Um exercício de imaginação raciocinante
Cena do espetáculo "Material Bond" (Foto: Bob Sousa)
“O poder imobiliza, fixa num gesto único – grandioso, terrível ou teatral e, afinal, simplesmente monótono – a variedade da vida”.
Octavio Paz, O arco e a lira.
Há que se lastimar o fato de um espetáculo tão importante como Material Bond, da Kiwi Companhia de Teatro, ter permanecido pouquíssimo tempo em cartaz na cidade de São Paulo. Após sua pré-estreia, em junho de 2016, no 20º Festival da Cultura Inglesa, a montagem cumpriu temporada de 2 a 30 de março deste ano na Oficina Cultural Oswald de Andrade, realizando ali somente treze apresentações. A exiguidade de sessões que vem pautando a carreira de muitas peças, embora plenamente justificável do ponto de vista administrativo e econômico, configura-se, todos sabemos disso, em um grande entrave para a vida cultural da cidade, uma vez que praticamente acaba submetendo público, imprensa, crítica e demais agentes da atividade teatral à lógica do consumo acelerado de espetáculos-eventos, quando não eventuais, – tão própria da indústria cultural e do mercado de entretenimento.
A primeira grande qualidade da iniciativa da Kiwi foi a de tornar um pouco menos desconhecido o nome do dramaturgo inglês Edward Bond (1934) entre nós: houve até agora pouquíssimas encenações de suas peças no Brasil; tais obras – que já perfazem cerca de 50 títulos – permanecem ausentes do mercado de livros em língua portuguesa; seus outros escritos (artigos teóricos, poemas, cartas…) encontram-se em idêntico estado de invisibilidade editorial. Em se tratando de um autor cuja obra longeva e profícua discute com uma radicalidade toda própria a relação do teatro com a sociedade, tal lacuna é mesmo para ser lamentada. (Vale notar que Edward Bond esteve em São Paulo em outubro de 2001 para participar do ciclo de conferências e debates “O teatro e a cidade”, organizado pelo Centro Cultural São Paulo durante a gestão do então secretário municipal de cultura Celso Frateschi. Cumpre observar ainda que, três anos depois, a SMC publicou sob a forma de livro as catorze conferências realizadas, dentre as quais, “Considerações sobre o teatro atual”, proferida pelo dramaturgo londrino).
A segunda qualidade do projeto diz respeito à natureza especial do material apresentado, que reúne textos teóricos, fábulas, poemas e letras de canções de Edward Bond, e não as criações propriamente dramáticas do autor. Aqui, o roteiro assinado por Fernando Kinas (também responsável pela tradução dos textos ao lado de Marcos Steuernagel, Filipe Vianna e Eduardo Contrera) não poderia privar de maior articulação poética e política. Grande conhecedor da obra do dramaturgo inglês, Kinas concebeu uma espécie de recital disforme em que o material original de Bond se relaciona com imagens em vídeo que revelam a brutalidade das ações policiais e a criminalização dos movimentos sociais no Brasil, por exemplo, dentre outras fontes fílmicas, e com composições musicais variadas (The people united will never be defeated, de Frederic Rzewski; Threnody for the victims of Hiroshima, de Krzysztof Penderecki; Music for pieces of wood, de Steve Reich, Foreign accents, de Robert Wyatt e Lascia ch’io pianga, de Händel), além da trilha sonora original composta pelo multi-instumentista Eduardo Contrera, que está o tempo todo no espaço cênico ao lado da atriz Fernanda Azevedo. Desse modo, cena, imagem e música se sobrepõem, fazendo com que o épico-narrativo se cruze com o lírico não somente no âmbito do discurso maior da empreitada, mas também no das técnicas especificas empregadas. Nosso desejo, quando essa experiência multissensorial termina, é o de conhecermos mais de perto a obra do autor, cujo pensamento – somos levados, mais do que entender, a sentir isso – sempre esteve preocupado em escrutinar o humano e a justiça, revelando em positivo, como é próprio das estratégias estilísticas e formais do autor, o desumano e a injustiça.
À pergunta inicial – “Como é possível ser humano em um mundo desumano?” – sucede uma cena de origem –“Eu nasci às oito e meia da noite, quarta-feira, 18 de julho de 1934. Tinha uma tempestade” -, seguida por algumas especulações a respeito de muitos temas, quase sempre sintetizadas por máximas e sentenças judicativas, e também judiciosas: “Atores, não tentem tornar possíveis suas personagens”, Quando o conhecimento é ensinado por ignorantes, não devemos ter medo somente dos que queimam livros, mas também dos construtores de bibliotecas”, “O reverso de todas as leis é a justiça”, “A violência gerará violência até os homens se conhecerem”, “Nós não podemos falar nada sobre nós e a nossa época, sem começarmos por definir a loucura”, “A catástrofe tem algo de terrível: nós pensamos que ela não vai acontecer, e quando ela acontece… parece que ela faz parte da ordem natural das coisas”. Até que a pergunta inicial retorna à cena, reconfigurada (“Aqueles que não lutam pela grande causa que começa com poucos restos no prato da criança devem lutar com sua própria desumanidade para ser humanos — mas como pode a desumanidade lutar consigo mesma para ser humana?) e desdobrada em uma afirmação de natureza metalinguística (“Esta é apenas uma peça! Teatro é a luta da realidade consigo mesma!”) – quando, então, a cena de origem é reapresentada e o ciclo dramatúrgico (mimetizando o da própria vida) retomado em chave sintética, até que a peça se encerre.
Tanto no plano da construção dramatúrgica como no da realização cênica, Material Bond representa um genuíno exercício de “imaginação raciocinante”, como postulado pelo próprio autor. “As pessoas costumam dizer que há algo chamado razão e outra coisa chamada imaginação. E que elas estão em oposição. Para mim essa oposição não é verdadeira: a forma fundamental de a mente funcionar é a imaginação à procura da razão”, afirmou o dramaturgo no debate de que participou em São Paulo por ocasião do ciclo “O teatro e a cidade”. Uma vez que para ele a imaginação representa a faculdade humana mais desejosa de experimentar o conceito do Nada (lembremo-nos de Demócrito: “Nada é mais real do que o nada”) e que as mentiras que a cultura humana conta sobre o Nada acabam virando verdades sociais, cabe à arte do teatro descolonizar o Vazio e combater as grandes Mentiras por meio do exercício da Imaginação, que irá fazer com que o palco se apresente sempre como um campo de batalha onde seja possível desembaraçar as complexidades do humano e confrontar as sociedades não justas e não criativas.
Assim é que Material Bond, no qual se cruzam o teatro, a performance, a intervenção e o show, parece propor uma pergunta essencial: que lugar a arte ocupa na sociedade contemporânea? Questão que se desdobra nesta outra: a arte ainda é capaz de se opor à força-motriz direcionada para a conformidade que caracteriza a vida social nos dias que correm? O modo muito particular encontrado pela Kiwi para tentar responder a tais indagações foi conferir a esse material – cuja combinação, pautada pela radicalidade estética, dramatúrgica e cênica, é rara entre nós – a atmosfera de uma teatralidade provocadora e emocionante, que atinge não somente nossa razão, mas também nossa sensibilidade – repercutindo a imagem por meio da qual a dramaturga francesa Martine Millon definiu a obra de Edward Bond: a de um teatro que dá corpo às ideias.
Corpo, presença e poesia. Se, para Hans Ulrich Gumbrecht, a atividade lírica é também um modo de atenção, e o universo simbólico de Edward Bond jamais se desvincula da imaginação poética, a confrontação proposta por este Material Bond não poderia soar senão como um curto-circuito em nossa atenção para com o mundo circundante e em nossas expectativas culturais. Em A imaginação educada, Northrop Frye defende a ideia de que “a literatura como um todo não é a exposição de peças enfeitadas com fitinhas azuis e vermelhas, como um concurso de gatos, mas o escopo da imaginação humana articulada conforme se estende desde as alturas do paraíso até as profundezas do inferno imaginativo”. Ao que podemos concluir: a imaginação poética de Edward Bond funciona como uma espécie de apocalipse – etimologicamente falando, uma revelação do homem para si mesmo. Uma hecatombe que o convida a testar o sentido do humano.