O pensador que engajou a filosofia na política
Edição do mêsO filósofo Jean-Paul Sartre (Reprodução)
Centenários não significam nada, em si mesmos. Servem apenas de pauta a jornais. Não é porque alguém completa um século que sua obra continua – ou não – viva. Parece ser esse o caso de Sartre (nascido em 1905), que perdeu muito do peso que teve em meados do século 20. Embora alguns continuem a celebrá-lo, e uma diretora se surpreenda ao ver lotar um teatro para a representação d’O Diabo e o Bom Deus, em São Paulo, essa surpresa já diz tudo. Sartre não tem o impacto que já foi seu.
Mesmo assim… uma honra ninguém lhe retira: ele mudou a relação do filósofo com a política. Antes dele, antes de 1945 e da fundação da revista Les Temps Modernes, foi parca a ligação que tivemos dos filósofos modernos com o mundo democrático. Houve Marx, houve alguns filósofos britânicos e um retumbante silêncio do pensamento continental europeu ou do analítico.
Com Sartre, a coisa muda de figura. Com a tese do engajamento (que no Brasil foi traduzido, por um longo tempo, como empenho e seus derivados: a literatura empenhada, dizia-se), a filosofia inicia uma ligação forte com a política democrática. O presente dossiê, com cinco pensadores do último meio século tratando de como a filosofia age na política, seria impensável sem Sartre.
É claro que, antes de Marx, tivemos Rousseau, pensador democrata como poucos, e Locke, filósofo liberal, mas nenhum deles escreveu no interior de um ambiente democrático. Aliás, uma das críticas dos liberais a Rousseau é que ele radicalizou sua teoria justamente por escrever na ausência de uma política democrática: no Antigo Regime francês, o papel dos intelectuais – ou do povo – na definição das políticas de Estado era baixíssimo. O que nos interessa, portanto, é: desde que começa a democracia moderna, quem filosofa a seu respeito?
Ora, desde que começamos a ter democracia e salvo as exceções que já mencionei, o vínculo da filosofia com ela é hostil (Schopenhauer, Nietzsche) ou fraco, quase inexistente (o melhor que se pode dizer, em favor do Heidegger, reitor de Freiburg que bradava Heil Hitler, é que ele não entendeu bem o que era o nazismo). Como fica então a questão do filósofo que, não apenas enquanto cidadão, mas na qualidade mesma de pensador, é democrata? Como fica a própria questão da filosofia política, que deixa de dizer o que um grande Ele (o rei, o imperador) pode ou deve fazer, para enunciar o que nós, cidadãos, incluindo o pequeno ele/eu que é o próprio filósofo, podemos ou devemos fazer?
Pois há pouco a respeito antes de Sartre. Ele mesmo não é um filósofo político de primeiro momento – tanto assim que permanece em Paris sob a ocupação nazista: se estivesse mais carimbado à esquerda, talvez não pudesse, por exemplo, estrear peças de teatro naquele período (“Durante a Ocupação, fui um escritor que resistia, não um resistente que escrevesse.”). No entanto, sua filosofia não é estranha à sua política. Antes de mais nada, talvez, porque afirmou várias vezes que desejava escrever uma grande obra que seria uma ética. E essa ética jamais esteve longe da política.
Tomemos umas ideias elementares do existencialismo sartriano. Se para Heidegger o homem é um ser para a morte, e sua angústia a isso se vincula, para Sartre o que nos angustia é a ação. Daí, por sinal, a explicação de algo à primeira vista complexo, que é a tese de que Deus não existe. Essa ideia não se confunde com o mero ateísmo. Deus não existe porque não tem existência: existir é sair para fora, é -“ex-istir”. Ora, Deus – se Ele é 1– é essência. Ora, o homem existe justamente porque não tem essência. Essa, a grande diferença entre nós e Ele. Por isso, o homem é sua ação: é o que faz. De ninguém se pode dizer, antes de concluída a sua vida, que é ou foi tal coisa. Somente sua morte o arremata, somente ela lhe dá um ser.
Espantará então o caráter trágico que perpassa a obra de Sartre? Essa ideia que acabo de resumir toscamente – que não se pode dizer nada de conclusivo sobre ninguém, antes de sua morte – ecoa estranhamente os últimos versos do Édipo Rei, de Sófocles. A tragédia começou – como não-tragédia, como o apogeu, quase a apoteose, do rei Édipo – com ele prometendo enfrentar e resolver o problema terrível da peste que se abate sobre Tebas. E termina com o coro proclamando: “Ora vede, habitantes de Tebas, minha? pátria! Esse Édipo que adivinhou o célebre enigma; esse homem tão poderoso que nunca invejou as riquezas dos cidadãos, por qual tormenta de terríveis desgraças foi derrubado! É por isso que, aguardando o dia supremo de cada um, jamais, antes que um homem nascido mortal atinja o término de sua vida sem haver sofrido, jamais afirmeis dele que foi feliz.”
De ninguém se pode dizer que seja feliz antes que tenha morrido, afirma o autor da mais conhecida das tragédias, daquela que no entender de Freud resumia todas as outras; de ninguém se pode dizer que seja, antes de morrer, afirma nosso filósofo. Um vazio assim se insinua, uma precariedade no âmago do humano. Vejamos a tragédia talvez mais forte de Sartre, As Mãos sujas, em que discute como o intelectual se mete na política e como isso exige que suje as mãos. Hoederer, o personagem positivo em face do pobre Hugo, diz-lhe, com um desdém não desprovido de afeto: “Como você se apega a sua pureza, meu menino! Como tem medo de sujar as mãos. Pois bem, fique puro! De que isso lhe servirá, e por que está entre nós? A pureza é uma ideia de faquires e monges. Vocês, intelectuais, anarquistas burgueses, a usam como pretexto para não fazerem nada. Não fazer nada, ficar imóvel, apertar os cotovelos contra o corpo, usar luvas. Mas eu tenho as mãos sujas. Até o cotovelo. Eu as mergulhei na merda e no sangue”.
Mas Hugo aprende. Aprende muito. Mata Hoederer, como lhe haviam ordenado os líderes de sua facção no Partido Comunista “da Ilíria”, o país mítico em que se passa essa história, só que o mata por uma bobagem, não mais por uma missão política, mas por ciúmes de sua mulher. E, o que é um arremate bem sartriano, quando no final da história os comunistas lhe perguntam se renegará o ato que cometeu, contra um Hoederer que a essa altura o Partido transformou em seu grande ídolo martirizado, ele grita: “Non récupérable”, o que podemos traduzir como “Não, eu me recuso a ser recuperado, a renegar o que fiz, a trair meu ato ainda que imbecil e sem razão”. O que ele fez, fez dele quem é. Sua ação constitui o seu minguado ser. Morre por fidelidade a ela. A tragédia tem parte com a morte, e tem parte – isso, talvez o que é mais sartriano nela – com a ação.
Agir o que é, então? É também renegar a boa consciência produzida a baixo preço. Numa passagem das Memórias de uma moça bem comportada, Simone de Beauvoir conta que, logo após conhecer — o igualmente jovem – Jean-Paul Sartre, ele demoliu, numa tarde, sentados ambos a uma mesa de café, a moral que ela havia construído para si. Duro, ele sempre foi, em especial com os salauds, os porcalhões (para preservar, na tradução, a sujeira do original). O ser humano é “condenado a ser livre”; negar isso, culpando, por exemplo, nossas paixões ou pulsões, é má-fé. A má-fé é fugir da liberdade, é negar a responsabilidade. Mas como isso se articula com a preocupação política? Pela ideia de engajamento.
A leitura mais superficial do pensamento de Sartre diz que ele defendia o engajamento. Isso é impossível. O engajamento ocorre, queiramos ou não. Nossa ação nos define; nossa inação também. Calar-se diante da injustiça é endossá-la. Daí que a diferença não seja entre o político e o apolítico: este é uma impossibilidade. Tudo é de algum modo político. E assim a preocupação política vai crescendo na obra de Sartre. Torna-se particularmente forte com o final da guerra. Les Temps Modernes, durante anos, informarão que não aceitam colaborações dos condenados à morte por colaboração com os nazistas (como se algum deles quisesse escrever! Bastante improvável).
Mas a esperança de uma França melhor logo se desfaz. Num filme de 1972-73, Français Si Vous Saviez, registra-se a lembrança de um líder da Resistência no sudoeste do país que acolhe de Gaulle depois de terem expulsado os alemães: “General, o que vamos fazer com esta França que libertamos?”. E espera ouvir que será um país mais justo, democrático. Mas de Gaulle lhe responde: “Rentrez chez vous, voltem para casa, que cuidaremos disso”. As esperanças caem e a Quarta República, que se forma no pós-guerra, tem uma chaga terrível – a guerra colonial.
É a questão das colônias que vai de certa forma governar a reflexão sartriana, bem como a vida política francesa, nos quase vinte anos que se seguem. Poucos meses após a rendição alemã, a frota francesa ataca a jovem República Democrática do Vietnã, que Ho Chi Minh havia proclamado com um belo texto que cita Thomas Jefferson. Mal termina a guerra da Indochina em 1954 e a Frente de Libertação Nacional inicia a guerra pela independência da Argélia – guerra essa que terminará por aniquilar a Quarta República e devolver o poder a de Gaulle. O general saberá dar independência às colônias e finalmente à própria Argélia, mas foram duas décadas de colonialismo pesando sobre a França. Os efeitos disso foram trágicos para a esquerda – e para a filosofia e para a própria amizade de Sartre com seus mais importantes companheiros, Albert Camus e Maurice Merleau-Ponty.
A razão para o corte é mais ou menos a seguinte: Camus e Merleau-Ponty serão muito sensíveis à sistemática supressão da liberdade efetuada no mundo soviético. Sartre, por sua vez, verá com repulsa a repressão – também sistemática – que os poderes colonial (como a França) e neocolonial (Estados Unidos) fazem sobre os povos mais pobres do mundo. Podemos dizer hoje que todos tinham razão – o que, mais uma vez, é do cerne da tragédia: esta consiste na impossibilidade de uma síntese, de um ponto de vista que não seja mais ponto de vista, que se torne universal, que integre num todo cada consideração em particular.
É verdade que o comunismo foi ditatorial, mas também é verdade que foi a única força política importante a defender a causa dos povos colonizados. É verdade que as democracias francesa, britânica e norte-americana tiveram um papel odioso no trato com o Terceiro Mundo, mas também é certo que evoluíram a partir disso, por mostrarem um respeito à liberdade, pelo menos doméstica, que faltou em outros cantos do mundo. Daí que Sartre tenha, em que pese a decepção com a invasão soviética da Hungria em 1956 (ver seu O fantasma de Stalin, que escreveu logo depois), mantido uma relação de certa proximidade com o PCF até a decepção definitiva de 1968, quando ficou claro que o Partidão francês jamais faria a revolução socialista, nem mesmo se ela lhe viesse pronta.
Qual papel resta então ao intelectual? Sartre será fortemente criticado pelo estruturalismo. Este o atacará em função, sobretudo, de sua crença na consciência; o que caracteriza as estruturas é que, nelas, a consciência pesa pouco. Ora, a consciência é relevante em toda a ética sartriana – e funda uma política que não rompe com a ética, porque mesmo chafurdar-se no sangue e na merda é uma forma de ir mais longe que a falsa ética da má-fé, aquela de quem se contenta com fazer o bem aos próximos mesmo que o preço disso seja fazer enorme mal aos distantes (aos colonizados, por exemplo, ou aos metalúrgicos de Billancourt, o ABC parisiense). Mas não é por aí que Foucault, talvez seu maior crítico dentre os intelectuais politizados (porque em boa medida o estruturalismo merecia a crítica que Sartre lhe fazia, de despolitizar as coisas), foi contra Sartre. É que este, gostasse ou não, assumiu o papel de porta-voz, de consciência moral, de grande voz de um mundo todo.
Quis Sartre esse papel? É difícil dizer, ainda mais a meio século de distância. Uma frase do general de Gaulle responde em parte a essa pergunta. Quando um ministro lhe sugeriu deter Sartre, devido à campanha que ele conduzia em prol da deserção dos recrutas convocados para lutar na Argélia, o presidente disse: “Não se prende Voltaire”. Quisesse-o ou não Sartre, ele era o Voltaire do século 20. Assumia as grandes causas.
Sartre não tinha a ironia de Voltaire – talvez fosse excessivamente sério – mas sua palavra era afiada e pretendia ser justa. Mesmo o que hoje soa injusto nele, isto é, que aceitasse sujar as mãos, que terminasse justificando os meios (a opressão comunista) pelos fins (a luta contra o colonialismo e a iniquidade social), provinha de uma dupla opção: primeiro, pela justiça; segundo, pela verdade. É a verdade que exige assumir que as mãos, sempre, estão sujas (sempre: mesmo as mãos da “bela alma” se sujam, porque ela vive de fingir que não vê a desgraça que inflige aos distantes). Ora, essas duas opções, pela justiça e pela verdade, foram também as de Voltaire.
Daí, para terminar, o enorme paradoxo de Sartre. Ele abriu o mundo da filosofia para uma forma de pensar a política que não existiu antes. Houve, sim, filósofos democratas – na Grécia; houve, sim, filósofos participantes – Voltaire, no Antigo Regime; mas um filósofo que, no cerne de sua filosofia, discutisse a democracia no mundo atual, ninguém antes dele. Com essa abertura, porém, ele não teve posteridade que o reconhecesse como inspirador. A biografia de Foucault por Didier Eribon conta as risadinhas que, em torno do pensador mais jovem, acolheram a participação de Sartre no pós-1968. Lembram a gargalhada da mocinha no Casanova de Fellini, que zomba da tentativa do velho sedutor de, ainda, seduzir. Nada disso nos impede de reconhecer que inaugurou um modo de juntar filosofia, ética, política democrática e tragédia que continua vivo e pertinente.
Renato Janine Ribeiro é cientista político, escritor e professor titular Ética e Filosofia política na Usp