O escândalo do texto em fala
(Foto: Patrick Tomasso/ Unsplash)
Guardadas as devidas dimensões do alcance psicanalítico, criticadas genialmente por D.H. Lawrence, em A psicanálise e o inconsciente (Cultura & Barbárie, 2020), aquilo de mais importante que possivelmente a psicanálise tenha instaurado no nosso trato com os discursos alheios talvez seja a compreensão de que a Verdade é algo prescindível, se não despiciendo, e que a função última do analista seja a de fazer emergir à consciência do falante, através da fala, determinadas falhas prenhes de sentido desse discurso. Em última instância, a análise do discurso que constitui o sujeito não deve buscar o desvelamento, a revelação daquilo que ele é, tentando trazer desse modo a recompensa da alegria e a promessa da cura plena, antes apontar no caos dos sentimentos rotas possíveis a serem percorridas por aquilo que ele pode ser.
Por isso, e apesar da longa tradição, que tem em Barthes seu ponto fulcral, de desleituras – longe de possuir aqui um sentido pejorativo – das funções do texto, do Autor e do Leitor, acredito – e assim procedo em meus dias – que as funções de um Leitor, que buscamos tanto identificar como autônomo, realizem-se, no duro, de modo semelhante às ações do psicanalista.
Em primeiro lugar, porque todo discurso apresenta seus complexos, suas esquizofrenias e, em última instância, trata de si, ainda quando trata de outro. Por que, então, seria diferente no caso da escrita? Afinal, os discursos, sejam eles orais ou escritos, não surgem como meras obras do acaso, sem ponto de ancoragem, sem a subjetividade de um sujeito que carrega consigo suas ideologias e seus traumas. O texto, desse modo, longe de estar a salvo da inconsciência pela falsa imagem de uma construção puramente racional, não cessa de se trair, como jamais cessaremos nós mesmos de nos trair. E é isso, no final das contas, essa autossabotagem inerente aos discursos humanos, que abre os caminhos interpretativos, que bifurca as vias dos destinos, para dizer com Cícero e Frost. Em segundo lugar, porque todo texto (discurso) é constituinte de um ser no mundo, todos os termos por ele empregados se renovam e se atualizam a cada enunciação. Sendo um ato individual e histórico, um enunciado não pode ser repetido. Toda reprodução é um novo ato realizado por quem é qualificado, para dizer com Austin. Bem, a poesia, a ficção como um todo não deixa de ser um imenso gesto performativo.
O que acredito, portanto, e busco dizer aqui é que o que todo texto faz é enunciar continuamente um “mesmo”, com suas mil aspas, discurso significando coisas sempre diferentes. E, apesar de evidente, é importante reforçar que isso vale tanto para os textos mais recentes, daqueles que dividem o tempo conosco, quanto para aqueles que vêm falando, numa sessão que parece durar alguns milênios, seus equívocos significativos. Por isso, e em nada distinto da função analítica, cabe a nós o exercício de sentarmos e ouvirmos aquilo que cada discurso tem a dizer, com suas peculiaridades, mas também atentos às nossas peculiaridades. Assim como na psicanálise, portanto, o diagnóstico jamais pode preceder a escuta. É somente através dela que se torna possível organizar e compreender o discurso alheio. É somente através da escuta, por parte do receptor, e da fala, por parte do enunciador, que os sintomas de um discurso se evidenciam.
Reitero: a importância da escuta é fundamental em todos os tratos discursivos e constitui a base de todo trabalho analítico, de todo trabalho que busque organizar o que se apresenta no Outro. Ou seja, é fundamental ouvir com ouvidos novos e atentos, na medida de nossa atenção (não nos cobremos também demasiado em busca de algo que está fora de nós e das possibilidades de qualquer discurso), aquilo que se diz há tanto tempo. A assunção do diagnóstico, portanto, no nosso caso algo como a aceitação passiva de leituras anteriores e em geral dotadas de um senso de finalidade, antes da escuta não é apenas um ato contraprodutivo, como um grande equívoco metodológico de nossa parte. É necessário que se ponha o texto em fala, acessando assim suas máquinas de sintomas e buscando dar sentido às desordens produzidas durante essa fala, jamais antes dela.
Nesse sentido, cada vez mais tenho para mim que a literatura contemporânea é, forçosamente, o καιρός (kairós) de todo leitor-crítico, o caso clínico em construção, de todo leitor-ouvinte, e que ela figura sempre e repetidamente como a mais áspera dentre as literaturas. Afinal, sem as rodinhas dos comentadores, da fortuna crítica e de tudo o mais que possa existir, é precisamente no embate árduo e penoso com os textos coevos que, mais do que nunca, espera-se a produção de uma κρίσις (krisis) por parte desse leitor. E é justamente nessa literatura, que parece surgir em meio a um deserto sem vias possíveis aparentes, que o exercício de escuta do texto tende a se escoar pela areia escaldante, deixando-nos sem pistas para identificar e compreender seus sintomas. Creio que algo disso derive, sobretudo, de certa atrofia sistemática de nossa audição, que ao enunciar incessantemente a existência do Outro, parece incapaz de alcançá-lo.
Há cerca de um ano, durante uma palestra sorrateiramente encoberta pela máscara de uma erudição pedante e decadente, ao perceber que os lábios de um então renomado tradutor balbuciavam, num ruído histriônico e pavônico, algo como “não há quem produza boa poesia no nosso tempo”, a única coisa que me ocorria era o fato simples de que é nessa literatura, ainda virgem de crítica, que a máscara autoritária do crítico cai por terra, revelando nada além de uma profunda incompetência estrutural. Voltamos à era pré-psicanalítica, na qual as pulsões do paciente pouco importam ou são subjugadas pela necessidade de Verdade do clínico.
É nessa literatura, contemporânea, portanto, que, penso, o produtor de crises, o ouvinte-analítico se separa do deplorável papagaio dos comentadores, apontando-nos como a cada novo discurso produzido tanto a linguagem quanto as paixões do humano, longe de naufragarem num oceano de inabilidade, são remodeladas de acordo com as necessidades de cada tempo, de cada corpo; todavia sem nunca, jamais se absterem de qualquer tipo de rigor nem fugirem ao fardo da necessidade de alargamento das fronteiras do humano, intrínseca à arte, como definiu Schiller em suas Cartas sobre a educação estética da humanidade. Ou seja, ouvir aquilo que o texto em fala tem a dizer significa alargar as fronteiras daquilo que julgamos constitutivo do humano e desse modo dar um passo a mais rumo à nossa autoassimilação. Não me parece haver alternativa à compreensão de um discurso, assim como de nós mesmos, que não passe pelo exercício de apreensão, sobretudo calma e humilde, daquilo que cada texto revela. Nada disso é novo sob o sol, eu sei. Gente muito mais qualificada vêm dizendo isso há décadas: leiamos os textos, é só no embate com os textos que o prazer, ainda que ambíguo, é capaz de emergir.
Certa feita, Barthes disse, e é de conhecimento geral, que o crítico não pode, de modo algum, substituir o leitor, retirando, desse modo, da leitura do crítico o peso da Verdade e mostrando que ela apenas responde a uma determinada “ordem do discurso”, como quis Foucault. Com o passar dos anos e das leituras, cada vez mais firmemente venho acreditando em três coisas: 1) o crítico não é nada para além de um leitor em uso (ou em crise, como se queira); que 2) essa grande repulsa pelo contemporâneo não é nada para além do medo da revelação de uma grande impotência ante o texto, qualquer texto, ou talvez um recalque e que 3) apesar de não recair sobre nós a responsabilidade de ouvir a fala de um paciente em dor, com demandas mais imediatas no mundo prático, o que fazemos (ou deveríamos fazer) não deixa de ser um exercício clínico de escuta.
SERGIO MACIEL é um dos editores da revista escamandro. Mestrando em Letras Clássicas, estuda a obra teatral de Sêneca. É autor dos livros ratzara (Dybbuk, 2017) e Esta casa malsã (Macondo, 2020).