No sirgo fio dessas recordações

No sirgo fio dessas recordações
Fotos Bob Sousa

 

“Por que teimam em anunciar nos cartazes a minha peça como drama?”
(Carta de Anton Tchekhov a Olga Knipper)

Embora seja tributária do realismo russo que vicejou no século XIX, a dramaturgia de Anton Tchekhov (1860-1904) acabou por se distanciar acentuadamente da escola realista, convertendo-se em um pequeno conjunto de textos bastante singulares cujo estilo, de difícil definição, até hoje encanta a classe teatral e o público mundo afora. Máximo Górki escreveu em 1900 uma carta para Tchekhov na qual apontava, entre admirado e atônito, a mudança de perspectiva que a obra do médico, contista e dramaturgo estava imprimindo à arte e à literatura russas: “Você sabe o que está fazendo? Está matando o realismo… Depois de qualquer de suas histórias, por mais insignificante que seja, tudo parece rude, como se fosse escrito não com uma pena, mas com um porrete.”

Mais de um século após a morte do autor, as peças de Tchekhov ainda escapam às classificações usuais. Os temas básicos com os quais elas lidam – o insucesso, a impotência, a nostalgia e a solidão do homem – não poderiam mesmo se ajustar aos encantos da musa realista, anunciando dissimuladamente a crise do drama, como atesta Peter Szondi: “Assim como os heróis dos dramas tchekhovianos, apesar de sua ausência psíquica, continuam a viver em sociedade e não tiram da solidão e da nostalgia as últimas consequências, persistindo em um ponto flutuante entre o mundo e o eu, o agora e o outrora, tampouco a forma dos dramas renuncia de todo às categorias de que carece enquanto forma dramática. Ela as conserva como acessórios desprovidos de ênfase a permitir que a temática verdadeira tome forma em algo negativo, como se desviando dela”.

Sublimação do realismo ou naturalismo surreal foram tentativas já empreendidas pela crítica de captar a essência das peças de Tchekhov e nomear o processo de criação que subjaz a elas. Por sua vez, as montagens dos textos do autor não costumam ir muito além do foco no trabalho dos intérpretes, desafiados a projetar certo estado de ânimo, a recriar certa atmosfera, a vivenciar certos matizes de sentimento – emulando o caminho “do exterior para o interior, em direção ao subconsciente” que Stanislávski traçou para o Teatro de Arte de Moscou nas famosas encenações que vão de A gaivota (1898) a O jardim das cerejeiras (1904).

Desse modo, a versão que a Cia. Elevador de Teatro Panorâmico ora está apresentando de O jardim das cerejeiras no Sesc Bom Retiro, com direção de Marcelo Lazzaratto, configura uma iniciativa prenhe de sentidos divergentes daqueles normalmente ligados às encenações da dramaturgia tchekhoviana, dados o arrojo e a inventividade que envolvem toda a empreitada e que convidam, naturalmente, à reflexão. A peça trata de uma família aristocrática falida que está em vias de perder a grande propriedade rural em que seus membros passam boa parte do ano. Presos a um passado alienado e alienante, os irmãos Liuba e Gaev não percebem que os tempos mudaram, vivendo ainda apegados ao velho modo de vida e a obsoletas tradições. Aconselhados pelo antigo servo Lopakhin – agora, um bem-sucedido homem de negócios – a lotear o terreno e alugar os pequenos lotes a veranistas, Liuba e Gaev desdenham da sugestão, preferindo refugiar-se nas fantasias mais inconsequentes que, para eles, irão garantir a posse da propriedade. Entretanto, Lopakhin, movido tanto por velhos ressentimentos familiares como pela nova mentalidade burguesa que está surgindo, acaba por arrematar o cerejal no leilão a que vai a propriedade, em virtude de todas as dívidas acumuladas, expulsando aquela família aristocrática de seu crepuscular jardim do Éden.

A direção de Marcelo Lazzaratto prima por evidenciar uma crise repartida em três frentes: a crise do realismo, como estilo de época; a crise da forma dramática, como gênero teatral, e a crise da própria representação da realidade, como constituinte básico da linguagem artística. À exceção de pequenos cortes no texto, a fábula tchekhoviana está intacta, preservada em toda sua potência narrativa. Entretanto, certos elementos da encenação impedem que essa fábula seja usufruída pelas tintas usuais da paleta realista. Em primeiro lugar, alguns personagens são interpretados por mais de um ator – o que ocasionaria somente o conhecido efeito de estranhamento, se uma dessas duplicações não estivesse revestida de um sentido todo especial, como se verá adiante. Em segundo, a fala dos intérpretes constantemente é emitida de modo bastante artificial, ritualizado – o que parece apontar para a ideia de que é preciso contrariar o uso íntimo da linguagem e a decorrente posse de toda sorte de sentimentalismos. (Vale destacar, a propósito, que todos os atores da Cia. Elevador Panorâmico de Teatro estão muito bem em cena, emprestando às personagens o vigor corporal e vocal necessário ao sofisticado projeto a que se lançaram com muito talento). Por fim, o palco que acolhe a fábula está imerso em um belíssimo cenário, tão merecedor de contemplação quanto irradiador de tensões poéticas muito provocantes, como também será examinado mais à frente.

Que a extravagante Liuba (interpretada por Carolina Fabri) e o exaltado Lopakhin (defendido por Pedro Haddad) são personagens ricamente matizados, centros nervosos da fábula, não há dúvida alguma. Entretanto, duas figuras periféricas também se destacam na trama pelos expressivos símbolos que encarnam: a preceptora Carlota e o velho criado Firs. Ela, por constituir um tipo antirrealista por excelência, às voltas com truques de mágica e números de ventriloquia. Ele, pela avançada velhice e pela surdez, traços que negam a possibilidade de comunicação verdadeira com os demais personagens, evidenciando não sem grande ironia o agudo “diálogo de surdos” que se estabelece não somente entre as classes sociais como também entre as gerações na Rússia pré-revolucionária. As entradas e saídas de cena de Firs são episódicas, mas é a ele que Tchekhov confia o encerramento da peça, esquecido entre a mobília, relegado a uma penetrante ambiguidade: um serviçal sem serventia. Se, por um lado, a montagem não explora como poderia a potencialidade ilusionista de Carlota (a cena – não aproveitada aqui – em que ela joga fora um bebê imaginário feito a partir de uma trouxa de roupa é impagável), por outro, ela destaca muitíssimo bem a figura patética de Firs, interpretado por vários atores sucessivamente até se fundir com a figura derradeira de Liuba – o que constitui um verdadeiro achado poético e cênico. A experiência impressionista do mundo – como atesta Arnold Hauser, em sua História social da arte e da literatura – converte-se, assim, em experiência do tempo. Se o velho Firs é um tipo fugidio, porque encarnado por vários intérpretes, sua fusão com a “velha” Liuba acentua ainda mais o equilíbrio instável, precário, dessa metamorfose que desautoriza o sentido de qualquer permanência. São essas tintas impressionistas que a encenação explora com muita engenhosidade.

O tom impressionista também ganha contornos muito ricos a partir do fascinante projeto cenográfico a cargo de Lu Bueno e Marcelo Lazzaratto. O tablado de madeira branco e vazio sobre o qual acontecem as cenas está cercado, ao fundo e aos lados, do equivalente a duzentos quilômetros de fios brancos que envolvem os personagens e os enredam em sua imobilidade. Tal como em uma grande tela impressionista, algumas cenas do espetáculo são deslocadas para as margens do palco (entenda-se o fundo e as laterais), acentuando a ideia de que algo ocorre próximo à moldura. Tal efeito procura interromper a centralidade da visão sobre a cena realista (para tratar também no plano narrativo das coisas acessórias, destituídas de importância), interrupção esta reduplicada, por sua vez, pela frieza da cor branca e pelo excesso de vazios que tomam o palco. O resultado poderia soar puro maneirismo, o que não acontece de modo algum. A dissolução do cenário e a decomposição da perspectiva central, espraiada em percepções fugazes do que acontece em cena, estão a serviço das pequenas transformações em curso de que trata a peça, dinâmicas em sua discreta intensidade.

O simbolismo dos fios é muito forte. O fio é o agente que liga todos os estados da existência entre si. Lembram Jean Chevalier e Alan Gheerbrant no Dicionário de símbolos que é preciso distinguir o fio da urdidura do fio da trama: “… a urdidura liga entre si os mundos e os estados; sendo que o desenvolvimento condicionado e temporal de cada um desses mundos e desses estados é figurado pela trama. (…) O desenrolamento do fio exclusivamente de trama é simbolizado pelas Parcas – pela fiação do tempo ou do destino”.

O fato de esse cenário valorizar a presença dos atores como figuras nascidas das pinceladas de um pintor impressionista não desautoriza pensarmos nele também como uma estrutura de tramas sobrepostas. Os fios da lembrança mais nostálgica do que já foi aquele cerejal para Liuba se entrelaçam nos fios das memórias mais amargas de Lopakhin, para quem o mesmo cerejal serviu de palco de ofensa e humilhação. “No sirgo fio dessas recordações” – diria o jagunço dos campos gerais ao camponês das estepes – o destino de uma aristocrata de voz melíflua e discurso algo poético se uniria, pateticamente, ao de um comerciante pragmático, sem ilusões de nenhuma espécie. A aura do jardim teria sido rompida, restando apenas à propriedade seu valor de exposição.

Por fim, a despeito de tratar de vidas desperdiçadas e anseios irrealizados, O jardim das cerejeiras devota a seus personagens aquela distância humorística tão diligentemente perseguida por Tchekhov, a “impecável combinação de piedade e humor elíptico, de lampejos de luz em meio às trevas” de que fala Jerome Mellquist. Unindo, então, as trajetórias de Liuba e Lopakhin na trama narrativa, Tchekhov se revela uma vez mais um mestre em criar atmosferas sem vilões nem heróis. Circunscrevendo o deslocamento dos atores às tramas traçadas por um dos mais belos cenários da temporada teatral recente, o diretor Marcelo Lazzaratto reproduz um mundo estático onde todas as coisas, ironicamente, se fundem e se aglutinam, mas no qual ainda é possível distinguir um aspecto essencial: o de que o critério da verdade repousa no indivíduo, depositado no aluvião de sua interioridade mais inefável.

O jardim das cerejeiras
Onde: SESC Bom Retiro – Al. Nothmann, 185 – Campos Elíseos – Centro
Quando: até 11 de maio – sextas às 20h, sábados às 19h e domingos às 18h
Quanto: R$24
Info.: (11) 3332-3600

welingtonadrade@revistacult.com.br

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