Metáforas de vida e de escrita
Virginia Woolf, autora do ensaio fundamental 'Um teto todo seu' (1929) (Foto: Reprodução)
No seu aclamado e essencial ensaio, Um teto todo seu (1929), a escritora modernista Virginia Woolf levanta uma questão que viria a dominar o cenário do debate literário feminista nas décadas de 1960 e 1970, época de contestação massiva das muitas barreiras institucionais que ainda impediam o pleno acesso das mulheres aos diversos campos da produção cultural. Ela ponderava a existência de uma “escrita feminina” e o que poderia distingui-la da literatura histórica e canônica feita desde uma perspectiva masculina. Perguntava-se sobre o caminho que permitiria viabilizá-la, criar os espaços e as condições para que as mulheres escritoras pudessem relatar a vida com as suas frases – feminine sentences – elaboradas a partir de suas experiências num mundo que lhes negava a voz e ao mesmo tempo dava para elas uma clareza, uma visão, uma sensibilidade diferentes.
Com uma posição mais cética quanto à “diferença”, mas igualmente interessada na ascensão das mulheres a posições de produção cultural reconhecida, Simone de Beauvoir articulou outro ponto de partida para nossa atual discussão sobre mulheres e literatura. Percebeu bem a armadilha: se, em toda a tradição cultural ocidental, os homens são tidos como “o geral” e as mulheres, o “específico”, tentar definir o que é ser “mulher escritora” – ou “mulher filósofa” – talvez não deixe de reproduzir essa mesma lógica. Denunciou enfaticamente o Mito da Mulher criado pelos homens, o qual construía as mulheres ora como musas, ora como malditas, mas sempre como o repositório de uma “diferença” que, mesmo quando elogiada, continuava sendo vista, no fundo, como falta.
Muito se avançou ao longo do século 20 através das lutas coletivas da primeira e segunda ondas do feminismo assim como das batalhas, por vezes silenciosas, de escritoras conduzidas pelo próprio desejo: a necessidade pujante e a possibilidade intelectual e artística de escrever. Se olharmos para obras e vidas literárias de mulheres das primeiras décadas do século em diversas partes do mundo, perceberemos que ainda prevalecem nelas os tropos do trágico e narrativas do silenciamento das vozes e do desejo femininos. Assim, quando a segunda onda feminista começa a sacudir o mundo com uma radicalização de perspectivas sobre as instituições modernas – e principalmente, sobre as formas corporais e subjetivas de controle da sociedade ‘“patriarcal” sobre as mulheres – a romancista e poeta mexicana Rosario Castellanos (1925-1974) ainda procura dar fechamento ao mundo da negação das possibilidade femininas, nos lembrando que “No, no es la solución/ tirarse bajo el tren como la Ana de Tolstoy/ ni apurar el arsénico de Madame Bovary”, pois existe – deve existir – “Otro modo de ser humano e libre/ otro modo de ser”. Ela escreve a genial peça de teatro O eterno feminino, transformando com humor e ironia a narrativa sobre a história da nação mexicana a partir de perspectivas femininas.
Nos EUA, mulheres jovens talentosas que participam do círculo beat convivem com os homens desse círculo de vanguarda e lentamente começam a articular sua própria visão e voz literárias, traduzindo a irreverência beat numa crítica que inclui as relações de gênero como mais um forte aspecto do mal-estar no American way of life. Enquanto a brilhante e trágica Sylvia Plath, jovem da mesma geração, encara uma batalha solitária dentro de uma academia masculina elitizada que reluta em aceitar a voz dessa grande poeta, as mulheres que rondam a vida beat ocupam as margens das margens, até chegar sua hora, de forma tardia, porém definitiva.
Coube às gerações de escritoras nascidas nas décadas de 1940 e 1950, geração de ponta, desfrutar de liberdade e legitimidade maior dentro da sociedade e, mais especificamente, dentro das instituições da academia e da arte. Seu direito de serem lidas, ouvidas e escutadas foi uma conquista da revolução propiciada pela segunda onda feminista nos diversos espaços da vida social e cultural, a partir do final dos anos 60. Dessa maneira, quem quiser ler ou estudar “mulheres que escrevem” hoje pode escolher entre uma grande diversidade de escritoras que se inserem em tradições linguísticas e projetos estético-literários diferentes. Aliás, estamos em pleno momento desconstitutivo, no qual prevalece um certo consenso, no meio acadêmico, de que precisamos desenvolver formas mais complexas e descoladas dos velhos binômios de gênero para entender questões de autoria. Finalmente, todos/as nós somos muitas coisas, além (ou fora) de ser homem ou mulher. A partir de qual lugar, de que “posição de sujeito”, falamos? Orientação sexual, origem social (que inclui questões de raça, nacionalidade e classe social) e experiências de vida singulares são fatores que nos fazem o que somos, e nos fazem “falar” desde um lugar… ou de outro. Contudo, problemas de gênero e literatura estão longe de serem resolvidos.
Conteúdo feminista
No livro Literature after feminism, a estudiosa inglesa Rita Felski aborda o teimoso debate sobre o fazer das mulheres, como escritoras e/ou como leitoras, no qual alguns críticos literários defendem a noção de haver uma oposição entre preocupações estéticas e políticas na análise e avaliação de obras literárias. Esse tipo de argumento, ela assinala, tem sido muito sintomaticamente mobilizado em disputas sobre o cânone, utilizado por críticos conservadores que promovem noções estáticas sobre o que torna uma obra “um clássico” e defendem critérios estéticos universais e pouco historicizados. Felski afirma que há conteúdo político em toda produção literária. Os critérios estéticos, por outro lado, não são a antítese das características “ideológicas” de uma obra, senão elementos que nos obrigam a pensá-la de maneiras complexas e não reducionistas (por exemplo, o conteúdo “feminista” de uma obra nem legitima nem desqualifica o valor de um poema, um conto ou um romance, seria apenas uma de suas facetas).
Quanto a dúvidas relativas à escrita e autoria femininas, Felski também oferece estratégias que conduzem à complexificação do trabalho crítico. Da sua própria leitura de contribuições críticas, identifica três metáforas ou alegorias que condensam abordagens utilizadas pela crítica feminista contemporânea, que mais do que se referir a descrições empíricas de autoras e suas obras, refletem modos de interpretar o ser e fazer das mulheres dentre as complexas teias-tramas de relações sociais e históricas. Assim, a primeira metáfora, ou alegoria de autoria feminina que ela denomina de the madwoman in the attic (a louca no sótão), é tomada do livro homônimo das autoras Sandra Gilbert e Susan Gubar que, no final dos anos 70, lançam esse clássico da crítica feminista. Produto de um momento pioneiro na crítica feminista, trabalhos como esses eram muito influenciados por Virginia Woolf, por sua noção de feminine sentences e seu justificável lamento da “ausência de uma tradição” de escrita feminina dentro do cânone literário. Metáfora – denúncia da exclusão das mulheres das instituições de produção cultural, ainda peca por basear-se numa certa universalização do papel da senhora burguesa, cujos privilégios de classe paradoxalmente a dilaceravam, ao confiná-la dentro do que, segundo Maria Rita Kehl, foram os “roteiros estreitos demais” do seu gênero. Nesse contexto, surge a noção da loucura ou histeria como resposta (inteligível) à negação de voz, imputando à mesma uma certa qualidade de agência. Por outro lado, como parte dos esforços de visibilizar e valorizar a escrita feminina, algumas críticas da época também defendiam a ideia de existirem diferenças formais entre a escrita de mulheres e homens, reforçando dessa maneira o discurso binário que hoje em dia é amplamente reconhecido como paradoxalmente mantenedor de fronteiras e barreiras.
Metáfora de gênero
Mas há outras vertentes interpretativas que fazem parte dessa história. Masquerading women seria outro tropo ou metáfora de escrita literária e crítica, que coloca o gênero no terreno do performativo – contingente e fluido. Embora essa forma interpretativa não se situe exclusivamente em obras mais recentes (muito pelo contrário!), é fato de que hoje em dia qualquer generalização sobre como “homens” e “mulheres” são, ou como se manifestem literariamente, vira suspeita, ou pelo menos muito pouco convincente em plenos tempos de desconstrução dessas mesmas categorias.
De fato, a metáfora de gênero como performance ressoa na literatura pelo menos desde Orlando, da mesma Virginia Woolf. Outras autoras da mesma época – e muitas mais, posteriormente – produziram textos que subvertem o gênero, bem como na perspectiva que hoje encontra-se sintetizada no brilhante trabalho teórico da filósofa Judith Butler.
Felski promove ainda mais a desuniversalização da categoria de escritora ao chamar nossa atenção para outra alegoria ou metáfora, a de home girls. Vejam bem: se a primeira metáfora discutida por Felski surge de um contexto de circunscrição de mulheres de camadas sociais privilegiados a um papel doméstico que produz o lar como prisão, para outras – as que pertenciam a comunidades raciais e étnicas marginalizadas ou hostilizadas, discriminadas –, o lar poderia significar conforto, consolo ou refúgio. Pelo menos parcialmente ou por vezes.
Isso parece ser o caso para mulheres latinas e negras nos EUA, como vem sendo apontado também na sociologia e na história desde várias décadas, por estudiosas que nos lembram que, nos tempos da escravidão, ter um lar era um “privilégio” negado às mulheres negras escravizadas. Ou, como acontece hoje em dia nos países que mantêm cidades divididas entre enclaves étnico-raciais (como pode ser também na França ou na Espanha atualmente, ou em relação a comunidades indígenas no Brasil ou no México…), tanto o lar (principalmente, da família extensa) quanto o bairro ou outra estrutura comunitária pode levantar-se como aconchego e proteção perante um mundo público que submete mulheres e homens de etnicidades discriminadas a hostilidade e agressão (física, simbólica).
“Mulher ao volante”
Diante da diversidade da produção textual e das possibilidades interpretativas da atualidade, uma estratégia indutiva útil pode ser partir de obras singulares de autoria feminina para tentar descobrir como elas definem “ser mulher que escreve”. Por exemplo, em leitura recente do primeiro livro da poeta Beat Hettie Jones, Drive, percebi como do conjunto de poemas emerge como metáfora central “mulher ao volante”. Os poemas evocam constantemente a capacidade das mulheres de pegar a estrada, ou de fazer a estrada. Tematizam, nesse empreendimento, tanto a relação com o eu quanto com o outro, fato que acredito ser de grande significância, pois no trabalho dela, como no de outras mulheres beats, esse elemento aparece e se impõe de maneira muito diferente do que no trabalho dos homens – como tão claro em Kerouac, por exemplo – que se mostram sempre ambivalentes quanto às relações que permanecem ou que exigem compromisso.
Chegando ao cenário literário desde um contexto social muito diferente são as magrebinas Fatima Mernissi (marroquina) e Assia Djebar (argelina). A recém falecida Djebar, escritora profícua e membro da Academia Francesa de Letras, toma o título do seu romance Vaste est la prison de uma música bérbere que se refere mais a aspectos da condição humana geral, mas dentro da narrativa do livro adquire uma conotação específica das dificuldades que as mulheres vivem numa cultura que as circunscreve ao doméstico de forma particular. Mesmo assim, as mulheres de Djebar, assim como as de Mernissi, são sujeitos de suas vidas, de diversas formas: desde boas estrategistas numa cultura patriarcal até revolucionárias privilegiadas por um olhar diferente, muito mais perspicaz do que os homens. O amor e o cuidados que muitas vezes caracterizam as relações entre as mulheres do harém, das famílias extensas ou comunidades descritas por elas sugerem para mim uma metáfora que evoca o vínculo e não – à maneira das vitorianas enclaustradas – a loucura.
Concluindo, gostaria de sugerir – mais uma vez, estimulada pelo texto de Felski – que já passamos da noção da “morte do autor” para um interesse no lugar da fala de quem escreve. Lugar que pode ser mais ou menos enraizado, mais ou menos móvel e instável, que se produz na junção de relações sócio-históricas como gênero, classe, raça/etnicidade, sexualidade, posição numa geopolítica global, inserção numa geração etc. Por isso mesmo, Felski enfatiza que as metáforas que ela utiliza para pensar sobre autoria feminina e crítica feminista representam apenas algumas das vastas possibilidades de representação de sujeitos-autoras.
As metáforas ou alegorias também podem se tornar um problema, se entendidas como prescrições fechadas sobre a questão da “autoria feminina”. Podemos pensar, junto com ela, quais outras metáforas seriam expressivas a partir das obras que lemos, estudamos e escrevemos. Talvez algumas metáforas que emergem de contextos latino-americanos ou especificamente brasileiros? Das novas gerações de escritoras brasileiras, que são muitas, que incluem as vozes brilhantes de Carol Bensimon, Clara Averbuck, Sabina Anzuátegui (por mencionar apenas três que eu tive o grande prazer de ler, todas elas do sul do país), a pergunta fica aguardando a reflexão e a criatividade dxs que me leem.
Miriam Adelman é professora do Departamento de Ciências Sociais da UFPR