Metafísica das quinquilharias
Sueli Santana em cena (Foto: Marco Aurelio Olimpio)
Welington Andrade
“Quem conhece o solo e o subsolo da vida, sabe muito bem que um trecho de muro, um banco, um tapete, um guarda-chuva, são ricos de ideias e de sentimentos, quando nós também o somos, e que as reflexões de parceria entre os homens e as coisas compõem um dos mais interessantes fenômenos da terra.”
Machado de Assis, Quincas Borba, CXLII.
Sala de estar, a mais recente criação do grupo Sobrevento (em cartaz no galpão que serve de sede à companhia, localizado próximo à estação Bresser-Mooca do metrô), propõe ao espectador a fruição de seis singulares ocorrências construídas cenicamente a partir dos motes da fragilidade, do segredo e da confissão. Há dois anos, o grupo iniciou um processo de estudo da dramaturgia no teatro de animação voltado ao público adulto, interessando-se por investigar a questão da fragilidade humana. Cada intérprete foi buscar em sua própria história de vida um segredo pessoal que serviu de base à criação de um monólogo – cujo registro oscila entre o ficcional e o confessional – para o qual concorre o uso de inúmeros objetos como sofás, quadros, miniaturas, gaveteiros, bloquinhos, escrivaninhas, cartas, chapeleiros…
O público entra em contato com essas cenas por meio do percurso itinerante que é convidado a trilhar dentro do galpão. De posse de um banquinho recebido logo na entrada do espaço, o espectador se desloca lá dentro, de tempos em tempos, rumo à cena que será apresentada autonomamente por cada um dos seis integrantes do grupo, tão logo a luz se acenda sobre o intérprete. Depois deste sinal inicial, basta à plateia acomodar-se em torno do pequeno tablado diante do qual se sentou e usufruir a delicada experiência ali desenvolvida.
A técnica utilizada em Sala de estar é a do teatro de objetos, vertente mais moderna do teatro de animação, que trabalha com objetos prontos, ready-mades, no lugar de bonecos, deslocando-os de sua função original (embora sem transformar a natureza deles), a fim de explorar uma série de novos significados que possam nascer desses usos. O verbete “Teatro de Objetos”, do Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos (Editora Perspectiva/Edições Sesc São Paulo), afirma: “Há, em torno de qualquer objeto, uma aura de espaço físico criada pela sua presença, em que se constrói dramaturgia pela fricção (relação de corpos), gerando sensações e emoções diversas. Entre as inúmeras acepções se vislumbra a gama de situações em que ele se ‘presenta’ no espaço-tempo cênico. Posto em palavra, o objeto sofre ressemantizações. Feito matéria, ele é mostrado, consumido, animado, construído ou destruído. Converte-se em personagem, sofre metamorfoses, traz em si um caráter lúdico, simbólico, e opera deslizamentos metonímicos e metafóricos. O atuante joga com o objeto e faz-se objeto em cena, em distintos graus.”
Pois bem, o uso dos objetos por meio dos quais cada cena trata, de modo singular, de fragilidades, segredos e confissões faz de Sala de estar um espetáculo cujo mote é chegar à essência das coisas. E aqui a etimologia não poderia soar mais consequente para o espetáculo concebido pelo grupo Sobrevento: as palavras “estar” e “essência” privam de sentidos comuns. Originário do latim stare, o verbo estar (cujo étimo remete à forma indo-europeia “st”, presente em inúmeras palavras modernas com o sentido de “ficar de pé”, como em estante, estável, estabelecer…) significa “ser em um dado momento” ou “encontrar-se em certo estado ou condição”. Já o substantivo essência implica a ideia “daquilo que constitui o cerne de um ser, isto é, sua substância”. Se, então, em ambos os vocábulos – estar e essência –, é inequívoca a manifestação do “ser”, impossível não pensar que o próprio verbo ser (cujo campo semântico aponta para as noções de “estar”, “ficar”, “existir”, “tornar-se”) originou-se do latim sedere (“estar sentado”, “assentar”). Da ideia original de “estar sentado”, a palavra passou à de “estar” e daí à de “ser”, conforme atesta o Dicionário etimológico da língua portuguesa, de Antônio Geraldo da Cunha. Assim, o galpão do Espaço Sobrevento desdobra-se em seis recortes de salas de estar que recebem para uma agradável visita não somente os personagens como também os próprios espectadores. Ou melhor, o galpão do Sobrevento desdobra-se em seis recortes de salas de estar… e de ser.
O principal objeto da cena conduzida por Sueli Santana é um prosaico sofá, cuja estampa de oncinha se confunde com o figurino usado pela personagem. De objeto cênico específico o sofá converte-se rapidamente no tema central da exaltada conversa que a intérprete entabula com a plateia. Ela odeia sofás e credita a eles a origem de grande parte dos males da humanidade, senão de todos. A atmosfera cômica vai crescendo em registro de puro nonsense até o momento em que uma revelação, parcimoniosamente comunicada à plateia, conduz a um desfecho dramático, que une dois seres. O ser daquela mulher e o ser de uma criança. O primeiro, encrespado e defendido contra todos os sofás que há no mundo. O segundo, abandonado e indefeso diante de um único sofá – assento-sede de uma imemorial violência.
A breve cena desenvolvida por Roberta Nova Forjaz é de um lirismo comovente, acentuado ainda mais pelo melancólico som de piano que lhe serve de trilha sonora. Tendo por companhias fumo e álcool, uma mulher adulta, vestida de branco, evoca algumas cenas familiares do passado, envolvendo um pai, uma mãe e uma filha. A rememoração, diluída, esfumaçada, materializa-se diante dos olhos do espectador por meio do uso de uma tela de projeção e de três bonecos em miniatura – dispostos sobre uma pequena mesa giratória – que representam aquelas figuras. E o efeito é de uma beleza ímpar. A sutil emoção que emana da voz da intérprete paulatinamente se projeta sobre o movimento vertiginoso dos bonecos girando sobre a mesa. Aqui, memória e vertigem conduzem à fruição do ser. Tudo gira em torno do ser ou é o ser, ele próprio, que está girando em um, digno de Clarice Lispector, “vertiginoso relance”.
Liana Yuri conduz a cena em que sua personagem apresenta um velho gaveteiro, de onde retira alguns objetos do dia-a-dia. Mais do que a real significação de cada utensílio, o que parece importar aqui é a ação de abrir e fechar reiteradamente cada compartimento, o que pontua por sua vez o movimento de revelação e de ocultamento presente no discurso da personagem, em que de tempos em tempos surge a palavra violência. Abrindo mão da tensão dramático-narrativa presente nos quadros anteriores, a cena de Liana constitui uma declaração sui generis sobre as imagens da intimidade que pode guardar um obsoleto gaveteiro, evocando, assim, o famoso ensaio de Gaston Bachelard, A terra e os devaneios do repouso, no qual o filósofo afirma que a vontade de olhar para o interior das coisas (segundo Hans Carossa, “O homem é a única criatura da terra que tem vontade de olhar para o interior de outra”) não somente “torna a visão aguçada, a visão penetrante” como também “transforma a visão numa violência”, por detectar “a falha, a fenda, a fissura pela qual se pode violar o segredo das coisas ocultas”.
Daniel Viana constrói sua cena em torno da figura de um pai tão amado quanto ausente. A personagem que o intérprete encarna soa como um tipo algo pitoresco, deslocado no tempo, trajado de excêntricos paletó e gravata borboleta amarelos. O quadro se inicia com uma pergunta feita a alguns espectadores: que imagem evoca a figura de seu pai? Depois de ouvir algumas das respostas, o intérprete se concentra em apresentar à plateia um pequeno bloquinho onde surgem, página a página, imagens que reconstroem sua história com o pai. O efeito se assemelha bastante ao da técnica de animação de stop motion, pela qual uma narrativa é montada fotograma a fotograma ou quadro a quadro. O virar constante das páginas em sequência cria a ilusão de movimento – do personagem em busca do próprio pai e, por extensão, do ser indo em direção ao mais ancestral dos princípios fundadores.
Sandra Vargas conduz a cena mais naturalista de todas. Vestida de vermelho, sua personagem está sentada em uma antiga poltrona, tendo sobre o colo uma velha caixa de guardar papéis, de onde retira muitas cartas antigas, lidas com incontida emoção. Uma a uma, as cartas vão recompondo uma história de ordem pessoal que projeta, em escala maior, a terrível trajetória do Chile (e de todo continente latino-americano) nas décadas de 1970 e 1980. Os temas da família, da viagem e do exílio, revelados nas missivas, entrelaçam-se indiretamente, como não poderia deixar de ser, com temas como arbítrio, violência e opressão. A leitura sucessiva daqueles velhos papeis aos poucos faz reviver a figura da mãe exilada que adoeceu de saudade das filhas, acentuando o itinerário do ser em direção à fonte, à ordem original.
Um chapeleiro antigo onde repousa um solene guarda-chuva serve de mote à cena desenvolvida por Mauricio Santana, cujo personagem – falante, seguro, ligeiramente arrogante – evoca uma narrativa de uma improvável aventura ligada a um mergulho no mar. Tal como na cena de Liana Yuri, o que sobressai aqui é o discurso, cujo objetivo parece ser converter as coisas de que trata em objetos de arrematada loquacidade. Não à toa, a história contada por esse narrador fala de um ato de nudez, estando ele impecavelmente vestido da cabeça aos pés. Estamos aqui no reino do ser fadado à narratologia, como defendia Roland Barthes.
Vale destacar o trabalho do iluminador Renato Machado e do figurinista João Pimenta, responsáveis pela ambientação das cenas, que buscaram convergir o teor dramático dos depoimentos pessoais de cada ator com o aspecto visual das cenas.
Se, ao final de Através do espelho e o que Alice encontrou lá (uma viagem rumo ao autoconhecimento que a reflexão diante do espelho pode proporcionar) a pequena protagonista criada por Lewis Carroll descobre curiosamente que todos os poemas que ela ouviu serem recitados em suas aventuras até ali tratavam, de algum modo, de peixes (animal ligado ao tópico da morte), os espectadores mais atentos de Sala de estar irão logo perceber que em cada uma das cenas do espetáculo está presente, em meio aos demais objetos, uma efígie ou pequena escultura de leão. Naturalmente, porque a figura do rei dos animais representa o poder e a força que devem servir de antídotos contra todas as fragilidades reveladas no espetáculo. Mas possivelmente também porque o leão simboliza a ressureição (O cristianismo primitivo conheceu a prática do ornamento de túmulos com leões de modo a garantir a ressureição posterior do morto). E renascer é próprio tanto do personagem teatral quanto do ser, como apregoa a metafísica impregnada em cada quinquilharia exposta aqui.
Ao sair do espetáculo, o espectador há de concordar com a poeta curitibana Alice Ruiz: “É de estarrecer. Estar e ser em inglês é a mesma coisa”. Como idênticas também são, segundo o Sobrevento, as salas de estar e de ser.
Sala de Estar
Quando: até 31/8, sábados e domingos, às 18h e 20h
Onde: ESPAÇO SOBREVENTO – Rua Coronel Albino Bairão, 42
Quanto: gratuito
Info: (11) 4328-3589 ou info@sobrevento.com.br
welingtonandrade@revistacult.com.br