Para agarrar os sonhos e cavalgar o dorso dos tigres

Para agarrar os sonhos e cavalgar o dorso dos tigres

 

Querer dissimular o ódio dentro de si, sufocá-lo, é algo mais desgastante e, evidentemente, menos prazeroso do que simplesmente usufruir, sorvê-lo até o limite da sabotagem, da autocensura.

Em outras palavras, qualquer ódio é justificável. Imaginem uma hidroelétrica. Agora, imaginem o ódio como a força que movimenta as turbinas dessa Itaipu dentro de seu peito, qual o sentido da represa senão gerar movimento e energia? O problema todo é iluminar cemitérios (corre-se o risco), mas está valendo: pela simples ação de odiar, pelo fato de soltar as rédeas e deixar o ódio correr solto.

Eu odeio, mas não sei odiar. Bem, isso não interessa. Não estou aqui para falar dos meus cemitérios iluminados.

Voltando. O que eu quero dizer é que, uma vez que o ódio seja bem alimentado e bem distribuído, qualquer ódio será autossuficiente. Se embalado com rancor tanto melhor, e mais: qualquer pretexto é válido para odiar e justifica-se por si mesmo, tanto faz se as “razões” que brotam desse ódio são oceânicas ou microscópicas, legítimas ou ilegítimas. Portanto, o ódio não precisa nem de esclarecimentos nem de álibis. Sob esse ponto de vista, o ódio é amoroso e anfitrião. Independentemente da gravidade do ocorrido, o ódio não obedece hierarquias, nem faz distinções de gravidade. Por exemplo, odiar a velhinha que fechou a porta do elevador na sua cara é a mesma coisa que odiar o político que trocou seu voto por um loft em Miami.

Qual a diferença da esposa que  traiu o marido com o entregador de pizzas para o vizinho do 52, que acende incenso todo final de tarde? Em se tratando de ódio, nenhuma. Odeia-se e ponto final.

O ódio é um sentimento gratuito e democrático – e é recíproco e desproporcional. Por si só, não passa de nuvem, fútil e torpe, à guisa dos crimes que cometemos em seu nome. O ódio seria irrelevante se não o remoêssemos, e é aí que mora a besta: no apto. 52. O idiota metido a zen-budista, seria capaz de empalá-lo com as varetinhas de incenso, acredite nisso.

O remoer é o que mata, é o que ocupa o lugar da contemplação, do recreio merecido, daquilo que os místicos mais sádicos chamam de paz. E esse remoer pode ser experimentado, muito mais violentamente, através da busca de sentimentos que tenham como objetivo anular o ódio. A compaixão e o perdão são como gasolina na fogueira – e a culpa é a cereja em cima desse bolo explosivo. Se voce não consegue extrair tesão da culpa (isso é para profissionais), tente ao menos exercitar o amor:  é o caminho mais fácil para se chegar ao ódio. Sabe por quê?

Porque o amor exige empenho, disciplina e trabalho. Ou não exige nada. Somente os CDFs e os autistas amam. Para o entregador de pizzas, e para o babaca do 52, e para os masoquistas em geral, o amor é o caminho mais fácil para se chegar ao ódio, porque a preguiça irá fatalmente aproximar esses dois sentimentos, isto é, uma vez estabelecida a preguiça e a negligência, odiamos com mais fé e propriedade, e – por exclusão – o amor se transforma numa caricatura. Daí a confusão entre amor e ódio, daí o apego àquilo que não tem, digamos, aderência. O umbigo, as vaidades, os pet shops e as novelas do SBT nascem desse amor caricato.

No jogo de tentativas e erros, erramos. O ódio sincero, aquele que brota do coração apaixonado, está ao alcançe de poucos iluminados – é quase um gesto de amor, sobretudo se se voltar contra si mesmo.

Um parêntese. Quando falo em gesto de amor, não estou falando do amor-caricatura supracitado, mas falo do amor genuíno, do amor desprendido – porque o único amor que conta é o gratuito e o desprendido, o resto é troca de interesses, autismo, sadomasoquismo e disciplina. O resto é 100% da humanidade. Pois bem, fechado o parêntese, vos digo: esse amor, além de ser um sentimento quase angélico e, portanto, desumano, é praticamente irmão gêmeo do ódio sincero, com a diferença de que é muito mais seletivo, excludente e cruel do que o ódio, apesar da sinceridade. O amor não remoe.

E mais uma coisa. Experimentar o ódio em toda a sua plenitude (consumi-lo na própria carne) não é uma garantia de libertação, tampouco um passaporte para o sublime, no sentido de que somente quem odeia é capaz de amar – o amor não está nem aí para o sublime, o amor é indiferente à glória e à transcendência humana, o amor é barra-pesadíssima, escarnece do homem e é impiedoso uma vez que não odeia. O amor que experimentamos, o amor caricato, só não acaba porque somos infantis e temos a capacidade de chafurdar e nos regozijar no ridículo que ele nos oferece. Daí vêm o ciúme, as chantagens, as oficinas de tapioca, as entrelinhas, os filhos. E, assim, o ódio permanece escravo do amor. O reinventa.

Foi a carga amorosa que derrubou Lúcifer. Foi o amor demais que incendiou suas asas e o precipitou entre nós. Alguém duvida disso?

Em outras palavras: o ódio é apenas um placebo dado por Deus ao diabo para distrai-lo de sua incapacidade de amar. Nós somos esse placebo, a imagem e a semelhança – feitos de barro misturado com estrume (para dar uma liga), ilusão e asas incendiadas. De modo que  seria uma bobagem encarar o ódio – somente porque é eminentemente humano e diabólico – como uma espécie de fase que antecede o amor. O ódio, como eu disse acima, é escravo, é algo mais comezinho, mais fácil, mais tátil, menos hipócrita e, incomparavelmente, menos intenso que o amor, em que pesem o rancor, o ressentimento e a vingança fulgurantes e as obras que se intentam – Francis Bacon que o diga – a partir desses sentimentos, apesar disso, odiar é algo que reconcilia o homem com o pobre-coitado que ele é, odiar é cumprir a sentença que foi imposta como o pior dos castigos aos homens, qual seja: conhece-te a ti mesmo.

Bem, o leitor perguntaria: onde você quer chegar? No sacolão da esquina. Isto é: trato de mesquinharias e de milagres, estou falando da pequenez do ser humano, de vestir a carcaça sobre a alma doente, de viver sem amor e administrar os holocaustos de cada dia, falo dos cadarços do Bukowski. Trato do alvorecer da indiferença, de usufruir do ínfimo, e, mais ou menos como dizia Nietzsche, falo de “agarrar sonhos e cavalgar o dorso dos tigres”. Tô falando de seguir em frente apesar dos pesares, de ir ao sacolão e escolher os melhores tomates e, de repente,–  por quê não? –arriscar uma gentileza com um travo de amargura, estou falando de esgares e de uma receita para criar monstros: de amar o semelhante com todas as suas forças porque ele é capaz de odiá-lo com a mesma intensidade.

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