Vinte anos com Dostoiévski

Vinte anos com Dostoiévski
O tradutor, crítico literário e professor Paulo Bezerra, que traduziu mais de 50 livros do russo (Foto: Marcio Nunes/Gazeta Russa)

 

O título acima encerra o prefácio do tradutor Paulo Bezerra a Escritos da casa morta, o último volume da coleção de toda a obra ficcional de Fiódor Dostoiévski publicada pela editora 34. O livro, que saiu em dezembro de 2020 (ano em que Bezerra comemorou seu 80º aniversário), era até agora conhecido no Brasil como Recordação da casa dos mortos, mas Bezerra considerou o título pouco adequado, até porque o narrador do livro, o personagem Aleksandr Pietróvich Goríántchikov, não recorda, mas narra no presente seus dias na prisão de Omsk, na Sibéria, depois de condenado por matar sua mulher. Dostoiévski também foi presidiário em Omsk, mas por motivos políticos: na época era militante socialista e supostamente conspirava contra a vida do czar.

Além disso, argumenta Bezerra em favor de sua escolha, não há mortos no livro, mas homens vivos, “vítimas de uma moenda de gente”. O jogo entre o Dostoiévski testemunhal e o Dostoiévski ficcionista chega aqui a uma espécie de limite daquilo que o teórico russo Mikhaíl Bakhtin chamou de “imagem do autor”, que se diferencia tanto do narrador quanto do autor em carne e osso. A presença da morte no título do romance guarda alguma ironia pois o escritor não chegou à prisão com um sentimento de morte, mas de ressurreição. No famoso episódio de 1849, condenado por sua militância política, ele foi salvo da morte no último minuto, diante do pelotão de fuzilamento, numa encenação determinada pelo soberano. Naquele momento Dostoiévski soube que a sentença de morte havia sido revogada e substituída por encarceramento e trabalhos forçados.

“Para mim é totalmente lógico que esse seja o último volume da coleção”, diz Bezerra, que traduziu mais de 50 livros diretamente do idioma russo. Escritos da casa morta sinaliza uma virada na obra de Dostoiévski. Depois desse relato prisional, Dostoiévski passou a lidar de modo diferente com seus personagens. É a transição para a polifonia, conceito de Bakhtin que se refere à fase de plenitude do escritor e presente nos seus cinco grandes romances: Crime e castigo, O idiota, Os irmãos Karamázov, Os demônios e O adolescente, todos traduzidos por Bezerra para a coleção da 34.

 

“Impressiona o caleidoscópio
que ele constrói em Escritos
da casa morta.
É um ensaio
para todos os seus romances
posteriores. Ele começa a
entender ali como era o
povo russo.”

 

 

Embora a condenação de Dostoiévski fosse a trabalhos forçados, sua saúde frágil o fez passar a maior parte do tempo no hospital da prisão, onde escreveu as anotações que deram origem ao livro, contrariando as regras do presídio, mas com a cumplicidade do médico-chefe. “Era uma pessoa bastante culta que tinha lido Gente pobre, o primeiro romance de Dostoiévski”, informa Bezerra. Escritos da casa morta foi publicado entre 1860 e 1862, com recepção calorosa dos leitores russos.

O escritor deixou quase 500 anotações originais escritas nos quatro anos em Omsk e “montadas” em Semipalátinsk, no Cazaquistão, onde cumpriu pena de degredo como soldado raso (e depois sargento) num batalhão de fronteira. As anotações originais foram de grande valia para o trabalho do tradutor porque ali se encontravam os registros da linguagem dos galés, histórias contadas, provérbios e cantos camponeses, que facilitaram o achado de “equivalentes linguístico-culturais para os muitos ditos populares que Dostoiévski registrou”.

As anotações ficaram muitos anos fora do alcance de estudiosos. Em busca da linguagem mais apropriada, Bezerra retornou-as para seu trabalho de tradução. Esse tipo de esforço é uma das características de seus procedimentos para mergulhar nas profundezas da escrita de Dostoiévski. Os personagens do escritor falam muito e de formas muito diferentes, de acordo com seus níveis de escolaridade e posições sociais. Há muita sutileza a ser captada. “Devagar a gente consegue chegar perto”, diz Bezerra. Nessa busca, Escritos da casa morta traz chaves fundamentais para a compreensão de toda a obra de Dostoiévski. “É um projeto de registro elevado, em forma literária, para os quais ele não utilizou todas as anotações”, relata Bezerra. “Muitas foram posteriormente matéria de seus romances. Eu chamo esse livro de laboratório da obra de Dostoiévski”.

O conhecimento da obra completa também traz iluminações. Bezerra aponta que em Escritos da casa morta há uma informação quase imperceptível de que o narrador não teria cometido o crime de que foi acusado. Isso remete a Dmitri Karamázov, que pagou por um crime que não cometeu (pelo menos não diretamente) — o assassinato do pai. Em Dmitri há traços também de um parricida que Dostoiévski conheceu na prisáo de Omsk. “Essas pequenas grandes questões váo aparecendo de forma vaga entre os galés de Escritos da casa morta”.

Bezerra não só tem Bakhtin como grande referência teórica; também traduziu a maior parte de suas obras publicadas no Brasil “A concepção principal de Bakhtin sobre a obra de Dostoiévski é a polifonia”, explica. “Todos os personagens são uma individualidade dona da própria consciência e de suas formas de expressão. Dostoiévski, como um regente, põe todos em contato, com certos pontos comuns e certas concordâncias, senão a trama não iria para frente, mas cada personagem continua falando com sua voz, de acordo com suas convicções e sua formação.”

A captação minuciosa  dessas formas de falar é a chave das traduções  de Bezerra. Uma característica de seu trabalho é recorrer a gírias e expressões populares em português. Para ele, são o  que  há de mais próximo aos  originais.  Uma expressão como “fim de papo”, por exemplo, corresponde quase perfeitamente à correlata em russo (diélo e kontsom), segundo Bezerra. “Devemos sempre lembrar que a tradução é para a língua de chegada”, diz. “É  preciso usar as formas de expressão dessa língua, das mais cultas às mais populares. O grande desafio do tradutor é saber justamente onde essas formas de expressão popular coincidem ou não. A linguagem viva é uma das questões da tradução que, a meu ver, foram negligenciadas durante muito tempo.”

 

“A tarefa não é traduzir língua,
mas traduzir linguagem. Não
traduzimos a letra, mas o
espírito. Aprendi com Bakhtin
que a literatura não opera com
significados, mas com sentidos.
Aí vai uma grande diferença.
Pelo significado você cai na
tentação da tradução literal.”

 

 

E como traduzir o sentido? “A gente aprende com os grandes mestres brasileiros. Do ponto de vista da linguagem popular, Jorge Amado. Numa forma mais estilizada, Machado de Assis. Descrever uma tragédia em três linhas, Graciliano Ramos.”

Quanto à língua de partida, Bezerra não considera indispensável conhecer o idioma russo in loco, citando o excelente trabalho de tradução de Rubens Figueiredo, que nunca viajou para o país de Dostoiévski. O desafio está no interior da obra. “Se eu fosse arrogante sobre meu conhecimento, não teria conseguido traduzir a obra de Ossip Mandelstan, na qual é indispensável conhecer a língua falada.” Bezerra revela que o livro de Dostoiévski mais difícil de traduzir foi O duplo, porque teve que reproduzir a fala de “um quase demente”. O narrador se desdobra em dois. “Há passagens quase intraduzíveis, com frases inteiras sem verbo, às vezes sem substantivos, às vezes só com partículas expletivas.”

“Tem que suar”, resume. O primeiro passo é chegar à conclusão de que aquilo que você está entendendo é de fato o que o autor quis dizer. Essa fase dá pistas sobre o ritmo da fala. Bezerra cita novamente o exemplo de O duplo. “A linguagem é toda truncada. O personagem fala em uma velocidade e muda de repente, o que corresponde provavelmente à estrutura de seu sistema nervoso.” Outro exemplo está em O idiota. Numa das primeiras cenas, o personagem Príncipe Míchkin fala em velocidade difícil de acompanhar, porque está no prenúncio de um ataque epilético. “A genialidade de Dostoiévski, que era epilético, está em passar essa crise para a linguagem.” E assim o tradutor vai “tentando sentir a alma do personagem”. Em O duplo, Bezerra quis apreender o gestual do personagem. “Em certas passagens, o tradutor é também ator.” O segredo é não ter medo do original, e assim encontrar uma linguagem própria para a tradução.

Ao longo das décadas, paira uma ideia de que Dostoiévski foi um grande escritor, mas escrevia mal. Bezerra ri, informando que leu e ouviu frequentemente essa opinião. “É uma interpretação completamente obsoleta do discurso literário. Dizem que Dostoiévski repete palavras insistentemente, mas as repetições dão forma às ideias que são desenvolvidas de modo progressivo.” Bezerra lamenta que alguns tradutores tenham tentado “melhorar” a escrita de um gênio. “Falta bom senso, é uma petulância.”

Para compreender profundamente a polifonia e a voz de cada personagem, Bezerra desenvolveu um método que agradava muito a seu mestre, Boris Schnaiderman. “Depois de ler o romance várias vezes, mas antes de começar a traduzir, eu leio separadamente as falas de cada personagem, do início ao fim. Assim tenho uma ideia da singularidade de cada fala.”

Retrato de Fiódor Dostoiévski, de 1872 (Pintura de Vassili Perov)
Retrato de Fiódor Dostoiévski, de 1872 (Pintura de Vassili Perov)

“Quando eu falo de teoria da tradução, afirmo que não basta conhecer a língua. É necessário entendê-la como expressão da interioridade”, afirma Bezerra. Com isso, ele confirma a ideia de Schnaiderman de que não há tradução definitiva. “Cada tradutor recebe o texto individualmente.” Para Bezerra, o tradutor é um mediador entre o texto original e o público leitor. No caso das traduções feitas a partir de outras línguas, o tradutor é um mediador de outro mediador. “Dostoiévski é duro na linguagem, que muitas vezes é grosseira, dependendo de quem fala. Não temos o direito de estilizar essa linguagem. Tornar bonito o que em sua natureza é feio não cabe ao tradutor. A palavra do outro é inviolável e nossa obrigação é ir ao fundo do poço garimpando a melhor forma de expressá-la.”

União Soviética

Bezerra nasceu em 1940 em Pedra Lavrada, no interior da Paraíba, filho de um ferreiro e uma costureira. Na cidade havia apenas curso primário (da primeira à quarta série). Para continuar os estudos, teria que mudar de cidade e ingressar numa escola particular, que seu pai não podia pagar. “Vontade de estudar não faltava”, lembra. “Lia tudo o que me caía nas mãos.”

Aos 18 anos, foi para São Paulo, onde trabalhava um irmão dele, que era soldador mecânico. “Tive que enfrentar a cidade trabalhando em balcão de bar e dando injeção em farmácia”, lembra Bezerra. Numa padaria, cuidou do livro-caixa para o dono, que era semianalfabeto e tinha dificuldade para fazer conta. Para se profissionalizar, fez um curso de serra elétrica.

“Comecei a trabalhar na indústria e fui me envolvendo com o movimento sindical. Eu conversava muito com colegas filiados ao PCB [Partido Comunista Brasileiro] e entrei para o partido. Fui preso na primeira grave que fizemos em São Paulo, pelo 13º salário.” Além de ser preso, Bezerra perdeu o emprego. “Cheguei a um ponto, em 1963, que não conseguia mais encontrar trabalho. Nessa época o cenário político começou a ferver muito e o partido conseguiu me enviar para um curso de preparação na União Soviética.”

Chegou naquele mesmo ano. Fez cursos técnicos e formou-se em desenho mecânico. Veio o golpe de 1964 e Bezerra ficou sem condições de voltar para o Brasil sob uma ditadura de direita. Em Moscou ele estudou história do comunismo e luta de classes, além de um curso básico de Economia, na Escola Universal de Filosofia. Morava em casas de família. Para quem diz que “não há limite para uma boa conversa”, a convivência com pessoas comuns, e mais tarde com uma namorada russa, eram prazeres que traziam o bônus de treinar o idioma.

Bezerra, em seu exílio involuntário, decidiu estudar Literatura Russa e, em seis meses, já conseguia ler jornais e ir ao cinema e ao teatro. O interesse pelo idioma não era novo. O aprendizado do alfabeto cirílico já havia começado no Brasil. Terminado o curso em 1965, foi para a Universidade de Lomonóssov, onde, como planejava, especializou-se em tradução. Começou a trabalhar na Rádio Moscou como tradutor, e seguiu acumulando funções de locutor e autor de artigos sobre política para transmissão (clandestina) ao Brasil.

 

“Os anos que passei na União
Soviética foram o período da
minha formação intelectual.
Fui para lá com curso técnico
e voltei para fazer as duas
coisas de que eu mais gosto:
traduzir e dar aula.”

 

 

Alguns anos depois, com os sinais de abertura do regime militar, Bezerra estabeleceu-se no Rio de Janeiro, concluiu o Ensino Médio e iniciou uma série de estudos em diversas universidades. “Eu já era tradutor, mas sentia insegurança na língua russa”, lembra Bezerra, que atribui seu aperfeiçoamento no ofício ao encontro com sua futura mulher, a tradutora Maria da Glória Schittine. Bezerra deu aulas na USP e na Uerj e hoje está aposentado. Em 2012, voltou a Moscou com sua mulher para receber a Medalha Púshkin do governo russo.

O sucesso de Dostoiévski no Brasil

Apesar de ter chegado com certo atraso ao Brasil — depois de Lev Tolstói e Ivan Turguêniev -, Fiódor Dostoiévski sempre teve acolhimento entusiasmado dos leitores brasileiros. A que se deveria esse interesse? Bezerra destaca os dois aspectos que considera fundamentais nessa questão.

A primeira é uma identificação ou solidariedade com os excluídos: “Em Dostoiévski há duas formas de exclusão social. Numa das possibilidades, o indivíduo faz parte do sistema, mas não é visto, Iogo não ascende socialmente, o que o torna um permanente angustiado. Reage, mas de forma tão branda que quase não se percebe. É o caso de Makar Diévuchkin, de Gente pobre, e do senhor Golyádkin, de O duplo. Na segunda forma, o indivíduo é excluído do sistema, reage, e de forma violenta, como Ródion Raskólnikov em Crime e castigo, que é excluído da universidade por falta de condições para pagar suas mensalidades. Ele mata uma velha usurária, exploradora dos estudantes pobres e alegoria do sistema bancário. Portanto, Raskólnikov imagina matar um símbolo do sistema.”

O segundo fator é a aguda sensibilidade psicológica de Dostoiévski: “Entre todos os grandes romancistas, é o que desce mais fundo ao âmago da consciência humana, revolve a alma humana, expõe seus méritos e deméritos, põe o homem às avessas ao expor o que nele há de belo, feio ou horrendo. É o romancista em cuja obra não existe maniqueísmo; ou seja, não existe o bem puro nem o mal puro: os dois conceitos se alternam na alma humana, cada um podendo predominar num determinado momento, segundo as circunstâncias.”

Para o editor Danilo Horta, Dostoiévski respondeu em sua obra às grandes questões russas do século 19, mas sempre consegue chegar a algo universal. “Ele não se contenta com a fachada da discussão e vê o que está por trás. Não tem como a obra de Dostoiévski ficar datada porque trata de questões perenes.” Numa possível prospecção do que mais interessa aos brasileiros em Dostoiévski, Hora diz que Noites brancas é um livro muito querido pelos leitores e Crime e castigo foi o volume da coleção que mais teve reedições. Sinal de que no Brasil há lugar para “dois Dostoiévski”: um romântico, outro sombrio e polifônico.


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