Versão de clássico de Dostoiévski em HQ é obra independente do original, diz autor
O quadrinista André Diniz traduz para os quadrinhos o clássico romance de Dostoiévski (Revista CULT/Divulgação)
Com poucas palavras e em preto e branco: é assim que o quadrinista carioca André Diniz adaptou, para os quadrinhos, o clássico O idiota, de Fiódor Dostoiévski (1821 – 1881), originalmente publicado em 1869. Lançada nesta segunda (9) pela Companhia das Letras, a versão em graphic novel é um calhamaço de 416 páginas que, apesar da falta de texto, não deixa a desejar em termos de narrativa.
“O idiota em quadrinhos é a minha obra, não a de Dostoiévski. Isso pode soar pedante, mas é justamente o contrário”, afirma o autor à CULT. “Ninguém vai ter o que quer que seja da obra original na minha HQ, só Dostoiévski pode dar isso. O que o leitor vai encontrar, e isso sim foi o que me motivou a trabalhar por tanto tempo nesse projeto, é quadrinho com linguagem de quadrinho”.
Um dos maiores romances de Dostoiévski, O idiota narra a história do jovem e inocente Míchkin que, após anos internado em um sanatório suíço para tratar sua epilepsia, volta à Rússia para reencontrar sua única parente viva e, sem querer, acaba se envolvendo em um triângulo amoroso – uma história quase autobiográfica, já que o próprio Dostoiévski também sofria de epilepsia.
Em sua versão, que levou mais de oito anos para ficar pronta, Diniz manteve a história original, mas buscou explorar a narrativa de forma quase exclusivamente gráfica, com inspiração na arte do lubók, espécie de cordel russo com ilustrações em xilogravura. “O que há de mais pobre em um quadrinho é uma página onde cada quadro mostra uma cabeça desenhada com um balão de texto trazendo uma fala enorme. Se for para desenhar diálogos aos quais o desenho nada soma, melhor escrever um romance”, diz.
A quase inexistência de texto funciona bem na criação de Diniz e não atrapalha o fluxo de leitura – nem mesmo em momentos em que o leitor pode se sentir perdido na configuração não-verbal da graphic novel (como em alguns dos ataques epiléticos de Míchkin). A eventual confusão de imagens é proposital, e acaba fazendo o leitor sentir o desespero do protagonista.
No prefácio do livro, o professor Bruno Barreto Gomide, tradutor-chefe do departamento de russo da Usp e autor de Antologia do pensamento crítico russo (2013), explica que a escrita de Dostoiévski – originalmente publicada na forma de folhetins, em jornais e revistas – é essencialmente imagética e descritiva, perfeita para ser narrada de forma visual. Tanto é que, para além da versão de Diniz, O idiota tem versões cinematográficas (incluindo uma de Akira Kurosawa, de 1951) e adaptações para o teatro.
Gomide lembra, ainda, que o próprio Dostoiévski era “um desenhista nada desprezível” e que “seus traços dialogavam, nos manuscritos, com o texto escrito: desenho e palavra conversavam na arquitetura dostoiévskiana”.“É ótima a opção pelo uso parcimonioso da palavra na recriação de um universo literário baseado, ao extremo, no diálogo, no verbo, nas vozes. Surge um Dostoiévski quase mudo, cujos personagens fogem do palavrório incessante e da gritaria, a armadilha histérica em que muitos adaptadores caíram quando tentaram evocar a ambivalência típica dos textos russos”, escreve o tradutor.
Para Diniz, o importante na leitura da sua adaptação é lembrar que ela “não tem a pretensão arrogante de ser uma substituta de O idiota original” – a ideia, ao contrário, é enriquecer o debate sobre o romance de Dostoiévski a partir de uma visão independente do texto. “Ninguém espera que um quadro de Dom Quixote reconte a obra original. O quadro é uma obra arte em si, que teve o clássico como inspiração e ousa ter vida própria. Foi nesse espírito que me atrevi a fazer minha versão do livro.”