é preciso compreender qual o afeto capaz de mobilizar um juízo certeiro a respeito da condição humana. O filósofo lembra que a tradição antiga legou duas posições exemplares: a de Heráclito, para quem a miséria dos homens causava piedade a tal ponto que se sentia incapaz de andar pelas ruas sem cair em pranto, e a de Demócrito, o qual, achando vã e ridícula nossa condição, só saía em público com um semblante zombeteiro e risonho. Montaigne prefere o segundo, não porque seja mais agradável rir do que chorar, mas porque o lamento valoriza o objeto de sua consideração além do que merece, ao passo que as coisas das quais rimos são consideradas no pouco que valem. Há no homem mais variedade e tolice do que infelicidade e maldade: se a dor o atinge, se o infortúnio o surpreende, é mais sábio rir do que chorar, pois o riso tira o peso dos acontecimentos e desvia o espírito para pensamentos leves e propícios à distração. Nossa história é mais cômica do que trágica e é segundo seu caráter ridículo que merece ser narrada. Por isso, os elementos grotescos e disformes atravessam os Ensaios, mesmo quando o assunto parece digno de lamento. Assim, Montaigne descreve sua própria experiência, esperando que o riso traga emenda à vaidade humana, fazendo-a ciente de sua futilidade e inconstância.

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