Marielle e Anderson: as várias faces políticas de um assassinato

Marielle e Anderson: as várias faces políticas de um assassinato
Os corpos de Marielle e Anderson foram velados na Câmara Municipal do Rio, que reuniu multidão em protesto (Foto Wilson Junior)

 

Há muitos ângulos possíveis para se abordar o assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes na cidade do Rio de Janeiro. Todos eles fecundos e, possivelmente, polêmicos. Trata-se, inequivocamente, de mais um caso violência urbana nas cidades brasileiras, onde a morte por armas de fogo se tornou uma desoladora banalidade, assim como o nosso medo cotidiano de morrer assassinados. Banal a tal ponto que se popularizaram as estropiadas expressões “virou estatística” e “entrou para as estatísticas”, para dizer que cada evento singular é esvaziado de todo o sentido de tragédia e de singularidade para se incorporar à insignificância de ser apenas mais um número em um montante imenso de outros números, todos iguais e indiferentes.

Outro ângulo razoável é a discussão de políticas de segurança pública, uma vez que, em primeiro lugar, o assassinato acontece justamente no Rio e no contexto de um “laboratório” de combate ao crime excogitado pelo governo Temer, que recorreu à medida extrema e sem precedentes de nomear um interventor militar para assuntos de crime urbano. Nesse sentido, a execução da vereadora põe em xeque uma política pública que o governo Federal ainda tenta vender como o novo fármaco universal, e que é inteiramente baseada em exibição de força militar e presença policial ostensiva. Não é à toa que todo o governo federal foi mobilizado antes do fechamento das edições dos telejornais da noite seguinte à execução, para mostrar o seu empenho para elucidar o crime e punir os responsáveis. E em uma coleção de declarações e promessas de ações absolutamente sem precedentes, ao que me lembre. O governo sabe que a política pública em que aposta a maior parte das suas fichas acabou de subir no telhado. Assim, precisará mostrar resultados neste caso ou perderá completamente o argumento.

Além disso, se comprovada a suspeita de que haveria mão militar envolvida no crime, restaria o terrível paradoxo: a polícia nos protege dos bandidos, mas quem nos protege da polícia? O tema da violência policial é um desses tópicos absolutamente disponíveis no imaginário social brasileiro. Mas o tema da polícia como organização criminosa, da polícia que cala quem a investiga ou quem denuncia abusos e crimes praticados por membro do corpo policial, tem um potencial destrutivo muito maior. A violência policial significa para muitos simplesmente a polícia fazendo o seu trabalho, confrontando “a bandidagem”, e tem como contraponto o número de policiais mortos nas cidades do país. Mas policiais organizados para matar testemunhas, acusadores e políticos é a quintessência da representação da barbárie e da falência do Estado. Não é à toa que, a julgar pela repercussão internacional do episódio, meio mundo registrou a sua veemente rejeição ao assassinato da vereadora do Rio, como exemplo de um padrão civilizacional incompatível com o Estado de Direito.

Há outras abordagens possíveis, inclusive as que veem no episódio mais uma ocorrência do fenômeno mais geral da violência que se abate, inexorável, sobre as minorias deste país. No caso em tela, sobre mulheres, negros e moradores das zonas pobres e desassistidas das nossas cidades. Minorias tratadas como desnecessárias e descartáveis pelos que governam e pelas instituições do Estado, uma vez que a ausência de providências acaba por se tornar uma paradoxal política pública que admite como possível, esperável e normal que uma parte da população seja descartada cotidianamente pela violência urbana crescente. Chegamos a um estágio em que é preciso que se produza de uma só vez uma pilha de corpos de pobres, pretos e habitantes da periferia para provocar a comoção e o clamor dos meios de comunicação e do público e a reação das autoridades, enquanto basta um único episódio da mesma violência em outras regiões da cidade ou com pessoas de famílias abastadas para que o mundo entre em ebulição. “Os pobres são descartáveis, podem ser substituídos, de onde eles saem há muitos ainda, todos iguais, a sociedade não sentirá a sua falta”, gritam a indiferença social, a impassibilidade política e a conivência das autoridades diante do crime que, todo santo dia, passa nas periferias e leva uma fração dos seus habitantes. Mulher, negra e da periferia, Marielle, mas também Anderson Pedro, são a metonímia completa da sua própria circunstância social, a parte que representa o todo. “Marielle, presente” é, neste sentido, mais uma ocorrência do “Somos todos Amarildo” e de outras fórmulas com que nós empaticamente nos identificamos com os que regularmente são tratados como descartáveis e substituíveis.

Mas há ainda um enquadramento do fato, que tem a ver com políticas e mentalidades, que eu não gostaria de perder de vista. O Brasil tem assistido, nos últimos anos, à autoafirmação, primeiro, e ao crescimento acelerado, depois, de um pensamento extremamente hostil e intensamente reativo a algumas premissas que as sociedades ocidentais precisaram de cerca de cinco séculos para estabelecer. Algumas dessas premissas têm uma história ainda mais longa e respondem ao que, genericamente falando, seria o humanismo cristão. Outras, vêm da reflexão posterior às guerras religiosas europeias da segunda metade do século 16, do horror à intolerância e da afirmação da disposição, consciente e proposital, de reconhecer a legitimidade das ideias e dos comportamentos dos outros como característica fundamental de uma sociedade civilizada. Outras, enfim vêm das duas cepas que constituem as bases das instituições políticas que hoje predominam: o liberalismo (político) e a democracia. Do primeiro, vêm ideias como direitos e garantias fundamentais, Estado de Direito, autonomia, liberdades; da segunda, vem a ideia de igualdade política, de soberania popular, de sufrágio universal, de liberdade política, de sociedades cosmopolitas e de Direitos Humanos. Demorou séculos para que o liberalismo e a democracia colidissem, reagissem um à outra e, enfim, se acomodassem um à outra no padrão das democracias liberais que conhecemos.

Pois o Brasil nos últimos anos virou um torvelinho. A “democracia como valor universal”, ideia que se vinha propagando sem desafiantes, nos últimos 30, 40 anos, passou a ser desafiada à luz do dia. Não formalmente, vez que a palavra democracia mantém o seu fetichismo político que nem os bolsonaristas mais sombrios nem a esquerda mais autoritária conseguem explicitamente descartar; mas materialmente, à medida que se passou a abertamente desafiar um grande número dos seus componentes essenciais: a soberania popular, a reivindicação de igualdade política de grupos minoritários e vulneráveis, os Direitos Humanos. Também o liberalismo político é posto, solidariamente, em xeque pelos que explicitamente rejeitam, para uma parte da sociedade, tantos as garantias individuais como o devido processo legal, e que não veem problema em dispensar os estorvos (quer dizer, limites) impostos pelo Estado de Direito. O neoconservadorismo brasileiro, cuja ponta-de-lança neste momento é agregada ao redor do bolsonarismo, é uma mentalidade de reação veemente à mentalidade que sustenta a democracia liberal, convenientemente abrigada no cavalo de Troia do antipetismo, do ódio à esquerda e do anti-intelectualismo que hoje dominam a cena pública brasileira.

E o que isso tem a ver com a morte de Marielle e Anderson Pedro? Muito. Há dois dias não se fala de outra coisa em mídias sociais como Twitter, Facebook, Instagram e YouTube, e nos comentários online das versões digitais dos jornais. Não, não é que as pessoas surtaram em ambientes digitais ou que este represente uma esfera de discussão política particularmente malvada e artificial. O que o debate em ambientes digitais nos dá é simplesmente a possibilidade de acompanhar o que as pessoas e discutem em todos os outros ambientes que constituem a sua vida. Neste sentido, a “etnografia” da expressão e da discussão política em ambientes digitais nos revela o estado da mentalidade política brasileira, de uma forma sem precedentes.

Pois o que se vê nestes ambientes é o modo como os conservadores de direita estão elaborando a notícia da morte de Marielle Franco. Importa o que eles pensam sobre isso? Sim, porque o tema da violência urbana é hoje, provavelmente, o coração da posição ultraconservadora crescente no Brasil. É o tema em que eles estão em casa e sobre o qual consideram que têm o que dizer. É aqui, ao redor de uma abordagem do tema do crime urbano, que eles traçam um círculo e estabelecem a diferença entre “nós, as pessoas de bem” e “eles, a esquerda defensora da bandidagem e dos Direitos Humanos”.

A primeira onda de reação foi à base do “ela merecia morrer”. Por que merecia? Um certo Rodrigo Matias, diante da notícia do assassinato, ponderou: “A questão é simples, você chora por um nazista morto? A mesma pergunta deve ser feita quando um comunista morre…. Comunismo, nazismo, fascismo, etc. São criminosos, inescrupulosos inimigos da humanidade e dos pilares que mantêm a civilização em ordem! Não são dignos de pena e nem de compaixão!”. Do ódio à “bandidagem”, a nova direita passou rapidamente ao ódio aos “defensores de bandidos”, quer dizer a toda abordagem que diverge da solução “prende e arrebenta”, seja ela meramente “garantista” (devido processo legal e essa tranqueira liberal) seja ela orientada pela premissa de que o apenado continua um ser humano e a sua dignidade continua valendo (os “direitos humanos”).

A segunda onda consistiu em denunciar a seletividade da indignação. “Morrem milhares de pessoas todos os anos no Brasil, vítimas da violência e ela não é especial! Segue o fluxo!”, publicou um bolsonarista. Outro, rematou: “A população tem todo direito de não gostar de bandidos e muito menos de seus defensores – e muito menos de uma pessoa com ideias tão abjetas como as desta senhora. Lamento o assassinato dela, como lamento o assassinato de qualquer um. Queria que ela vivesse para ver a esquerda sucumbir, mas infelizmente ela se foi”. A direita conservadora se sente literalmente aviltada porque a sociedade se ergueu em um fluxo de indignação quando quem morreu foi alguém que tão fortemente simbolizava a detestável posição de questionar a arbitrariedade policial e reivindicar direitos e respeito para a população pobre, vítima habitual desta violência. Ou seja, e para encurtar,  a direita se sente lesada por ver a sociedade indignada pela morte de uma “defensora de bandido”.

Como o curso da indignação aumentou e começou a envolver figuras importantes do jornalismo, do Judiciário e da política, o passo seguinte foi passar a acusação de uso político da morte da vereadora para a conta da esquerda. O site O Antagonista, hoje um dos grandes porta-vozes da posição iliberal e antidemocrática, acolheu um número espantoso de comentários celebrando o assassinato “da esquerdista”. Depois que o fato foi amplamente divulgado, adotou o terceiro enquadramento e tascou a chamada: “A vereadora Marielle Franco continua a ser assassinada”, assassinada pela esquerda que explora a sua morte contra a direita celebrante. O curioso é que um dos primeiros comentários à publicação em que a acusação era transferida à direita, foi este: “Minha opinião: Pelas posições que ela (e a #esquerda) tomam SEMPRE em favor do #criminoso, gostei do que houve. Antes eles, do que eu”. O Antagonista quis se distanciar da “horda que infesta as áreas de comentários dos sites de notícias”, mas a verdade é que a sua área de comentários e os seus perfis em sites de sociais são hoje das principais esquinas digitais onde a direita feroz se reúne para trocar ideias e afetos e estar na companhia dos seus semelhantes.

O assassinato de Marielle e Anderson é um estorvo para a direita conservadora. Primeiro, porque lhes retira o monopólio do tema do crime. De repente, o que parecia ser uma seara exclusiva é agora invadida pelos liberais e pela esquerda. Já não bastava Temer ter invadido a praia de Bolsonaro neste tema? Segundo, porque o enquadramento dominante nos meios de comunicação e nas mídias digitais não está sendo favorável à abordagem “casca grossa” com a qual os conservadores se sentem familiarizados. Ao contrário, o ponto de vista “frouxo”, dos defensores do Estado de Direito é que vai prevalecer.

Por fim, tendo sido a vítima do crime justamente o mais completo COMBO antagonista do ponto de vista adotado pela direita – trata-se de mulher negra, política, do PSOL, de esquerda, militante de Direitos Humanos e da luta por reconhecimento dos homossexuais -, a direita vê o seu tema predileto se generalizar a partir de uma perspectiva que lhe é francamente desfavorável: a acusação à polícia, a reiteração da defesa dos Direitos Humanos e da necessidade de proteção das minorias, o reconhecimento pelo trabalho de uma defensora de grupos marginalizados, pelo feminismo e pelos temas liberais de direitos e garantias individuais. Não é à toa que Bolsonaro, até hoje, não tenha se apresentado para comentar o episódio. E que outros epígonos da direita zangada tenham se limitado a dizer que a esquerda está “explorando politicamente” o episódio. Isso tudo é sintoma claro de que o modo como a sociedade majoritariamente está lidando com o assassinato de Marielle e Anderson perturba, e muito, as bandeiras, as narrativas e as representações da direita conservadora.

(10) Comentários

  1. O melhor que já li até agora sobre o chocante assassinato.
    Permita -me compartilhar (já compartilhando…).

  2. Além das fecundas facetas abordadas, o assassinato de Marielle e Anderson revela, ainda, a forma como é tratado um dos mais pungentes episódios de nossas vidas: a morte. Enquanto que no noticiário e nos comentários dos leitores da direita zangada leem-se praticamente referências exclusivas a Marielle — e sua condição de “defensora de bandido” —, nos veículos de esquerda há a preocupação de se pontuar que foram dois os assassinatos, o da vereadora e de seu motorista Anderson Gomes. Essa diferença de tratamento revela, um pela inclusão e outro pela negação da morte de alguém “subalterno”, que há muito tempo a ala reacionária da sociedade trocou o sentimento de humanidade pela ausência absoluta de qualquer sentimento que remeta á alteridade.

  3. O texto tem uma análise muito bem elaborada e abrangente do problema da morte de Marielle. Há para mim mais uma questão. Marielle era mulher, negra, jovem, bonita, inteligente e com formação superior. Era uma liderança que despontava forte e contundente. Viva, por certo iria construir uma carreira política séria poria em cheque a direita. Isso a direita, os golpistas, policiais, militares, maçons, machistas tem medo e não admitem.

  4. Concordo com sua posição Wilson . No Brasil, nos últimos anos, temos uma disseminação do ódio de fanáticos e psicopatas que imputam as pessoas que se envolvem com movimentos social como sendo estas vagabundas…

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