Matheus Guménin Barreto: poiesis em meio à noite

Matheus Guménin Barreto: poiesis em meio à noite
O poeta Matheus Guménin Barreto (Foto: Arquivo Pessoal)

 

 O mês de julho chegou ao Brasil em 2020 envolto em muitos ruídos. Uma peste mata a população – sobretudo sua parcela mais pobre – na casa das dezenas de milhares com a ajuda de uma pandemia; a Amazônia arde em chamas, enquanto seus povos indígenas são impedidos de chorar seus mortos pela ineficiência de um Estado que há séculos os coloniza e extermina; a polícia encontra, em uma casa luxuosa na cidade mais rica do país, uma idosa escravizada que estava encarcerada por seus patrões em um quarto sem banheiro nos fundos do quintal, senzala moderna, que também servia de depósito de tudo o mais que era considerado velho e inútil à Casa Grande. Uma nuvem de gafanhotos, olhando o país, prefere dar meia-volta e pedir asilo ao Uruguai – quem ousaria empestar a peste? Em meio a esse cenário, somos surpreendidos por uma notícia da editora Corsário-Satã: a publicação de Mesmo que seja noite, de Matheus Guménin Barreto, que não poderia sair em melhor hora.

Digo isso sem ironia alguma. Desde seu título, o livro é uma reação aos pressupostos do estado das coisas que nos levaram ao ponto em que nos vemos, sem sabermos muito bem para onde olhar em busca de um refúgio. O livro é também, como é o caso de outros trabalhos do Matheus, excelente poesia. Combinar esses dois elementos não é tarefa fácil, isso todos nós sabemos; mas Mesmo que seja noite chega lá por entender que a tarefa da poesia não é propor respostas, mas traçar caminhos e caminhos para caminhos. Levando a sério a compreensão de poiesis como um fazer, o livro reflete e age sobre o fazer como um todo – o fazer do tempo, dos corpos e, principalmente, da matéria que permite que tudo isso exista, a linguagem.

A referência que Matheus faz, no título da obra, ao poema que talvez seja o mais famoso de San Juan de la Cruz (1542-1591) contém todos os elementos necessários para que se compreenda a operação que o poeta cuiabano propõe em seu livro. O poema de Juan de la Cruz é composto por tercetos que se encerram com o refrão “Aunque es de noche”. Sua construção poético-retórica se desenvolve da seguinte maneira: os dois versos mais longos do terceto referem-se a Deus, a fonte que é origem e conhecedora de todas as coisas, e que se apresenta no “pan de vida” da eucaristia; em seguida, vem o refrão concessivo, que reconhece que o enunciador e sua audiência estão em meio a uma noite metafórica. O mundo secular, com todos os seus problemas e sofrimentos humanos, representado por essa noite, é reiterado diversas vezes no poema, sempre antecedido de um “mesmo que”, cuja função é subordiná-lo à existência divina afirmada e reafirmada nos dois versos que o antecedem. Dessa maneira, o poema recria uma trindade em sua forma, de modo que o divino, presente em dois de seus versos, sobreponha-se ao que há de humano no terceiro – ainda que esse mundo seja matéria e seja mortal, como o pão que se come na eucaristia, ele partilha da origem de tudo o que existe, da fonte que não precisa de chão para se firmar, do círculo com centro em toda parte e circunferência em parte alguma. Unidas, as afirmações e contradições dos tercetos produzem o mistério do todo que está presente inteiro em toda parte.

Mas isso é San Juan e é século 16. O que Matheus Guménin Barreto faz com essa referência é inverter o pressuposto da trindade na forma do poema de San Juan: traz ao título não a fonte, mas a noite. Mesmo que seja noite não se apresenta como uma superação da noite que é a existência humana, mas como a constatação de que essa noite não é necessariamente seguida por um dia. O humano e, mais do que isso, a materialidade das coisas é que são o tema e o meio a partir do qual essa poesia é construída. O enunciador do livro, enquanto reflete sobre a linguagem, mas também sobre muitos aspectos da vida em nosso mundo, que felizmente é mortal, busca a poesia com as mãos. Não com as pontas dos dedos, ou com a alma, mas com as mãos inteiras – uma linguagem tátil, matéria que pode ser alcançada, tocada, sentida em todas as suas limitações e produzida pelo toque.

Nesse fazer poético, o lugar que cabe às essências e ao próprio deus é sucintamente indicado no título de uma das partes do livro, Deus in machina. Não há mais lugar para o acaso que resolve artificialmente todos os conflitos humanos em um ato da providência divina, ex machina. Agora, deus e qualquer outra abstração são apresentados in machina, dentro desse mecanismo discursivo que é radicalmente humano e material. O poeta impõe a esse círculo que se quer infinito uma circunferência forjada pelas mãos humanas –

 

“mãos que levantaram-se e caíram
nos afazeres
e no fazer do tempo
que ele é por elas feito e elas por ele
engolidas”

 

 

Apesar de ser uma constante investigação sobre a linguagem, Mesmo que seja noite é tudo menos um livro verborrágico. Nas pouco mais de cinquenta páginas que o compõem, o poeta é menos ouvido que visto. Seu corpo é presente em vários momentos dos poemas, seja quando reflete sobre suas mãos, ou quando descreve o atrito de seu corpo com o do amado. Suas mãos traçam no corpo do amado, entre suor e gozo, mapas de mundos por vir. A cosmogonia proposta tem como fundamento a carne: as bocas que existirão, os pés que andarão são modelados a partir do contato de pele com pele, homem com homem, sem intervenção divina. Cabe aos homens traçar o futuro.

 

“O mapa do corpo sob as mãos
desenhando itinerários bruscos
mornos
contornando bocas que não existem, mas que existirão
pés que não andaram, mas andarão
sexos que não se apontaram
mas que se apontam, agudos, sob o toque
devagar
como o encontro de um trópico último com um último meridiano. 

Os olhos nublados de algo que não se adivinha
o homem tem o homem nas mãos
e as mãos seguem seu cego itinerário provisório
apagado sempre pelo toque próximo e sombra e esquecimento –
apagado como a praia e o vento que a inaugura.”

 

 

Mesmo que seja noite aponta caminhos para que possamos repensar nossa relação com a linguagem, os corpos e o mundo miserável que nos cerca. Não nos apresenta qualquer resposta, seja ela fácil ou difícil, sobre o que é preciso fazermos. O livro faz o que é possível à poesia fazer – e isso não é pouca coisa. Ele nos mostra que, mesmo que seja noite, é possível e necessário agir, aceitar o que há de humano, mortal e frágil em nós, ainda que não haja qualquer possibilidade de redenção. Talvez justamente por não haver qualquer possibilidade de redenção. O mundo é a noite, é a pulsão de morte e a terra arrasada que nos cerca. O que nos resta é sermos humanos, agirmos como humanos, como os seres constituídos de matéria que somos. É devolver às nossas mãos o poder de interpretar, moldar e produzir mundos futuros, sabendo que seremos, por fim, derrotados. É perder o medo de agir justamente por não ter mais esperança na vitória. Por isso, repito, a Corsário-Satã não poderia ter publicado esse livro em melhor hora: Mesmo que seja noite é um livro necessário em nossos tempos – tão necessário quanto qualquer livro pode ser, e é.

Mesmo que seja noite
Matheus Guménin Barreto
Editora Corsário-Satã
56 páginas – R$ 36,90

Caio Cesar Esteves de Souza é doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo e atualmente realiza outro doutorado na Harvard University.


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